FANTÁSTICO – modo

Marisa Martins Gama-Khalil

Atualmente há variadas tendências de abordagem teórica da ficção fantástica, contudo, duas delas se destacam. A primeira, a genológica, tem a Introdução à literatura fantástica como seu texto mais representativo e difundido. No caso dessa abordagem, costuma-se dar ênfase às diferenças e demarcar territórios em que o fantástico ficará situado ao lado de gêneros vizinhos, como o estranho e o maravilhoso. A segunda, a modal, é defendida por teóricos que compreendem a ficção fantástica por uma visão que privilegia não somente a diferença, mas as similitudes.

Um dos estudos que primeiro se debruçou sistematicamente sobre a falibilidade da noção de gênero para a definição da literatura fantástica foi o de Irène Bessière. A autora francesa argumenta que a compreensão por meio da perspectiva de gênero limita a diversidade de obras construídas a partir de variadas formas de trabalho que surpreendem ou contrariam o leitor. O fantástico se planteia, então, como uma espécie de modo, que se constitui por intermédio de formas e temáticas cujo desígnio seria o de incitar a incerteza. O subtítulo do livro em que Bessière reflete sobre o fantástico aponta para essa concepção: A narrativa fantástica: a poética da incerteza (1974). E essa incerteza é determinada em função de uma impossibilidade de decifração. Ainda que não tenha forjado explicitamente a noção modo fantástico, Bessière vem sendo tomada como base para estudiosos que seguem essa linha, como o italiano Remo Ceserani (2006) e o português Filipe Furtado (2011).

Ceserani, ao reler o estudo de Bessière propõe no seu livro intitulado O fantástico um estudo sobre procedimentos formais e sistemas temáticos do fantástico. Ele reconhece que os diversos recursos formais e configurações temáticas não são privativos a uma modalidade literária particular, entretanto, existem “procedimentos formais e sistemas temáticos que (embora não sendo exclusivos dele) são muito frequentes no mundo fantástico e foram menos ou mais amplamente aplicados, diversamente combinados” (CESERANI, 2006, p. 68). Como adverte Ceserani, outros modos literários valem-se também desses sistemas formais e temáticos, todavia os que são elencados por ele são constantes em muitas narrativas do modo fantástico. Para demonstrar o impacto dessas formas e temas, Ceserani cita exemplos recolhidos de diversas narrativas fantásticas de muitas épocas, contrariando a visão genológica de Todorov (2004) de que o fantástico estaria encerrado nos limites dos séculos XVIII e XIX.

Outra estudiosa importante para a compreensão do modo fantástico é Rosemary Jackson, figurando também como embasamento de Ceserani e Furtado. Em seu estudo intitulado Fantasy: literatura y subversión (1986), Jackson observa a limitação que o estudo sobre a literatura fantástica baseada na ideia de gênero pode provocar, restringindo boa parte de textos potencialmente insólitos, e propõe sua substituição pelo modo literário fantástico, entendido especificamente por meio da noção de fantasia. O modo fantástico, para Jackson, assume diferentes fantasias em histórias com variados temas e formas, constituindo-se por meio de dois grandes polos: o maravilhoso e o mimético. O primeiro abarca relatos nos quais não se questiona a versão que o narrador apresenta dos fatos, inclusive quando parecem contrariar o processo da narração; o segundo abrange narrativas que imitam uma realidade externa, “relatos que sostienen una declaración implícita de equivalencia entre el mundo ficcional representado y el mundo real exterior al texto” (JACKSON, 1986, p. 31). A fim de caracterizar a subversão operada pela literatura fantástica, a autora vale-se de um exemplo da ótica, a zona paraxial, que é uma região na qual os raios de luz parecem unir-se em um ponto por trás da refração, ponto no qual o objeto e a imagem dele dão a impressão de chocarem-se, contudo nem o objeto nem a imagem encontram-se de fato naquele lugar, nele nada reside. Para Jackson, a zona paraxial pode ser comparada à região espectral do fantástico, cujo espaço não é nem completamente real nem irreal, trata-se de uma região indeterminada, que caracteriza o modo fantástico.

Filipe Furtado, em seu livro A construção do fantástico na narrativa (1980), ao reler Introdução à literatura fantástica (2004), modifica algumas nomenclaturas, porém mantém-se muito conexo às considerações de Todorov. Entretanto, no verbete “Fantástico: modo” (2011), que escreve para o E-dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia, Furtado, fundamentado em Jackson, Bessière e em outros estudiosos, mostra aos leitores a possibilidade de compreender a literatura fantástica como um modo; tal modo agrega uma heterogeneidade de textos e gêneros por intermédio de um fator que lhes é comum: o sobrenatural, integrando o conto de fadas, o gótico, o maravilhoso, o estranho, a ficção científica e outras modalidades. No sentido de especificar ainda mais o conceito de sobrenatural e torná-lo mais ajustável às múltiplas formas em que se apresentam na ficção fantástica, Furtado adota o conceito de metaempírico. Ele argumenta com muita pertinência sobre a validade do uso do termo em relação aos textos do modo fantástico, porque é capaz de abarcar não somente as manifestações consideradas sobrenaturais como também outras manifestações que, não sendo explicitamente dotadas de uma sobrenaturalidade, podem revelar-se como insólitas e aterrorizantes. O que agrega todas essas manifestações é o fato “de se manterem inexplicáveis na época de produção do texto devido a insuficiência de meios de percepção, a desconhecimento dos seus princípios ordenadores ou a não terem, afinal, existência objectiva” (FURTADO, 2011).

