O realismo mágico define grande parte de narrativas do século XX, sendo associado com frequência a produções da América Latina e conexo a outras noções coetâneas: real maravilhoso e realismo maravilhoso. Ainda que seja com constância vinculado à literatura latino-americana, os primeiros usos do termo realismo mágico ocorreram na Europa no campo das artes plásticas. Franz Roh, historiador e crítico de arte alemão, foi quem utilizou pela primeira vez, no ano de 1923, a noção realismo mágico, em um artigo, ao descrever e analisar a pintura expressionista da Alemanha. Esse estudo de Roh não figurou de forma isolada, mas em diálogo com outros estudos, como o de Gustav Friedrich Hartlaub, como veremos adiante. Dois anos depois da publicação desse artigo, em 1925, Roh, expandindo seus estudos, publica o livro Pós-expressionismo, realismo mágico. Problemas relacionados com a pintura europeia mais recente, no qual trata da arte pós-expressionista da Europa e a conecta à noção por ele forjada, realismo mágico. No ver desse crítico alemão, essa tendência estética teria a peculiaridade de “representar as coisas concretas e palpáveis, para tornar visível o mistério que ocultam” (apud ESTEVES; FIGUEIREDO, 2010, p. 396). Alejo Carpentier elucida que Franz Roh nomeava realismo mágico “a pintura onde formas reais combinavam-se de uma maneira não condizente com a realidade cotidiana” (CARPENTIER, 1987, p. 123). O livro de Roh ganhou uma tradução de José Ortega y Gasset para o espanhol e foi publicado na Revista de Occidente no ano de 1927. Houve, porém, uma alteração no título do texto publicado na revista – a supressão da palavra pós-expressionismo –, que talvez seja responsável pela profusão da noção realismo mágico no mundo das artes.
Quando publicado integralmente na Espanha em formato de livro, o vocábulo pós-expressionismo reaparece, mas vindo após a expressão realismo mágico, novamente evidenciando essa nova nomenclatura usada para designar o enlace entre o sólito e o insólito. Na arte realista mágica descrita e analisada por Roh figuram objetos que são representados com extremo naturalismo, porém, em decorrência de posicionamentos e justaposições inesperados e paradoxais, eles passam a projetar uma sensação de estranheza e irrealidade (BONET, 1997). É a união do comum com o incomum, o misterioso, desencadeando uma interpretação mágica do mundo racional. Emir Monegal (1980, p. 133) expõe exemplarmente que o fito de Roh, ao cunhar a noção, é demonstrar que essa ela é uma espécie de fusão entre duas estéticas opostas: o realismo e o expressionismo. Seymour Menton (1998, p. 20), em sua História verdadeira do realismo mágico, ao tratar do realismo mágico proposto por Roh, explica que se trata da introdução de algum elemento inesperado ou improvável, capaz de criar um efeito estranho ou raro e deixar aturdido o observador.No mesmo ano em que Roh usa pela primeira vez o termo realismo mágico, 1923, outro historiador de arte alemão, Hartlaub, também se vale da noção citada no âmbito de um estudo acerca da “nova objetividade”, movimento artístico alemão surgido como reação ao expressionismo, que iniciou em 1920 e teve seu término em 1933 com a ascensão do nazismo. A nova objetividade foi designada ao mesmo tempo nos estudos de Roh como pós-expressionismo e relacionada ao realismo mágico: “Franz Roh propôs o nome de realismo mágico para a variedade de obras seminaturalistas rotuladas de nova objetividade numa exposição realizada em Mannheim” (STANGOS, 1991, p. 35). De acordo com Hartlaub, os artistas que aderiram ao movimento pós-expressionista – e da nova objetividade – teriam se dividido em dois grupos: no primeiro grupo, os artistas – nominados veristas – rasgavam as formas e modelos objetivos do mundo ao projetarem as experiências por meio de temperaturas altas. No segundo grupo, o do realismo mágico, os artistas tendem a explorar os objetos por meio de uma capacidade de encarnar leis externas da existência (DEMPSEY, 2004).
