FANTÁSTICO – gênero

Marisa Martins Gama-Khalil

O búlgaro Tzvetan Todorov é incontestavelmente o teórico balizador da perspectiva que considera o fantástico como gênero, e isso se deve não ao fato de tê-la inaugurado, mas de ter, em 1970, com a publicação do livro Introdução à literatura fantástica (2004), reunido os estudos anteriores, compilando-os, discutindo-os e, por intermédio deles, produzido uma tendência teórica que congregou gêneros similares de trabalho com o sobrenatural, separando esses gêneros de outros, com propostas discursivas e temáticas destoantes. Para tal empreitada abre o livro com um capítulo dedicado aos gêneros literários, no qual define a noção de gênero, considerando como fundamento norteador especialmente a teoria dos gêneros proposta pelo crítico canadense Northrop Frye. Seu enfoque sobre a teoria forjada por Frye é implementado a partir de uma revisão ancorada em algumas teses do estruturalismo e, por meio desse movimento revisional, chega a algumas conclusões que motivarão seu trabalho com o gênero fantástico: a ideia de que os gêneros assentam-se em uma representação literária, a qual considera os aspectos verbal, sintático e semântico, aspectos esses que imprimem uma clivagem estruturalista ao estudo e a opção pela perspectiva dos gêneros teóricos e não pelos gêneros históricos.

Todorov privilegia o estudo de três gêneros vizinhos: o fantástico, o estranho e o maravilhoso. Na sua visão, nós, leitores, somos conduzidos para o âmago do fantástico na circunstância de leitura em que, pisando no solo de um mundo prosaico, comum às nossas vivências, sem anjos, demônios ou monstros, vemo-nos diante de um evento impossível de ser explicado pelas leis do nosso mundo familiar. Nesse contexto, restam-nos duas opções de entendimento: ou tal acontecimento é invenção da nossa imaginação, uma ilusão dos nossos sentidos, ou o acontecimento integra a nossa realidade, entretanto esta é regida por leis que desconhecemos. O gênero fantástico acontece em função dessa incerteza, a qual provoca o que Todorov nomeia como hesitação, designada como a condição constitutiva para a existência do fantástico. Detalhando tal condição básica – a hesitação do leitor -, o teórico búlgaro institui outras três condições para a compleição do fantástico na literatura. A primeira delas refere-se à experiência que a narrativa fantástica deve impulsionar o seu leitor a, diante de um fato fantástico, hesitar entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural. Quanto à segunda condição, Todorov esclarece que essa hesitação pode ser também experimentada por uma personagem, de tal modo que o leitor identifique-se com as vivências insólitas da personagem, à maneira de um jogo de espelhos. A terceira condição relaciona-se à postura de leitura que o leitor adota: ele deve descartar “tanto a interpretação alegórica como a interpretação poética” (TODOROV, 2004, p. 39). O teórico elucida ainda que a primeira e a terceira condições são imprescindíveis para a deflagração do fantástico na literatura, já a segunda, a hesitação da personagem, pode ou não realizar-se. Relacionando tais condições aos aspectos estruturais citados no primeiro capítulo do seu livro, Todorov assevera que a primeira condição, a da hesitação do leitor, estaria relacionada a uma “visão ambígua” dos fatos decorrente do aspecto verbal do discurso; a segunda condição relaciona-se ao aspecto sintático, pois depende das ações da personagem na narrativa; e a terceira condição, referente ao aspecto semântico, procede a partir de escolhas dentre diversas possibilidades e níveis de leitura.

Para Todorov, o gênero fantástico estaria numa linha do meio entre dois outros gêneros, similares, contudo com diferenças importantes e decisivas para as suas distinções: o estranho e o maravilhoso. Na narrativa do estranho, que se realiza de modo frequente – mas não exclusivo – pelo medo, são narrados acontecimentos que podem facilmente ser esclarecidos pela lógica da razão, entretanto que, de certa maneira, são incríveis e inquietantes, e que, por esse motivo, podem despertar nas personagens e no leitor reações equivalentes às das narrativas fantásticas; todavia, se existe, no nível interno da narrativa, uma explicação lógica para os fatos aparentemente sobrenaturais, já não se trata do gênero literatura fantástica. As narrativas do estranho singularizam-se pela capacidade de suscitar o medo e por essa razão as narrativas de terror poderiam ser englobadas nesse gênero. Os estudos de Sigmund Freud foram um dos suportes elencados por Todorov para embasar a sua noção de estranho. Contudo, advertimos que há uma dissonância entre as concepções todoroviana e freudiana de estranho/ inquietante, uma vez que, segundo Freud (2010, p. 372), “[p]ara que surja o inquietante [estranho] é necessário um conflito de julgamento sobre o acontecimento ser real ou não.” Portanto, a hesitação seria definidora do sentimento inquietante e isso o aproximaria muito mais do fantástico que do estranho propriamente dito. Quanto ao gênero maravilhoso, Todorov assinala que os acontecimentos sobrenaturais encontram-se naturalizados no mundo diegético e em função disso não gerariam hesitação nas personagens e nos leitores; assim, essas narrativas, para Todorov, distanciam-se do gênero fantástico. Os contos de fadas e os contos maravilhosos podem figurar como exemplos do gênero maravilhoso, porquanto neles varas de condão, capas invisibilizadoras, lobos que falam, botas e tapetes mágicos são naturais àquele mundo ficcional.

