FANTASIA / FANTASY

 Filipe Furtado

Não tendo, até décadas recentes, tido grande curso na gíria literária de língua portuguesa, a palavra fantasia (enquanto denominação de teor genológico) reporta-se ao termo inglês fantasy e ao conceito por ele designado. De facto, trata-se de uma área ficcional que, embora actualmente popularizada à escala planetária, surgiu e proliferou sobretudo na Grã-Bretanha e em vários outros países de cultura anglo-saxónica (Estados Unidos, Canadá, Irlanda, etc.), neles se registando até hoje a sua máxima produção e divulgação. Daí que, pelo menos até aos meados do século XX, a larga maioria destas últimas se tenha processado em língua inglesa, nela se mantendo múltiplas denominações de aspectos parcelares (heroic fantasy, sword and sorcery, etc.), geralmente referidas sem tradução noutros idiomas.

Dado o grande número e a heterogeneidade das narrativas que a noção de fantasia literária é susceptível de abarcar, as suas fronteiras revelam-se inevitavelmente vaga e fluidas, tornando difícil delimitá-la com clareza do resto da literatura. Apesar disso, dela se pode, desde logo, dizer que implica um pacto de leitura idêntico ao requerido pelo género maravilhoso, com plena aceitação por parte do receptor de todos os elementos insólitos surgidos no decurso da acção. Dada esta convenção, quase nunca os textos aqui aludidos revelam alguma preocupação especial com a verosimilhança do que narram, ao contrário do sucedido com obras assumidamente realistas ou (embora por outros motivos) com as incluíveis no género fantástico. De qualquer modo, implicam quase sempre grande número de um conjunto muito diversificado de traços, nenhum dos quais, porém, se revela totalmente distintivo.

Um dos principais será o recurso frequente à magia e a outras práticas ou forças ditas esotéricas e sobrenaturais, em regra aceites e encaradas como algo natural pelas personagens com elas envolvidas. Tais elementos surgem, geralmente, enquadrados por cenários em que predomina o mistério, o exotismo e uma certa aura de extravagância. As acções, por sua vez, situam-se, com grande frequência, num passado distante, envolvendo pastiches de vários períodos históricos assim como de lendas e mitos em que predominam ecos arturianos ou germânicos. Como exemplo desta diversidade de enquadramento epocal, bastará referir algumas sagas, geralmente compostas por vários romances e hoje universalmente conhecidas através de diferentes media. Surgem, assim, interpretações (não raro demasiado imaginativas) da Antiguidade (Conan the Barbarian de Robert E. Howard), da Idade Média (The Lord of the Rings de J. R. R. Tolkien e A Song of Ice and Fire de George R. R. Martin), de um peculiar século XX (Harry Potter de J. K. Rowling) ou de um improvável futuro (Star Wars de George Lucas e outros). Em certos textos, porém (como nos conhecidos por sword and sorcery e steampunk, entre outros), passado e futuro surgem entretecidos numa estética retrofuturista, não raro deixando também subentender uma perspectiva contrafactual da História. Neste ambiente, deambulam figuras singulares, maiores do que as da vida real (mais fortes, mais sábias ou mais pérfidas), raramente de grande espessura caracterológica, interagindo com objectos das mais diversas origens, épocas e virtualidades, desde espadas e talismãs, a robots ou naves espaciais. Paralelamente, muitas narrativas (sobretudo quando decorrem em cenários medievais) não raro exibem, com função de destaque na acção (inclusive como personagens principais), dragões, unicórnios, centauros, assim como monstros mitológicos ou seres de outros mundos. Trata-se aqui de uma óbvia revivescência neo-romântica, provavelmente a mais duradoura desde a segunda metade do séc. XIX até à actualidade, e aquela que maior fortuna literária, editorial e mediática viria a alcançar até hoje.

