MARIA FIRMINA DOS REIS – ficcionista

Fernando Monteiro de Barros

Maria Firmina dos Reis (1822-1917) foi uma escritora maranhense cujo único romance, Úrsula, publicado em São Luís em 1859, permaneceu praticamente desconhecido até ser descoberto em uma loja de livros usados em 1962. O romance foi reeditado em 1975 e, nos últimos anos, vem sendo objeto de um crescente interesse acadêmico, principalmente pela forma pioneira como sua autora, mestiça afrodescendente, retratou a escravidão e concedeu protagonismo aos personagens escravizados, além do fato de Firmina dos Reis integrar o rol das romancistas pioneiras em nossa literatura. Contudo, além dessas questões, o romance é fortemente inscrito no modo narrativo gótico e traz elementos intertextuais relacionados a O castelo de Otranto, de Horace Walpole.

A personagem título é uma bela e inocente donzela que passa a ser cobiçada pelo vilão da narrativa, o Comendador Fernando, dono de muitas terras e crudelíssimo senhor de escravos. Há um evidente paralelo aqui com os personagens walpoleanos Isabella e Manfred, que inauguraram na tradição gótica os modelos do aristocrata malévolo e da dama em apuros. O desejo sexual enquanto transgressão também se faz presente na mesma modalidade, o incesto, pois, assim como Manfred era sogro de Isabella, o Comendador é tio de Úrsula. Do mesmo modo como acontece em Otranto, o sexo aparece como a principal causa do terror para a personagem feminina.

Tal como em muitas obras pertencentes ao Gótico brasileiro, a cenografia do binômio casa-grande & senzala se afigura como locus horribilis, e, no contexto de Úrsula, o martírio dos escravizados constitui a principal causa do horror na narrativa.

Apesar da autoria feminina, o romance de Firmina dos Reis se filia à tradição do Gótico masculino. No Gótico feminino, além do fato de suas escritoras serem mulheres, como Ann Radcliffe e Clara Reeve, temos um enredo cômico, pois o vilão se converte em herói e se casa com a donzela, em perfeito final feliz. Já no Gótico masculino, em romances escritos por homens (Horace Walpole, Matthew Lewis), o elemento feminino – que aqui engloba potências dionisíacas como a obscuridade, o irracionalismo, a paixão – decreta a ruína do patriarcalismo, em um enredo trágico. Em Otranto, Manfred termina seus dias em um convento, arrependido por seus crimes, e o mesmo fim tem o Comendador Fernando, em chave intertextual explícita.

Ao contrário do que ocorre no romance gótico inglês tradicional, não há a presença do fantástico no romance de Maria Firmina dos Reis. Há, contudo, uma forte presença da fanopeia gótica de matriz à la Matthew Lewis nas visões que Úrsula tem sobre o Comendador em seus pesadelos, bem como nas visões que o herói da narrativa, Tancredo, tem sobre a personagem Adelaide, que encarna o arquétipo da femme fatale com toda a carga romântica de demonismo.


BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

BARROS, Fernando Monteiro de. Do castelo à casa-grande: o “Gótico brasileiro” em Gilberto Freyre. SOLETRAS, São Gonçalo: UERJ, v. 1, n.27, p. 80-94, 2014.
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