Sem explicação é o que caracteriza, pois, o acontecimento que irrompe na narrativa fantástica, ou insólito, como defende a pesquisadora brasileira Lenira Marques Covizzi (1978). Ao estudar as narrativas de dois autores latino-americanos, Rosa e de Borges, não enclausura as formas de trabalho do fantástico em uma visão genológica, balizando seu alcance ou impondo limites, mas, através da noção de insólito, possibilita a ampliação de formas de leitura dessa ficção. Ainda que ela não tenha feito referência ao modo fantástico, sua forma de ler a ficção fantástica contempla tal perspectiva. Covizzi acredita que o elevado grau de estranheza da ficção fantástica deve-se a uma singularização levada ao extremo, estranheza que teria uma função crítica. Por isso, para a pesquisadora brasileira, o insólito sempre existiu; “porém hoje ele passou a ser o elemento determinante” (COVIZZI, 1978, p. 29) e o resultado é o de que a “ficção é mais ficção”. O insólito, em Covizzi, é o procedimento que agrega várias manifestações congêneres. E nesse sentido, adota indiretamente uma perspectiva modal.

No ano de 2006, o pesquisador boliviano Renato Prada Oropeza retoma a noção de insólito, no ensaio “El discurso fantástico contemporáneo: tensión semántica y efecto estético”, como noção agregadora que caracteriza a ficção fantástica, e, ainda que tome o contemporâneo como seu corpus, ele deixa evidente que o insólito perpassa todas as épocas. Não faz distinção por gêneros, mas vai mostrar que o insólito, que aglutinará os discursos fantásticos; nesse sentido, podemos compreender que Prada Oropeza adota indiretamente a perspectiva modal. O insólito é entendido a partir de uma perspectiva de análise que leva em conta a tensão semântica e o efeito estético, porque o discurso fantástico desencadeia uma estética do “sem sentido”, a “razão da desrazão” (PRADA OROPEZA, 2006, p. 58) e o leitor deve lê-lo considerando o insólito que nele emerge como um elemento plausível, verossímil, deve aceitar o paradoxo.

A pesquisadora francesa Jacqueline Held (1980), em estudo dedicado a estabelecer relações entre a criança e a literatura fantástica, opta pelo uso da noção de fantástico em vez de maravilhoso, porque acredita que esta última degenerou-se ao ser associada quase que exclusivamente ao conto folclórico e ao conto de fadas, açambarcando geralmente ficções relacionadas à evasão e oferecidas ao público infantil. Para Held, o fantástico, seja aquele encontrado na literatura, na música, na pintura, não é uma obra de arte que se constitui pelo inimaginável, mas é uma obra antes de tudo composta pelo imaginável. Ela defende ainda que o “fantástico […] é feito de insólito, e o insólito ‘para nós’ poderá muito bem ser a realidade comum dos outros” (HELD, 1980, p. 29). Essa visão de Held, que agrega todas as manifestações insólitas sob o rótulo de fantástico coaduna-se à abordagem modal, ainda que ela não seja explicitada no decorrer do estudo.

Seguindo as coordenadas de Filipe Furtado, grande responsável pela noção em tela neste verbete, e constatando o seu uso nos estudos contemporâneos, pode-se afirmar que o modo fantástico, que pode ser caraterizado como uma ficção do metaempírico, ao agregar diferentes modalidades e dispensar as divisões comuns em uma abordagem genológica, oferece possibilidades amplas ao pesquisador da área de articular novas possibilidades de leitura no campo dessa ficção.

REFERÊNCIAS

BESSIÈRE, Irene. Le récit fantástique. La poétique de l’incertain. Paris: Larousse, 1974.
BESSIÈRE, Irene. El relato fantástico: forma mixta de caso y adivinanza. In: ROAS, David (Org). Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco/Libros [S.l], p. 83-104, 2001.
CASARES, Adolfo Bioy. Prólogo. In: CASARES, Adolfo Bioy; BORGES, Jorge Luis; OCAMPO, Silvina (Org). Antología de la literatura fantástica. 5. ed. Buenos Aires: Debolsillo, 2009.
CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução Nilton Tripadalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006.
COVIZZI, Lenira Marques. O insólito em Guimarães Rosa e Borges. São Paulo: Ática, 1978.
HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. São Paulo: Summus, 1980.
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.
FURTADO, Filipe. Fantástico: modo. Disponível em: http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/fantastico-modo/. Acesso em junho de 2011, 2009.
JACKSON, Rosemary. Fantasy: literatura y subversión. Buenos Aires: Catalogos editora, 1986.
PRADA OROPEZA, Renato. El discurso fantástico contemporáneo: tension semántica y efecto estético. Revista Semiosis, v. 2, n.3, p. 54-76, 2006.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, p. 29-46, 2004.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

ALAZRAKI, Jaime. ¿Que es lo neofantástico?. In: ROAS, David (Org). Teorías de lo fantástico. Madrid: Arco/Libros [S.l], p. 265-282, 2001.
CALVINO, Ítalo. Definições de territórios: o fantástico. In: Assunto encerrado: Discursos sobre literatura e sociedade. Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, p. 256-258, 2006.
CORTÁZAR, Julio. Rayuela. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1968.