No ano de 1926, um ano após a publicação do livro de Roh, ainda em contexto europeu e no campo das artes plásticas, o escritor italiano Massimo Bontempelli faz uso das expressões realismo mágico e realismo mítico como movimentos capazes de ultrapassar esteticamente o futurismo. Como explica Irlemar Chiampi, para Bontempelli, como igualmente para Roh, “a nova estética refutava a realidade pela realidade, a fantasia pela fantasia, ou seja, propugnava buscar outras dimensões da realidade, mas sem escapar do visível e do concreto” (CHIAMPI, 1980, p. 22). Bontempelli não faz menção à provável influência dos estudos de Roh, ao invés disso assume a paternidade do termo.
O primeiro teórico a articular o termo realismo mágico com a literatura e em terras latino-americanas, em 1948, será o historiador e escritor venezuelano Arturo Uslar Pietri, a ponto de ele ser apontado por parte da crítica como o pai dessa tendência. Monegal (1980) conjectura a possibilidade do contato de Uslar Pietri com as teses de Roh por intermédio da Revista de Occidente, mas também por um contato pessoal seu com Bontempelli em Paris, conforme nos relata em El otoño em Europa. O fato que mais nos interessa é essa apropriação do termo às letras. No seu estudo Letras y hombres de Venezuela, toma como objeto de estudo os contos desse país escritos entre os anos 1930 e 1940, vendo neles um ponto em comum que ressalta o trabalho com o realismo mágico. Ele afirma: “Uma adivinación poética o uma negación poética de la realidade. Lo que a falta de outra palavra podría llamar-se um realismo mágico” (USLAR PIETRI, 1948, p. 162). Em El cuento hispanoamericano, coletânea de contos hispano-americanos na qual há inclusive um conto de sua autoria, Uslar Pietri, para caracterizar os contos realistas mágicos, retoma de modo ostensivo parte da definição de Roh, inserindo nessa acepção a parcela que cabe ao observador/leitor: “El realismo mágico consiste en la presentación objetiva, estática y precisa de la realidad cotidiana con algún elemento inesperado o improbable cuyo conjunto deja al lector desconcertado, aturdido, maravillado”(USLAR PIETRI, 1986, p. 161). Chiampi observa que Uslar Pietri percebe no conceito uma ambiguidade insolúvel: “o poético consiste em buscar realisticamente o mistério além das aparências (adivinhar) ou o poético consiste em praticar o irrealismo (negar a realidade)” (CHIAMPI, 1980, p. 23).
Na conferência intitulada “Magical Realism in Spanish American”, proferida em Nova York no ano de 1954 e publicada posteriormente pela Revista Hispania, Ángel Flores afirma que o realismo mágico teria surgido em solo latino-americano, em 1935, com a obra de Jorge Luís Borges História universal da infâmia, em função da naturalização do irreal existente nessa narrativa. Conforme pontua Monegal (1980), de acordo com Flores, Borges teria fundado uma tradição que reuniria autores bastante heterogêneos, como, por exemplo, Juan Rulfo, Novás Calvo, Felisberto Hernández, Juan Carlos Onetti, Julio Cortázar, Ernesto Sábato, Labrador Ruiz. O traço que uniria a escrita desses autores seria a mesma preocupação acentuada com o estilo e, na composição narrativa, a transformação do comum e do cotidiano no impressionante e irreal. Flores afirma que o realismo mágico se trata de uma arte de surpresas. A presença marcante do cotidiano, mesmo em solo no qual o mágico irrompe, evita a sua associação com outras modalidades narrativas, o conto de fadas, por exemplo: “Quienes profesan el realismo mágico e apegan a la realidade como para evitar que la ‘literatura’ invada sus senderos, como para impedir que su ficcción se remonte, como em los cuentos de hadas, a domínios sobrenaturales” (FLORES, 1996, p. 510). O resultado desse trabalho com o mágico, na visão de Flores, é uma naturalização do irreal.
