REAL MARAVILHOSO

Marisa Martins Gama-Khalil

A noção de real maravilhoso vem sendo confundida frequentemente com outras noções, como as de realismo mágico e realismo maravilhoso, mesmo em meios acadêmicos, e os equívocos parecem estabelecer-se em função de serem termos coetâneos que, em linhas gerais, definem a junção inesperada e abrupta de uma realidade cotidiana a uma realidade maravilhosa; contudo as concepções não são sinônimas, ao contrário, apontam para tendências diversas do modo fantástico.

A estudiosa Bela Josef, no artigo intitulado “Uma metáfora da realidade”, no qual faz uma análise criteriosa do romance Cem anos de solidão, do escritor colombiano Gabriel García Márquez, assinala algumas técnicas usadas pelo autor no sentido de fazer irromper o sobrenatural em meio a uma realidade cotidiana. Ao examinar o fantástico que se apresenta na obra de Márquez, Josef (1993, p. 175) assevera que “é uma nova dimensão da realidade, que tem antecedentes no realismo mágico de Alejo Carpentier”. Fica evidente nessa afirmação que a estudiosa toma como sinônimas as noções de real maravilhoso e de realismo mágico, desconsiderando totalmente que o escritor cubano Alejo Carpentier funda a noção de real maravilhoso e a contrapõe, conforme ficará evidenciado adiante, à tendência que é designada como realismo mágico. Karl Schøllhammer, em ensaio intitulado “As imagens do realismo mágico”, afirma que Carpentier teria sido o principal responsável pela divulgação do realismo mágico no ambiente literário, tendo feito “referência à expressão pela primeira vez no prólogo do romance El reino de este mundo (1949); posteriormente, o autor se apropriou do conceito, rebatizando-o para ‘real maravilhoso’” (SCHØLLHAMMER, 2007, p. 127).

Novamente temos equívocos, porque, conforme demonstraremos adiante, Carpentier não usa a expressão realismo mágico para depois rebatizá-la de real maravilhoso. Desde o já citado prólogo, Carpentier cunha a expressão real maravilhoso, defendendo-a em ensaios posteriores. Em “O barroco e o real maravilhoso”, por exemplo, ele declara abertamente as diferenças entre o realismo mágico (expressão já existente) e o real maravilhoso (expressão criada por ele). Assim, por mais que o real maravilhoso seja circundado por outras noções próximas e coetâneas, é preciso ir às fontes e explicitar suas especificidades. Seguiremos, nesse sentido, uma certa linha cronológica da criação e expansão da noção real maravilhoso na obra de Alejo Carpentier.

O prólogo do romance O reino deste mundo (CARPENTIER, 2012, 2009), cuja primeira edição ocorreu em 1949, é o espaço teórico-crítico em que Alejo Carpentier elabora suas primeiras teses sobre a tendência literária que será por ele nomeada como real maravilhoso. O enredo desse romance ficcionaliza um momento histórico do Haiti – a revolta dos escravos ocorrida no final do século XVIII -, tomando como perspectiva para a narração o olhar do escravo Ti Noel. Desde a epígrafe do prólogo em pauta, o autor recita um trecho de Os trabalhos de Persiles e Sigismunda, de Miguel de Cervantes, com o intuito de sugerir o poder de Mackandal e de Ti Noel de metamorfosearem-se em animais, poder esse com o qual o leitor entrará em contato ao ler o romance: “O que se deve entender disso de se metamorfosearem em lobos é que há uma enfermidade a que os médicos chamam mania lupina” (2009, p. 7). O fato de Mackandal e Ti Noel serem possuidores do dom das magias, do vodu e da metamorfose pode ser lido como insólito se avaliado pelas leis da lógica do mundo prosaico; entretanto, se avaliado pela perspectiva cultural e cotidiana do Haiti, são fatos sólitos/naturais. Nesse prisma, o autor afirma que o real maravilhoso deve ser compreendido a partir de uma perspectiva cultural. O entendimento dessa questão fica evidente especialmente na cena do romance em que Makhandal é posto em uma fogueira. O fogo arde e algo é visto sobrevoando as chamas. Na perspectiva dos escravos, Makhandal, valendo-se das artes da magia, metamorfoseara-se em um animal que voa; na dos homens brancos, o escravo meramente queimou. O antagonismo das duas culturas desencadeia diferentes posicionamentos em relação ao maravilhoso: concordância de um lado, negação do outro. De um lado, fé; do outro, descrença.

No prólogo, Carpentier expõe ainda que, na sua visita ao Haiti, entendeu que o real maravilhoso estava entranhado por todo lugar onde passava e compreendeu que essa presença do real maravilhoso não seria exclusiva ao Haiti, mas “patrimônio da América inteira” (CARPENTIER, 2009, p. 10). Nesse sentido, tal natureza maravilhosa da América é vinculada a uma percepção e uma experiência maravilhosas da realidade. Seguindo esse raciocínio, Carpentier (2009, p. 9) delineia sua principal tese em torno do real maravilhoso: “Para começar, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé. Aqueles que não acreditam em santos não podem curar-se com milagres de santos”. Portanto, o real maravilhoso, encontra-se acoplado diretamente a uma cultura. De acordo com Carpentier, há diferenças entre o maravilhoso delineado pela arte surrealista e aquele elaborado pelo real maravilhoso, pois neste a própria realidade é maravilhosa, já o maravilhoso do surrealismo é construído com truques ilusionistas, “reunindo-se objetos que não se costumam juntar: a velha máquina de costura sobre uma mesa de dissecação […], os caracóis no táxi chuvoso, a cabeça de leão na pélvis de uma viúva” (2009, p. 7). Concordando com essa explicação, é possível afirmar que “o real maravilhoso é aquela modalidade de maravilhoso que se encontra entranhado na cultura de um povo e que às vezes migra desse lugar para as páginas de um livro” (GAMA-KHALIL, 2018, p. 24).