Não obstante, como convirá de novo sublinhar, embora estes elementos surjam com frequência na grande maioria dos textos, nenhum deles se revela de ocorrência universal, pelo que tentar delimitar o território da fantasia literária conduz sempre a meros esboços de contornos algo vagos e imprecisos. Existe, é certo, um elemento à primeira vista susceptível de proporcionar alguma homogeneidade a obras tão díspares e de lhes justificar a denominação de fantasias, assim como a subsunção numa única classe. Reside, precisamente, no facto de todas elas reflectirem de forma intensa conteúdos associáveis a figurações oníricas, a abjecções, a diversas manifestações de desejo e a outros afloramentos do id, o fundo inconsciente do psiquismo. Daí muitas personagens, acções e enquadramentos serem invocados como exemplos de conceitos psicanalíticos e constituírem objecto de particular interesse para a crítica dela decorrente. De qualquer modo, embora este aspecto se mostre susceptível de congregar a maior parte das narrativas aqui consideradas, continua a não constituir um traço distintivo, tratando-se, com efeito, de algo comum ao maravilhoso, ao fantástico e a outras classes de textos inseríveis no grande domínio do insólito.

Como sucede com muitas noções de teoria crítica, sobretudo no plano genológico, a abrangência da noção de fantasia literária admite dois sentidos: restrito e lato. Reduzida à expressão mais simples dos seus inícios oitocentistas, como que se confundia em quase tudo com o milenar género maravilhoso, dele podendo ser considerada uma vertente tardia. Porém, sobretudo já no século XX, com o surgimento de novas e igualmente imaginativas classes genológicas, pouco demorou a miscigenar-se com várias delas, crescendo imenso em abrangência. Assim, recolhendo muitos dos seus traços polémicos ou insólitos do acervo literário universal, passou a compreender um número bem mais vasto e diversificado de tipos de textos, também coincidindo com parcelas significativas de outros. Tal se verifica, desde logo, no tocante ao conto de fadas, de que a quase totalidade das fantasias literárias constitui, afinal, uma variante mais adaptada às expectativas de adolescentes e adultos. Além disso, engloba grande parte do romance gótico, tal como de múltiplas áreas conotáveis com a ficção científica (science fantasy, space opera, heroic fantasy, sword and sorcery, e steampunk, entre várias outras). Finalmente, também se estende a territórios ficcionais tão diversos como as narrativas de terror e horror, a fantasia histórica ou o realismo mágico.

Dada a grande heterogeneidade dos textos que engloba, a fantasia não pode ser propriamente considerada um género no sentido em que o é o maravilhoso, com o qual, não obstante, a sua vertente restrita quase coincide. Com efeito, para género, falta-lhe a existência dum elemento inequivocamente distintivo do resto da literatura, limitando-se, em geral, a seguir a forma de encarar o metaempírico inerente ao maravilhoso, sem deste, contudo, se distinguir por qualquer outro traço. Para modo, revela idêntica insuficiência, pois não é tão englobante como o modo fantástico (ou ficção do metaempírico) e a ficção especulativa, dado não incluir domínios fundamentais de certos tipos de textos com os quais, no entanto, partilha outras áreas. É este, por exemplo, o caso da larga maioria da ficção científica, particularmente da chamada hard science fiction, cujo teor racionalista e rigoroso não se coaduna com opções estéticas demasiado fantasiosas, ao invés do que sucede com outras vertentes (heroic fantasy, science fantasy, etc.). Acresce ainda que, em muitas classes de narrativas até certo ponto integráveis no conceito de fantasia (steampunk ou realismo mágico, por exemplo), o metaempírico nem sempre desempenha uma função central, sendo apenas ancilar em alusões a realidades exógenas de alcance político social ou ideológico.

Embora textos desta índole (como a epopeia de Gilgamesh) tenham existido desde os alvores da História, e continuado a surgir ao longo dos tempos, a fantasia moderna é sobretudo uma criatura do século XIX. Apenas durante ele começou, de algum modo, a demarcar-se do milenar género maravilhoso, manejando de forma peculiar traços já existentes e criando uma textura genológica minimamente susceptível de lhe permitir alguma autonomia. Apesar de muito influenciada pelo Romantismo (inglês e alemão), desenvolveu-se numa época em que, na esteira do Iluminismo, a aceitação acrítica do sobrenatural, inerente ao maravilhoso, começava já a ser posta em causa e a desvanecer-se. Paralelamente, a forma ambígua com que o género fantástico perspectivava a mesma questão estava a configurar-se num número crescente de textos. De qualquer modo, a fantasia oitocentista não deixou de reiterar a plena admissão do sobrenatural, recorrendo a antigas receitas (mito, lenda, fábula, conto de fadas, etc.) e, porventura, apenas lhes acrescentando maior grau de sofisticação estética e de diversidade temática.