O crítico mexicano Luís Leal, no ano de 1967, denega a naturalização do irreal para defender que nas narrativas latino-americanas o mágico desencadeia-se através de uma sobrenaturalização do real e, nesse aspecto, Leal aproxima-se muito da noção de real maravilhoso de Carpentier, entretanto persistindo ainda na utilização do termo realismo mágico. Leal enfatiza que o principal no realismo mágico “no es la creación de seres o mundos imaginados, sino el descubrimiento de la misteriosa relación que existe entre el hombre y su circunstancia” (LEAL, 1996, p. 515). Nesse sentido, ele acredita que o escritor enfrenta a realidade e assume a tarefa de desentranhá-la e desvendar o que existe de oculto e misterioso das coisas e das ações humanas.
O escritor guatemalteco William Spindler (1993), além de dedicar-se à elaboração de uma definição de realismo mágico, propõe uma tipologia, em função de entender que existem várias e diferentes tendências literárias que se aproximam da construção realista mágica. Seu estudo parte de uma insatisfação em relação a definições controversas sobre o termo, as quais desencadeiam confusões no campo da crítica. Antes de ir à sua definição de realismo mágico, Spindler realiza dois movimentos. Primeiramente coloca o realismo mágico em oposição ao Surrealismo e ao Fantástico. Entende-se que o autor se refere ao fantástico como gênero e não como modo. Em segundo lugar, mostra, com base nos estudos anteriores que se debruçaram sobre essa categoria estética, como ela se desdobra em duas diferentes definições: a primeira é encontrada em obras que apresentam a realidade por intermédio de uma focalização incomum sem ultrapassar os limites do real, porém incitando no leitor uma sensação de irrealidade; a segunda é apresentada em obras nas quais, em meio a um contexto de mitos e crenças, duas visões contrárias são representadas concomitantemente – a racional e a mágica – como se não fossem contraditórias. Spindler adverte que a essas duas definições pode-se acrescentar uma terceira e é nesse sentido que passa a propor sua tipologia.
O primeiro tipo, designado como realismo mágico metafísico, aproxima-se das ideias de Roh e açambarca textos que incitam no leitor um senso de irrealidade por meio da técnica do estranhamento, na medida em que um acontecimento familiar é representado de forma a deflagrar uma atmosfera estranha, todavia não propriamente sobrenatural. Spindler enquadra nesse tipo alguns textos, como O castelo, de Franz Kafka, O deserto dos tártaros, de Dino Buzzatti, o conto “Tema do traidor e do herói”, de Borges, A peste, de Albert Camus, e A volta do parafuso, de Henry James. Também se encaixam no realismo metafísico as histórias que representam acontecimentos protonaturais, ou seja, são anormais mas não sobrenaturais como na narrativa “Funes, o memorioso”, de Borges, em que o protagonista possui uma memória mágica, capaz de lembrar-se totalmente de tudo. Caberia citar como um exemplo desse realismo mágico metafísico na literatura brasileira o conto “Elisa”, de Murilo Rubião, que narra uma série de idas e vindas de uma mulher na casa e na vida de um homem. Nada ocorre de sobrenatural, no entanto as aparições e desaparições da mulher desencadeiam uma intensa estranheza. O segundo tipo, designado como realismo mágico antropológico, abarca narrativas que possuem duas perspectivas ao unir dois componentes contrários, o realista e o mágico, contudo tal contradição dissipa-se pelo fato de ancorar-se num contexto mítico e histórico cultural.