Em artigo publicado em 1964, intitulado “Do real maravilhoso americano” (1987), Carpentier expande a noção de real maravilhoso temporal e espacialmente. Por um lado, aponta para o fato de o real maravilhoso não se atrelar a uma temporalidade histórica determinada; por outro lado, corrige a determinação espacial que fizera no Prólogo, quando vinculou o real maravilhoso especialmente à América, ao mostrar que outros lugares também possuem culturas das quais emergem a maravilha e o maravilhoso, como a China, o Islão e a União Soviética. Em todos esses lugares, Carpentier não conseguia entender plenamente as coisas que via, porque lhe faltava a inserção na civilização e na cultura daqueles espaços e a compreensão dos seus textos, gravados na língua, mas também no solo desses territórios. Nesse artigo, mais uma vez opõe o real maravilhoso do surrealismo, evidenciando que este lida com um maravilhoso forjado, ao passo que naquele o maravilhoso encontra-se em estado natural como uma condição fundamental do real que o abriga. Há ainda no artigo em tela a demonstração de que o real maravilhoso não se encontra apenas em sua obra, mas circunda espaços das obras de outros autores hispano-americanos.

No ano de 1975, Carpentier profere a conferência “O barroco e o real maravilhoso” no Ateneu de Caracas, na qual retoma as discussões acerca do real maravilhoso, contudo, nesse momento realiza um enlace dessa noção por ele cunhada com o barroco, conforme fica evidente no título da conferência. Muito além de ser apenas um estilo de época datado histórica e temporalmente, na visão de Carpentier, o barroco pode ser designado como “uma espécie de força criadora que retorna ciclicamente ao longo de toda a história das manifestações artísticas” (CARPENTIER, 1987, p. 111). Uma das principais facetas do barroco é a extravagância, a multiplicidade e a diversidade. Por isso a estética barroca norteia-se pelo horror ao vazio, pela negação ao equilíbrio, movendo-se por uma pulsão capaz de extrapolar os seus próprios limites. A relação entre o barroco e o real maravilhoso, para o escritor cubano, estaria fundamentada na condição de ambos apresentarem estilos atravessados pelo maravilhoso e pelo extraordinário: “O extraordinário não é necessariamente belo ou bonito. Não é bonito nem feio; é acima de tudo assombroso por aquilo que tem de insólito. Tudo o que é insólito, tudo o que é assombroso, tudo o que escapa a normas estabelecidas é maravilhoso” (1987, p. 122). Mais uma vez ele retoma a diferença entre o surrealismo e o real maravilhoso, assim como também trata da diferença entre o real maravilhoso e o realismo mágico. Para esse cotejo, recorre a Franz Roh e observa que o realismo mágico é a arte que trabalha com as formas reais de um modo não condizente com a realidade cotidiana, ao passo que o real maravilhoso é encontrado “em estado bruto, latente, onipresente em tudo o que é latino-americano” (1987, p. 125), à medida que em terras latino-americanas o real e o cotidiano são naturalmente maravilhosos. Seguindo a argumentação de Carpentier, estabelecemos a seguinte diferenciação: “o que temos […] no realismo mágico seria a naturalização do irreal (ou seja, ocorre a naturalização daquilo que é de uma ordem não natural) e no real maravilhoso ocorre a sobrenaturalização do real (ou, seja, a natureza do real de dada cultura já traz em si a força do sobrenatural)” (GAMA-KHALIL, 2018, p. 27).

Ao longo dos escritos e conferências Carpentier continuará defendendo ideias que se relacionam à noção de real maravilhoso. Em Aula Magna da Universidade Central da Venezuela, no ano de 1975, intitulada “Consciência e identidade da América” (2006), defende uma percepção especial da história por parte do latino-americano, que deve ser deflagrada por meio de uma necessária de sua história, revisando-a e reinventando-a não a partir da perspectiva dos brancos, contudo com a eficácia de uma visão que procure valorizar sua própria cultura. A mistura do índio, do negro e do europeu, todo o processo de mestiçagem, deve influenciar a irrupção de uma arte que valorize a simbiose cultural. Assim, essa noção forjada por Carpentier ultrapassa a simples condição estilística, açambarcando também e especialmente um sentido estético-político.

REFERÊNCIAS

CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. Tradução de Rubia Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Edições Vértice, 1987.
CARPENTIER, Alejo. Consciência e identidade da América. Tradução de Rubia Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: Martins Fontes. p. 155-164, 2006.
CARPENTIER, Alejo. Prólogo. O reino deste mundo. Tradução de Marcelo Tápia. São Paulo: Martins Martins Fontes, 2009.
CARPENTIER, Alejo. El reino de este mundo. Madrid: Alianza Editorial, 2012.
GAMA-KHALIL, Marisa Martins. Real maravilhoso e realismo mágico: discussões conceituais. In: GAMA-KHALIL, Marisa Martins; BORGES, Lilliân (Org). No território de mirabilia: estudos sobre o maravilhoso na ficção. Rio de Janeiro: Bonecker; Dialogarts, p. 18-29, 2018.
JOSEF, Bella. Uma metáfora da realidade. In: O espaço reconquistado: uma releitura – linguagem e criação no romance hispano-americano contemporâneo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 169-187, 1993.
SCHØLLHAMMER, Karl Erik. As imagens do realismo mágico. In: SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Além do visível: o olhar da literatura. Rio de Janeiro: 7Letras. p. 125-145, 2007.