ESTRANHO

 Maria Cristina Batalha

Tomado em seu sentido amplo, o termo “estranho” remete a uma ocorrência que nos interpela por não ser familiar, nem previsível e tampouco habitual.

Partindo da análise do conto O homem da areia, de E.T.A. Hoffmann, para aí examinar os mecanismos internos de uma obra de invenção narrativa, Sigmund Freud escreve o ensaio “O Estranho”, em 1919, associando o conceito de Unheimlich ao Fantástico como gênero literário, no qual busca compreender aquilo que provoca em nós o horror e o medo. Nesse ensaio, Freud aborda as questões que envolvem esse conceito trazendo-o para o campo da estética, vinculando-o não somente à teoria da beleza, mas também a das qualidades do sentir. Em oposição ao Heimlich (doméstico, familiar, caseiro, aconchegante) – e também referindo-se ao que pode estar fora da nossa vista, oculto –, o seu contrário, o Unheimlich, remete ao não-familiar, o misterioso, o estranhamento que experimentamos com relação àquilo que nos parecia ser familiar, conhecido, já experimentado, mas que, em determinado momento, vem à luz (FREUD, 1933, vol.XII, p. 164). Assim, o “estranho”, para Freud, “é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, velho, e há muito familiar”, mas que nos causa “estranheza”, ameaçando o conforto do ambiente familiar pelo irrompimento do horror e do atemorizante.

No referido estudo, Freud sugere que o sentimento de inquietação, ou estranhamento, deve se relacionar com experiências muito mais profundas do que as das simples visões de autômatos, como a boneca Olympia, do conto de Hoffmann, ou as da percepção de objetos inanimados que recobram vida repentinamente. Um dos casos citados por Freud, e que ele toma emprestado de Jentsch para explicar o unheimlich, é o daquele em que se duvida que um ser aparentemente animado não está vivo e, inversamente, que um objeto sem vida está animado (FREUD, 1933, p. 175). Ou seja, o unheimlich aparece toda vez que nos afastamos do lugar comum da realidade e que o “impossível” irrompe, instalando a ambiguidade a respeito daquilo que distinguimos como animado/inanimado. Se consideramos este fio de raciocínio freudiano, o estranho será identificado aos fantasmas do sujeito. Nesse caso, ele é interior ao personagem e tem a ver com as desordens internas das quais se tem ou não consciência, não podendo, consequentemente, ser relacionado com o sobrenatural.

Por isso, Louis Vax (1987), partindo dessa noção freudiana de unheimlich aplicada aos relatos de Hoffmann, sugere que o Fantástico implica necessariamente uma emoção negativa, aproximando-se da ideia de terror.

Assim, para Freud, o que caracteriza o relato como Estranho é o efeito de “insegurança intelectual” que experimenta o leitor. No entanto, se tomarmos o exemplo de O homem da areia, a causa dessa inquietação não provém do personagem da boneca Olympia, mas sim do próprio Nathanael, cujas perturbações compartilha com o leitor. Por isso, segundo a interpretação freudiana, não são fantasias de um louco, mas razões e situações que delineiam uma base de verdade que são explicadas pelo fato de que Nathanael estava submetido ao “jogo cruel de potências obscuras” (FREUD, 1933, p. 91-2).

Em 1970, na Introdução à literatura fantástica, Tzvetan Todorov formula sua definição do Fantástico partindo de definições avançadas por seus predecessores e tenta cernir de forma mais precisa a especificidade do relato fantástico, ancorando-o na hesitação experimentada pelo leitor. Diz ele que este, ao identificar-se com o personagem principal, hesita quanto à natureza do acontecimento “estranho” como “fruto da imaginação ou o resultado de uma ilusão” (TODOROV, 1975, p. 165).

Todorov, ao fazer a distinção entre Fantástico, Maravilhoso e Estranho, incorpora em sua definição o conceito de unheimlich, como experiência de uma presença inquietante que irrompe no cotidiano, mesmo ignorando intencionalmente as implicações psicológicas apresentadas por Freud. Embora ele se utilize do critério freudiano para situar o Fantástico entre os dois extremos, posteriormente, Todorov deixa de lado a interpretação psicanalítica da experiência do retorno, na idade adulta, de traumas e angústias da infância, e, na segunda parte do livro, estabelece uma classificação baseada no aspecto semântico que ele organiza em torno dos temas do “eu” e do “tu”.