O autor associa esse tipo ao real maravilhoso designado por Carpentier, mas em sua visão o termo por ele proposto é mais amplo que o designado por aquele por não se restringir à América Latina. Certamente faltou a Spindler uma leitura ampla da obra ensaística de Carpentier que trata do realismo mágico, na medida em que, em “Do real maravilhoso americano”, um dos ensaios de A literatura do maravilhoso (CARPENTIER, 1987), o ficcionista e crítico cubano admite a existência do real maravilhoso em outros espaços do planeta. Voltando ao realismo antropológico de Spindler, esse autor cita alguns escritores que possuem histórias que se inserem nesse tipo, como Carpentier, Cortázar, Fuentes, García Márquez, Vargas Llosa, Rulfo. Situando um exemplo brasileiro, citamos o conto “A menina de lá”, de João Guimarães Rosa, no qual se relata a história de uma menina santinha, como tantas outras santinhas que se encontram pela cultura do vasto interior do Brasil. O terceiro tipo, denominado realismo mágico ontológico, compreende narrativas nas quais o sobrenatural é projetado de um modo realista como se não entrasse em contradição com o real, sem haver quaisquer explicações para essa irrupção do irreal. Alguns exemplos citados são A metamorfose, de Kafka, Viagem à semente, de Carpentier, o conto “Axolotes”, de Cortázar. Podemos acrescentar a essa lista o conto “Teleco, o coelhinho” e a maior parte dos contos de Rubião. Em “Teleco”, um coelho simplesmente surge na primeira cena do conto e começa a conversar com um homem, nascendo ali uma amizade, tudo narrado de modo natural, sem nenhum sobressalto ou estranheza.
É possível dizer que, apesar de voltar-se para variadas tendências, esse termo é hoje muito mais utilizado em relação a narrativas produzidas na América Latina com um vínculo a uma pertença cultural e mítica ou não, tendo como resultado a junção de tendências realistas mágicas propriamente ditas com o real maravilhoso proposto por Carpentier. Nesse sentido, é pertinente fechar este verbete com as seguintes palavras de Cortázar (1968, p. 15): “Cuántas palabras, cuántas nomenclaturas para un mismo desconcierto”.
REFERÊNCIAS
BONET, Juan Manuel, et al. Realismo Magico: Franz Roh y la Pintura Europea 1917-1936. Valencia: IVAM Institut Valencià d’Art Modern, 1997.
CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. Tradução de Rubia Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Edições Vértice, 1987.
CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.
CORTÁZAR, Julio. Rayuela. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1968.
DEMPSEY, Amy. Estilos, Escolas e Movimentos: Guia Enciclopédico da Arte Moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
ESTEVES, Antonio Roberto; FIGUEIREDO, Eurídice. Realismo mágico e Realismo maravilhoso. In: FIGUEIREDO, Eurídice. Conceitos de literatura e cultura. Niterói; Juiz de Fora: EDUFF, EDUFJF, p. 393-414, 2010.
FLORES, Angel. El realismo mágico em la narrativa hispanoamericana. In: SOSNOWSKI, Saúl. Lectura crítica de la literatura americana: inventários, invenciones y revisiones. Caracas: Fundacion Biblioteca Ayacuch, p. 504-512, 1996.
LEAL, Luis. El realismo mágico em la narrativa hispanoamericana. In: SOSNOWSKI, Saúl. Lectura crítica de la literatura americana: inventários, invenciones y revisiones. Caracas: Fundacion Biblioteca Ayacuch, p. 513-518, 1996.
MENTON, Seymour. Historia verdadeira del realismo mágico. México: Fondo de Cultura Económica, 1998.
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STANGOS, Nikos. Conceitos da arte moderna. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
USLAR PIETRI, Arturo. Letras y hombres de Venezuela. México: Fondo de Cultura Económica, 1948.
USLAR PIETRI. El cuento hispanoamericano: antología crítico-histórica. México: Fondo de Cultura Económica, 1968.
SPINDLER, William. Magic realism: a typology. Forum for modern languages sudies. Oxford. p. 75-85, 1993.