ANGELA CARTER – ficcionista

Cleide Antonia Rapucci

A escritora inglesa Angela Carter (1940-1992) não gostava de rótulos e, sempre que sua prosa era vinculada ao realismo mágico, reagia dizendo acreditar que fosse muito mais realismo propriamente dito do que qualquer outra coisa. A escritora dizia que preferia ser vista como realista social, provavelmente pelo teor feminista de sua obra. No entanto, seu nome está associado a diferentes terminologias que conduzem ao caminho do insólito ficcional, como realismo mágico, fantasia, ficção científica, ficção especulativa, contos de fadas, literatura folclórica, surrealismo, gótico, grotesco, fantástico.

Sabe-se que Carter tinha apreço pelos escritores Gabriel Garcia Márquez, Alejo Carpentier e Gunter Grass. Hermione Lee (1992) aproxima-a de autores que foram também seus amigos íntimos: Robert Coover, J. G. Ballard e Salman Rushdie. Ela própria, Carter, reconhecia a aproximação de sua obra com a de Rushdie. Tornou-se também amiga de Margaret Atwood.

Dessa forma, é entre esses nomes que o de Angela Carter figura, e isso se torna importante para que se possa melhor situar sua obra dentro da vertente do insólito ficcional. Nela, encontra-se o inesperado e o inexplicável que se mescla ao reconhecidamente realista, bem como elementos de sonho, contos de fadas, num mosaico entre o cotidiano e o insólito.

Carter publicou nove romances. O primeiro, Shadow Dance (1966), foi escrito durante as férias de verão de seu segundo ano na universidade. Em 1967, publicou The Magic Toyshop, considerado por Margaret McDowell (1982, p. 130) o mais intenso e claustrofóbico de todos. Em entrevista a J. Haffenden (1985, p. 80), Carter define esse livro como “um tipo de conto de fadas“, que lhe deu diretrizes sobre o tipo de romance que iria escrever daí por diante. Com essa obra, ganhou o Prêmio Llewellyn Rhys em 1967.

Shadow Dance (1966), Several Perceptions (1968) e Love (escrito em 1969 e publicado em 1971) são conhecidos como a “trilogia de Bristol” e fazem um retrato da vida boêmia dos anos 1960, principalmente da vida dos jovens naquele momento histórico e cultural. Nesses três romances, o vínculo com a realidade imediata é visível, o que remete à afirmação de Carter de que se considerava uma realista social (SAGE, 1977, p. 54). Contudo, os elementos do insólito podem ser encontrados em muitas passagens: as casas abandonadas e o personagem vampiresco de Shadow Dance, as cenas emblemáticas e os devaneios de Several Perceptions, a pintura e o sangue que se misturam numa espécie de tela surrealista em Love. Several Perceptions traz em epígrafe a citação de David Hume, de onde provém o título: “A mente é um tipo de teatro, onde várias percepções se apresentam sucessivamente” (CARTER, 1995, p. v, tradução minha). Já The Magic Toyshop (1967), que remonta à estrutura dos contos de fadas e ao gótico, e Heroes and Villains (1969), uma distopia, são consideradas suas primeiras “obras especulativas”, declaradamente ligadas ao realismo mágico.

No Japão, Carter pôde aprofundar o contato com o movimento surrealista. Desse período nasceram dois romances, embora não lidem diretamente com aquele país: The Infernal Desire Machines of Dr. Hoffman (1972) e The Passion of New Eve (1977). Os dois romances são construídos sobre alegorias bizarras e picarescas. Junto com Heroes and Villains, The Infernal Desire Machines of Dr. Hoffman e The Passion of New Eve formam uma trilogia de obras “pós-apocalípticas”.

Os dois últimos romances da autora são Nights at the Circus (1984) e Wise Children (1991). Nights at the Circus traz, por meio do discurso da carnavalização, a história da “trapezista alada” Fevvers, cujo enigma se coloca: é fato ou ficção? Wise Children completa a atmosfera de fantasia e carnaval, com as gêmeas septuagenárias Dora e Nora Chance revisitando o universo shakespeariano.