Entre as obras mais inovadoras e já muito diversificadas desta época, cumpre recordar Phantastes (1858) de George MacDonald, The Water Babies (1863) de Charles Kingsley, Alice’s Adventures in Wonderland (1865) de Lewis Carrol ou The Well a the World’s End (1896) de William Morris. No século XX, a emergente ficção científica começou a desenvolver novas vertentes (sword and sorcery, heroic fantasy ou science fantasy), assim operando uma certa miscigenação com a fantasia. Paralelamente, durante o período entre-guerras e, sobretudo, após ele, surgiam os primeiros autores norte-americanos de grande projeção futura, como Edgar Rice Burroughs, H. P. Lovecraft ou Robert E. Howard, a que se seguiriam entre vários outros, Ray Bradbury, Ursula K. Le Guin e George R. R. Martin. Entretanto, muitos dos nomes de maior relevância continuariam a ser de origem britânica, como Lord Dunsany, T. H. White, Michael Moorcock, e, mais recentemente, J. K. Rowling ou Neil Gaiman. Deles se destacam naturalmente C. S. Lewis (The Chronicles of Narnia, 1950-56) e J. R. R. Tolkien (The Lord of the Rings, 1954-55), este último decerto o mais aclamado de sempre.

Assim, apesar de todos os avanços materiais, científicos e ideológicos que pareciam apontar em sentido oposto, a fantasia literária não deixou de crescer, implantando-se nas culturas de raiz anglo-saxónica e, mais tarde, em todo o mundo ocidental. Muitos dos seus traços podem ser encontrados em obras tão prestigiadas e de origens tão diversas como Grande Sertão: Veredas (1956) de Guimarães Rosa; Cien Años de Soledad (1967) de Gabriel García Márquez; Memorial do Convento (1982) de José Saramago ou The Satanic Verses (1988) de Salman Rushdie. Decerto o avolumar de condicionalismos negativos (o quotidiano cinzento, as crises econômicas, o horror das guerras, as injustiças sociais) tornou ainda mais desejável a fuga para um algures onde os sonhos se realizam, a magia domina e os bons são (quase) sempre compensados. Ora, evocando eras e mundos alternativos, a fantasia contribui simultaneamente tanto para acalentar como para mitigar esse desiderato. Por um lado, deixa subentender e parece encorajar uma intensa (embora não raro duvidosamente direcionada) rejeição da época e da sociedade em que o texto foi produzido. Por outro, tem como que uma função terapêutica, proporcionando ao leitor um derivativo que lhe permite alguma conciliação com o real e o reconduz à homeostase (não raro à acomodação) nos planos social e psíquico.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

ARMITT, Lucie. Fantasy Fiction: an Introduction. New York: Continuum, 2005.
CLUTE, John; GRANT, John. The Encyclopedia of Fantasy. Londres: Orbit Books, 1997.
JACKSON, Rosemary. Fantasy: The Literature of Subversion. London; New York: Methuen, 1981.
LE GUIN, Ursula. K. The Language of the Night: Essays on Fantasy and Science Fiction. New York: Putnam, 1979.
MATHEWS, Richard. Fantasy: The Liberation of Imagination. New York: Routledge, 2002.
MENDLESOHN, Farah. Rhetorics of Fantasy. Middletown, Corn: Wesleyan University Press, 2008.
SCHLOBIN, Roger. C (Ed). The Aesthetics of Fantasy Literature and Art. Notre Dame. Indiana: University of Notre Dame Press, 1982
STABLEFORD, Brian. Historical Dictionary of Fantastic Literature. Lanham, Maryland: The Scarecrow Press, 2005.
YUAN, Yuan. The Discourse of Fantasy: Theoretical and Fictional Perspectives. Durango, Colo: Hallowbrook Publishing, 1994.