BLACK VENUS, literatura – Angela Carter

Cleide Antonia Rapucci

Em 1985, Angela Carter publicou a coletânea Black Venus, reunindo contos que haviam sido publicados separadamente entre 1977 e 1982. Nos Estados Unidos, foi publicada com o título de Saints and Strangers (1985). De acordo com Sarah Gamble, nessa coletânea fica clara a preocupação com a história, uma vez que aqui se percebe o início de um novo compromisso sendo negociado entre “fato” e “ficção” na obra de Carter. Por sua vez, Michael Gorra vê nessa coletânea o uso peculiar e fascinante de técnicas ficcionais modernistas sobre materiais que convencionalmente pertencem mais ao ensaio ou à história.

Carter colocou aqui em prática seu projeto feminista de desvendar a experiência feminina que tem sido relegada ao subtexto ou às margens da narrativa e da história tradicionais. Em outras palavras, ela busca não uma “history”, mas uma “herstory”. De acordo com o Dicionário da crítica feminista, o termo “herstory” foi cunhado pelo feminismo para designar a teorização e a documentação da experiência, da vida e da linguagem das mulheres. Trata-se de um termo paródico com a palavra “history” (“his story”) em língua inglesa, chamando a atenção para a censura existente na própria linguagem patriarcal que usa o masculino como genérico. Temos aí uma tomada de consciência acerca do desajustamento entre a linguagem e a realidade a que esta se refere, ou seja, a omissão do papel desempenhado pelas mulheres como agentes sociais na história.

Na introdução a Burning your Boats, coletânea de seus contos feita em 1995, Salman Rushdie chega a dizer que, em Black Venus e American Ghosts and Old World Wonders, Carter evita os mundos da fantasia, voltando-se para o real (p. xiii). Ele exemplifica com os retratos que ela cria de Jeanne Duval, de Edgar Allan Poe e de Lizzie Borden. Para Rushdie, os contos mais ligados à fantasia na coletânea são a última história de lobos, “Peter and the Wolf” e “Overture and Incidental Music for A Midsummer Night´s Dream”.

São os seguintes os oito contos da coletânea: “Black Venus”, que dá voz a Jeanne Duval, a amante de Baudelaire; “The Kiss”, uma fábula escrita em linguagem bastante sensorial que faz intertexto com Scherazade e Tamburlaine; “Our Lady of the Massacre”, uma paródia de The Fortunes and Misfortunes of Moll Flanders (1722) de Daniel Defoe; “The Cabinet of Edgar Allan Poe”, recriando a infância do autor com elementos góticos e grotescos; “Overture and Incidental Music for A Midsummer Night´s Dream”, uma espécie de abertura à peça de Shakespeare, que introduz o público ao mundo sexualizado das fadas e se concentra na trama de Oberon e Titânia.

Na sequência, vem “Peter and the Wolf”, em que Carter reescreve o conto de 1936 de Sergei Prokofiev. Também nesse conto a mulher opta pela companhia dos lobos, auxiliando Peter na construção da sua identidade. “The Kitchen Child” é um bom exemplo do bom humor na narrativa carteriana, tratando de dois universos que lhe são caros: a cozinha e a ilegitimidade paterna. Por fim, em “The Fall River Axe Murders’’, Carter recria a herstory de Lizzie Borden, acusada de assassinar o pai e a madrasta em Massachusetts em 1892. Na recriação da história de Lizzie, Carter se detém nas horas imediatamente anteriores ao assassinato, numa narrativa permeada pelo realismo mágico. Destacam-se aqui a atmosfera opressiva e grotesca da casa fatídica, o personagem avarento do pai que se assemelha ao Barba-Azul, a madrasta glutona, a própria Lizzie comparada à Bela Adormecida e à Chapeuzinho, e a presença do Anjo da Morte.

REFERÊNCIAS

CARTER, Angela. Black Venus. London, Picador, 1986.
GAMBLE, Sarah. Angela Carter: Writing from the Front Line. Edinburgh: Edinburgh UP, 1997.
GORRA, Michael. Fiction Chronicle. Hudson Review, v. 40/41, p. 136-148, Spring, 1987.
MACEDO, Ana Gabriela; AMARAL, Ana Luísa (Orgs.) Dicionário da crítica feminista. Porto: Edições Afrontamento, 2005.
RUSHDIE, Salman. Introduction. In: CARTER, Angela. Burning your Boats: Collected Short Stories. London: Vintage. p. ix-xiv. 1995.