Angela Carter possui quatro livros de contos. O primeiro, Fireworks: Nine Profane Pieces, de 1974, reúne contos escritos entre 1970 e 1973. Em resenha ao livro em 1975, Brockway inicia elogiando o gênio de Angela Carter, a quem ele chama de “our Lady Edgar Allan Poe”, “our Bearded Lady”, “a female Nijinsky”, “a female Polanski”, comparando-a ainda a Aubrey Beardsley e Gustave Moreau, entre outros. Também já notava que o melhor conto da coletânea é “The loves of Lady Purple”, a história da marionete que se transforma em mulher fatal, conto mais conhecido da coletânea. Carter aponta, por meio das personagens femininas de Fireworks, caminhos para que o quadro da situação da mulher no patriarcado seja revertido (RAPUCCI, 2011, p.15).

Em 1979, The Bloody Chamber and Other Stories foi muito bem recebido, merecendo o Prêmio do Festival de Literatura de Cheltenham. O livro reúne a novela que lhe dá título, além de outros nove contos, fazendo um revisionismo feminista de contos de fadas, envolvendo o Barba Azul, a Bela e a Fera, o Gato de Botas, o Rei dos Elfos, Chapeuzinho Vermelho, uma vampira solitária… Em 1984, Carter escreveu com Neil Jordan o roteiro do celebrado filme The Company of Wolves, baseado principalmente no conto do mesmo nome.

Black Venus, de 1985, foi publicado nos Estados Unidos com o título de Saints and Strangers. Essa coletânea traz oito contos, que haviam sido publicados separadamente entre 1977 e 1982 e mistura pessoas “reais” (Jeanne Duval, Poe) a seres totalmente imaginários. De acordo com Sarah Gamble, nessa coletânea fica clara a preocupação com a história, uma vez que se percebe o início de um novo compromisso sendo negociado entre “fato” e “ficção” na obra de Carter (GAMBLE, 1997, p. 101).

Postumamente, foi publicado em 1993 o livro American Ghosts & Old World Wonders, reunindo nove contos antes publicados em diversas revistas. Carter deixou-o preparado, tendo reunido os contos e já indicado, inclusive, o título. Sua testamenteira literária, Susannah Clapp, diz que esses contos foram escritos no final da vida de Carter: histórias sobre lendas, mitos, maravilhas; histórias que se dividem entre a Europa e a América, entre velhos e novos modos de narrar e celebrar (CLAPP, 1994, p. ix). Todos os quatro volumes foram coletados em Burning your Boats: collected short stories (1996), que reúne ainda alguns de seus primeiros contos (da fase 1962-1966) e contos inéditos (de 1970-1981). A introdução é de Salman Rushdie.

Em 1970, Carter publicou dois livros infantis: Miss Z, The Dark Young Lady e The Donkey Prince. McDowell (1982, p. 130) afirma que os livros infantis carterianos reforçam o talento para a fantasia, detalhes visuais e diálogos cômicos. Em 1977, Carter traduziu e prefaciou os contos de Perrault e, em 1982, publicou mais uma tradução de contos de fadas, Sleeping Beauty and Other Favourite Fairy Tales, ilustrada por Michel Foreman. Outro livro infantil, Comic & Curious Cats, foi publicado em 1979 e, em 1982, Carter lançou Moonshadow. Em 2000, foi publicado postumamente Sea-cat and Dragon King, com ilustrações de Eva Tatcheva.

Carter editou duas coletâneas de contos de fadas e contos folclóricos, The Virago Book of Fairy Tales (1990) e The Second Virago Book of Fairy Tales (1992), ambos ilustrados por Corinna Sargood. Os dois livros foram reunidos posteriormente (2005) como Angela Carter´s Book of Fairy Tales.

The Virago Book of Fairy Tales (1990) recebeu nos Estados Unidos o título de The Old Wives’ Fairy Tale Book. Na introdução, Carter faz um estudo sobre os contos de fadas e contos populares, enfatizando seu caráter de transmissão oral e de ser o divertimento dos pobres. Carter discorre sobre o conto de fadas e as histórias folclóricas enquanto a mais vital conexão com o homem e a mulher comuns. Ela reúne histórias que vêm da Europa, dos Estados Unidos, do Ártico, da África, do Oriente Médio e da Ásia. As histórias são reunidas em sete grupos, cujos títulos são bastante sugestivos.