Assim, em sua tentativa de cernir a especificidade do Fantástico, Todorov o coloca entre dois gêneros vizinhos: o Maravilhoso e o Estranho. Para ele, na medida em que o elemento sobrenatural se esclarece e a ele se atribui uma explicação racional, o Fantástico deixa de existir e recai em outro gênero, ou seja, o “Estranho puro” (TODOROV, 1975, p. 47-59). Caberiam aqui duas reflexões a respeito das formulações do autor: seria a categoria de “Estranho puro” um gênero literário? O estranho que irrompe no Fantástico deveria ser necessariamente da ordem do sobrenatural, ou, pelo menos, afigurar-se para o leitor como tal?

Em primeiro lugar, entendemos que o elemento estranho – presente em todo relato fantástico – é constitutivo dessa modalidade literária, mas não é exclusivo a ela. Nos Romances Policiais e de Mistério, por exemplo, o inexplicável se resolve pela conjugação de todos os pontos de vista dos personagens que chegam, em comum, a uma solução aceitável, tanto no plano da coerência interna, quanto no plano da realidade extratextual. No caso do Maravilhoso, somente a exigência da coerência interna seria respeitada e aceitaríamos o elemento estranho como da ordem do irreal. Assim sendo, o estranho é pertinente, tanto ao Romance Policial, quanto ao Fantástico e ao Maravilhoso, não podendo, por sua simples presença, caracterizar uma obra como representativa de um gênero em si mesmo.

Por outro lado, o elemento pode provir de origens diversas, como fantasmas, mortos-vivos, autômatos, duplos ou sonhos. Frankenstein, por exemplo, não nos remete ao sobrenatural, nem tampouco às visões alucinatórias do protagonista de Le Horla podem ser lidas nessa perspectiva. Isto significa afirmar que o aparecimento do fato “estranho” na narrativa ficcional não é necessariamente da ordem do “irreal” ou do “sobrenatural”, mesmo que este o seja apenas do ponto de vista do protagonista; tampouco corresponderá necessariamente a uma impressão de estranheza com relação àquilo que tomamos por realidade. Sendo assim, o Estranho deve sua existência à necessidade que sentimos de nos remetermos sempre ao que é comumente aceito como real, mas que pode não ser senão uma visão alucinatória. A hesitação experimentada pelo personagem-narrador de Maupassant, em Le Horla, oscila entre o sentimento do estranho como desregramento de si mesmo ou como desregramento do mundo. De modo geral, as manifestações de loucura, alucinação e os sonhos podem ser tomados como figuras internas de elemento perturbador e não devem ser identificadas com o sobrenatural. Elas desestabilizam o equilíbrio intelectual do personagem e, por via de consequência, obrigam o leitor a rever seus próprios quadros de referência.

Na verdade, a especificidade do Fantástico em relação a esses dois polos sugeridos por Todorov reside na introdução da subjetividade como elemento organizador central desse discurso. É o entrechoque de subjetividades distintas que estrutura o conto O homem da areia. Na interpretação psicanalítica de Freud, foi a relação ambígua entre o “latente” e o “manifesto” que se trava na consciência, ou seja, o complexo de castração, que havia servido de elemento impulsionador do conto. Do ponto de vista do leitor, os estudos de Freud permitem desvendar os mecanismos através dos quais o leitor permanece o maior tempo possível na indecisão: o que está sendo relatado é fruto da invenção e do “maravilhoso” – segundo a percepção do protagonista -, ou fruto de coincidências reais que se lhe afiguram como “estranhas”, conforme sugere a personagem de Clara? Enquanto Nathanael se apaixona por Olympia, sem se dar conta de que se trata de uma boneca, os outros personagens não se deixam enganar.