Todorov assinala também a existência de outros gêneros vizinhos que se situam nas fronteiras entre o fantástico, o estranho e o maravilhoso, como o fantástico-estranho e o fantástico-maravilhoso. A diferença entre o fantástico-estranho e o estranho puro constitui-se porque, enquanto no segundo uma elucidação racional é demonstrada no texto, no primeiro, ocorre tão-somente uma alusão a uma explicação lógica. No estranho, em muitos casos, nada de sobrenatural sucede e muitas vezes, nós, leitores, temos consciência disso, entretanto os fatos reais nos apavoram tanto quanto ou mais que os sobrenaturais. No fantástico-maravilhoso, as narrativas começam com fatos fantásticos, mas que por fim terminam com a aquiescência do sobrenatural, e é nesse sentido que, para Todorov, essas narrativas estariam bem próximas do fantástico puro.

Louis Vax (1974) é um dos autores que Todorov tomou como fundamento para seu estudo. O referido teórico francês diferencia o gênero fantástico de outros gêneros que com ele fazem fronteira, como o feérico (que compreende o maravilhoso), a poesia, o macabro (que compreende o terror), a literatura policial, o trágico, o humor, a utopia, a alegoria e a fábula, o ocultismo, a psicanálise e a psiquiatria, a metapsíquica. Todos esses outros “gêneros”, no ponto de vista de Louis Vax, fazem fronteira com o fantástico e este se aproveita do “encontro”, retirando dele o que lhe é útil para a sua constituição. É imperativo para esta reflexão o entendimento de que Vax associa-se à perspectiva que analisa o fantástico através da ideia de gênero; portanto, Todorov segue a linha de Vax. Freud também, citado por Todorov, como demonstramos antes, evidencia diferenças entre o maravilhoso e o fantástico, o que, de maneira sugestiva, filia-o à perspectiva genológica.

Relendo Todorov, e sendo fortemente influenciado por ele, o teórico português Filipe Furtado, no livro A construção do fantástico na narrativa (1980), procura deslocar a noção de hesitação, base da teoria todoroviana. No capítulo em que lida com a questão da permanência da ambiguidade, Furtado lembra que a hesitação do leitor implícito não seria suficiente para determinar se uma narrativa é fantástica ou não: “Longe de ser o traço distintivo do fantástico, a hesitação do destinatário intratextual da narrativa não passa de um mero reflexo dele, constituindo apenas mais uma das formas de comunicar ao leitor a irresolução face aos acontecimentos e figuras enfocados” (FURTADO, 1980, p. 40-1). Contudo, ao abordar a ambiguidade – noção central do seu estudo -, Furtado aproxima-a da noção de hesitação desenvolvida por Todorov, uma vez que é por meio da ambiguidade planteada no texto que as personagens e, por consequência, o leitor, hesitam. O que desencadeia a ambiguidade é algum elemento ou acontecimento metaempírico, algo que escapa ao que pode ser “verificável ou cognoscível a partir da experiência, tanto por intermédio dos sentidos” humanos “como através de quaisquer aparelhos que auxiliem, desenvolvam ou supram essas faculdades” (FURTADO, 1980, p. 20). Acrescente-se ainda que, ao aplicar a concepção de ambiguidade às diferentes formas da narrativa metaempírica, Furtado chega a conclusões muito conexas às de Todorov. O maravilhoso, por exemplo, para Furtado, caracteriza-se por não pôr em discussão a possibilidade da existência dos acontecimentos insólitos, e por esse motivo não gera a ambiguidade; para Todorov, o maravilhoso não desencadeia a hesitação. Dito de outra forma, no maravilhoso, não há hesitação/ambiguidade. O estranho, na concepção de Furtado, expõe a ambiguidade, mas esta é posteriormente desfeita, através de argumentos racionais; Todorov entende o estranho como a narrativa na qual a hesitação é exposta inicialmente, mas rasurada na sequência pela apresentação de alguma explicação de ordem lógica. Dito de outro modo, para ambos teóricos, no estranho a hesitação/ambiguidade desfaz-se por intermédio de argumentos racionais. Já o fantástico, para Furtado, só irrompe quando ocorre a permanência da ambiguidade na narrativa; similarmente, em Todorov, encontramos a explicação de que é a hesitação a marca constituinte do acontecimento fantástico. Ao elencar a ambiguidade e não a hesitação como recurso definidor da narrativa fantástica, Furtado opta por uma direção mais centrada no texto, na estrutura de linguagem que o texto apresenta.

Por fim, é importante destacar que a perspectiva genológica de Todorov delimitou uma temporalidade que restringe historicamente esse gênero literário, teria iniciado “de maneira sistemática por volta do fim do século XVIII com Cazotte; um século mais tarde encontram-se nas novelas de Maupassant os últimos exemplos satisfatórios do gênero” (TODOROV, 2004, p. 175). Dentre outros fatores históricos, Todorov (2004 p. 169) atribui especialmente ao surgimento da psicanálise o fim da literatura fantástica: “Não se tem necessidade hoje de recorrer ao diabo para falar de um desejo sexual excessivo, nem aos vampiros para designar a atração exercida pelos cadáveres”. Assim, para o teórico búlgaro, as obras a partir do século XX, como “A metamorfose” de Franz Kafka, não poderiam mais ser designadas como literatura fantástica. Dois argumentos de base são usados por Todorov para sua asserção: a inexistência da hesitação nesse tipo de enredamento e o fato de as narrativas de Kafka apresentarem um fantástico generalizado, ou seja, o que era no fantástico clássico uma exceção, um acontecimento singular que fazia irromper a hesitação, torna-se regra nos enredos kafkianos.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. O inquietante. In: História de uma neurose infantil (O homem dos lobos): além do princípio do prazer e outros textos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, p. 328-376, 2010.
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
VAX, Louis. A arte e a literatura fantásticas. Tradução de João Costa. Lisboa: Editora Arcádia, 1974.