Em 1992, foi publicado postumamente o segundo Virago Book of Fairy Tales. Carter trabalhou nos originais do livro até semanas antes de sua morte, em fevereiro de 1992. Recolheu e agrupou as histórias e escreveu parte das notas, que foram concluídas por Shahrukh Husain. Baseado no obituário de Carter, escrito por Warner para o Independent, o texto fala de sua relação de com a fantasia e o folclore. Segundo Warner, “sua imaginação era estonteante e, com suas ousadas e vertiginosas tramas, suas imagens precisas mas fantásticas, sua galeria de moças boas-más, feras, velhacos e outras criaturas, ela faz o leitor prender a respiração” (CARTER, 2007, p. 452).

Carter morreu em Londres, a 16 de fevereiro de 1992, de câncer do pulmão. Nos obituários, foi chamada de “alta feiticeira, benevolente rainha das bruxas”, por Salman Rushdie; de “fada madrinha” por Margaret Atwood e de “bruxa boa” por J. G. Ballard. No entanto, como Merja Makinen (1992, p.2) observa, essa ideia de associar Carter a uma mitologização de fada madrinha/bruxa branca pode reforçar o processo de falsa universalização contra o qual a própria Carter lutou. Para Makinen, os pontos fortes e os perigos dos textos de Carter estão numa subversão muito mais agressiva e num erotismo muito mais ativo do que talvez o decoro da morte permitisse naqueles obituários. E, de fato, o tratamento dado por Carter ao insólito ficcional em sua obra cria um universo multifacetado em que não há separações simplistas entre a realidade e a fantasia, o humano e o animal, o masculino e o feminino, o bem e o mal.

REFERÊNCIAS

CARTER, Angela. Several Perceptions. London: Virago, 1995.
CARTER, Angela. 103 contos de fadas. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CLAPP, Susannah. Introduction. In: CARTER, Angela. American Ghosts & Old World Wonders. London: Vintage, p. ix-xi, 1994.
GAMBLE, Sarah. Angela Carter; writing from the frontline. Edinburgh: Edinburgh UP, 1997.
HAFFENDEN, John. Angela Carter. In: Novelists in Interview. London: Methuen. p. 76-96, 1985.
LEE, Hermione. Angela Carter’s profane pleasures. Times Literary Supplement, p. 5-6, 1992.
MAKINEN, Merja. Angela Carter’s The Bloody Chamber and the Decolonization of Feminine Sexuality. Feminist Review, 42, p. 2-15, Autumn, 1992.
McDOWELL, Margaret B. Angela Carter. In: VINSON, J. (Ed). Contemporary Novelists. 3. ed. New York: St. Martin’s, p. 129-30, 1982.
SAGE, Lorna. The savage sideshow: a profile of Angela Carter. New Review 39/40, p. 51-57, 1997.

BIBIOGRAFIA COMPLEMENTAR

GORDON, Edmund. The invention of Angela Carter: a biography. London: Chatto & Windus, 2016.
JORDAN, Elaine. Enthralment: Angela Carter’s Speculative Fictions. In: ANDERSON, L. (Ed). Plotting Change: Contemporary Women’s Fiction. London: Edward Arnold, p. 18-40, 1990.
RAPUCCI, Cleide Antonia. Mulher e deusa: a construção do feminino em Fireworks de Angela Carter. Maringá: Eduem, 2011.
RAPUCCI, Cleide Antonia. Ficção especulativa e feminismo: o que querem essas mulheres? In: ESTEVES, Antonio R.; RAPUCCI, Cleide Antonia (Orgs). Vertentes do insólito e do fantástico: leituras. Rio de Janeiro: Dialogarts, p. 93-110, 2017. Disponível em: www.dialogarts.uerj.br › admin › arquivos_tfc_literatura.
RODRIGUES, Talita Annunciato. Confinamento e vastidão: a representação feminina e a subversão em The Magic Toyshop. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. Disponível em: https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/109217/ISBN9788579833038.pdf?sequence=1&isAllowed=y.