No caso do Romance Policial, não é a subjetividade de personagens como Dupin, Sherlock Holmes ou Hercule Poirot, ou sua consciência dos fatos que os impulsiona à decifração, mas sim a sua capacidade intelectual que se vê estimulada e suscita a vontade de resolver o mistério. O enigma se coloca assim fora do personagem, e sua interpretação estará em consonância com a consciência que os outros personagens terão do mesmo fato. Em contrapartida, na literatura fantástica, personagem e fenômeno se confundem em uma cumplicidade que não pode ser compartilhada pelos outros. Por conseguinte, o relato policial e de mistério se encaixam no conjunto mais amplo de obras chamadas “realistas”, qualquer que seja o programa estético que o termo compreenda, e sabemos que este varia necessariamente em função da imagem de realidade que se tem em uma determinada época e em uma determinada cultura de referência.

No entanto, qualquer que seja a natureza do fenômeno “estranho” e qualquer que seja o ponto de vista a partir do qual ele se manifesta no texto, o “estranho” faz parte de gêneros vizinhos ao Fantástico e constitui elemento obrigatório em sua construção. No nascimento do gênero Fantástico, constata-se algo que a razão não alcança, provocando a curiosidade da decifração e do entendimento, mas que desemboca em um impasse, e o jogo da busca de sentido se transforma em logro.

Assim, parece-nos mais conveniente abandonar a categoria de Estranho como gênero ou subgênero e nos remetermos ao relato policial ou de mistério quando nos referimos ao conjunto de obras nas quais os acontecimentos narrados são compatíveis com a imagem que convencionamos chamar de realidade, respeitando-se, da mesma forma, os códigos da verossimilhança. Neste caso, o estranho é o elemento que instiga à decifração, propósito e fundamento desse tipo de ficção. Quando, por outro lado, quisermos nos referir às obras não compatíveis com a imagem convencional da realidade, situadas fora dos códigos da verossimilhança, seria mais conveniente usarmos a conceituação de Maravilhoso. Nesta categoria, o estranho faz parte do universo textual e não parece entrar em confronto com a realidade extraficcional. Mesmo que o elemento “estranho” que irrompe no Romance Policial ou de Mistério seja de natureza diferente daquele que se introduz no relato Fantástico ou Maravilhoso, sua presença não nos parece caracterizar, nem no primeiro caso, nem no segundo, um gênero em si mesmo.

A partir destes dois polos – o mistério e o maravilhoso – podemos então pensar o Fantástico como sendo aquele que aceita provisoriamente o código da verossimilhança para abrir uma brecha neste mesmo código e desconstruí-lo por dentro: no Fantástico, o estranho permanece sem decifração e também não consegue ser incorporado ao universo criado pela ficção. Então, nas duas modalidades que tomamos aqui como exemplo, a introdução do acontecimento estranho não se sustenta como categoria pertinente capaz de estruturar um gênero literário, uma vez que está presente tanto no Maravilhoso como no Fantástico. Nesse último caso, a sustentação mimética realista prepara o terreno para a irrupção do acontecimento estranho e perturbador que faz balançar as certezas comuns percebidas como reais. O leitor, tomado pelo equívoco, não pode mais se distanciar da crise e se reconfortar em uma leitura de evasão.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Das Unheimlich; L´inquiétante étrangeté. InEssais de psychanalyse appliquée, Paris: Gallimard. G.W. XII, p. 229-268; 163-211, 1919[1933].
HOFFMANN. E.T.A. Contes d´Hoffmann, 1. Fantaisies à la manière de Callot (1808-1815), Contes nocturnes (1815-1817). Tradução de Henri Egmont, Madeleine Laval, Albert Béguin e André Espiau de la Maëstra. Prefácio de Albert Béguin. Paris: Club des Libraires de France, 1956.
MAUPASSANT, Guy de. Oeuvres complètes, 1, 2, 3, 4. (Org). Prefácio de Pascal PIA. Paris: Albin Michel / Maurice Gonon, s/d.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975[1970].
VAX, Louis. La séduction de l’étrange. 2. ed. Paris: Quadrige/Presse Universitaire de France, 1987[1965]