EDGAR ALLAN POE – ficcionista

Renata Philippov

Edgar Allan Poe (Boston, 1809 – Baltimore, 1849), poeta, ensaísta, crítico literário, jornalista, editor de algumas das revistas literárias mais importantes de seu tempo, figura central e, ao mesmo tempo, controversa dentro e fora da literatura norte-americana, então nascente. Odiado por alguns, desprezado por outros, idolatrado por poucos quando em vida e, posteriormente, celebrado como um dos gigantes da literatura norte-americana do século XIX, assim poderia ser descrita a figura de Edgar Allan Poe. Nascido Edgar Poe em 1809, filho de atores teatrais, cedo se torna órfão, é adotado extraoficialmente pelos Allan, ricos comerciantes de Richmond, no estado da Virginia. Ainda criança, muda-se com a família para a Inglaterra, onde frequenta um internato que, segundo a sua fortuna crítica, parece ter servido de modelo para o conto “William Wilson”, que viria a publicar muitos anos depois, em 1839, ainda com o título original de “William Wilson – a tale” (Optou-se, por questão metodológica, por se manter o título das obras aqui mencionadas todas no original. Ao final deste verbete, na bibliografia, é possível acessar as obras originais bem como indicações de traduções para o português). Logo percebe sua vocação para o texto literário e, ainda adolescente, começa a estudar os clássicos (Shakespeare, Milton) e a escrever poesias. No entanto, as relações familiares começam a se deteriorar após a morte da mãe adotiva e por conta da discrepância de interesses e projetos envolvendo Poe e o pai adotivo. Este, comerciante, não concorda com as ideias de Poe no sentido de se tornar um poeta nem com as dívidas que começa a criar, e a crise se acentua, com raros momentos de trégua.

Em 1826, Poe entra para a Universidade da Virginia, em Charlottesville, a primeira universidade norte-americana e então recém-inaugurada. Lá permanece apenas por um ano por questões de dívidas financeiras, apesar de ter, segundo relatos da época, aproveitado bastante de seus estudos.

Em 1827, Poe se alista no Exército norte-americano usando o nome de Edgar A. Perry. Com ajuda financeira de outros soldados, publica um primeiro grupo de poemas, Tamerlane and Other Poems (1827) e, em 1829, passa a integrar a renomada Academia Militar de West Point. É desse período a sua segunda coletânea, Al Aaraaf, Tamerlane and Minor Poems (1829). Se, inicialmente, a carreira militar parecia ser o lugar certo para Poe, dada a sua boa reputação junto a seus superiores e colegas, com decorrente rápida promoção, logo percebe que não era ali que deveria ficar e força a Corte Marcial, sendo acusado de desobediência e negligência com suas tarefas. Acaba sendo expulso de West Point em 1831, período em que também já começa a escrever seus primeiros contos por entender que, assim, poderia ter sucesso financeiro, algo até então não obtido com seus poemas. A partir de 1832 passa a publicar tais contos em jornais e periódicos, caso de “Metzengerstein” (seu primeiro conto publicado, ainda em 1832) e já trazendo a espacialidade gótica e o terror, marcas de suas obras.

A partir de 1833, dado o agravamento das relações com o pai adotivo, Poe muda-se para Baltimore, para viver com a tia, Maria Clemm, e a prima, Virginia, parentes por parte de pai biológico. A partir de então não mais parará de publicar contos e tentar emplacar sucesso literário e jornalístico (Poe sonha com uma revista só sua e passará, até o final da vida, a trabalhar como revisor e editor de várias revistas e jornais, alguns dos quais muito reconhecidos na época, como o Southern Literary Messenger e a Graham’s Magazine). É com o conto “M.S Found in a Bottle” (1835) que ganha certa notoriedade, pela primeira vez, e é premiado em concurso literário, o primeiro de vários.

Em 1836, tenta, sem sucesso, publicar Tales of the Folio Club: Eleven Tales of The Arabesque, uma primeira coletânea de contos escritos e publicados entre 1832 e 1836, primeiramente e em sua maioria, em jornais. Dessa coletânea fazem parte, além de “Metzengerstein” (1832), “Berenice” (1835), “Morella” (1835), dentre outros contos, e vemos, mais uma vez, a forte presença de sua temática de terror, do duplo, de morte e aniquilação.

Nesse mesmo ano de 1836, Poe e sua prima, Virginia, casam-se, o que causa certo escândalo na sociedade conservadora de então – afinal, ela tinha 13 anos e precisaram, segundo biógrafos de Poe, falsificar documentos. Segue-se uma vida literária de altos e baixos, reconhecimentos, aclamações e profundo desprezo se alternando ao longo dos anos. Como editor e crítico literário, julga o que lê segundo seus próprios preceitos, o que resulta em resenhas nem sempre favoráveis e consequentes querelas literárias e perdas de emprego, com decorrente necessidade de constantes mudanças de casa e cidades (Boston, Baltimore, Nova Iorque, Filadélfia).

Continua publicando diversos poemas e totaliza cerca de oitenta contos, além de muitas resenhas e ensaios críticos bastante relevantes para se entender suas considerações sobre poesia e prosa, tais como “The Philosophy of Composition” (publicado originalmente em 1846, e no qual discute como teria, passo a passo, escrito seu poema mais famoso, “The Raven”, poema esse publicado em 1845, premiado e aclamado pela crítica e público), “The Poetic Principle” (escrito em 1848, mas perdido, enquanto manuscrito, pelo autor, o qual o teria reescrito e só viria a ser publicado postumamente, em 1850) e “Review of ‘Twice-Told Tales’” (resenha de coletânea de contos de Nathaniel Hawthorne, seu contemporâneo, publicada em 1842). Em comum, esses textos críticos trazem o cerne de sua teoria estética e poética: a teoria do efeito final, para o qual todos os eventos e elementos dos poemas e narrativas deveriam culminar, a centralidade da beleza, principalmente a da morte da mulher amada, como tema fundamental para captar o interesse do leitor e garantir o efeito final, e a musicalidade da linguagem, mesmo em prosa.

Além disso, segundo a extensa fortuna crítica de Poe, é possível analisar seus poemas e contos por diferentes prismas e como representantes do gótico, do grotesco, do fantástico e do estranho. Podem ser mencionados a forte e recorrente presença de atmosfera soturna e lúgubre, do macabro mais aterrorizante, com a espacialidade e maquinaria tributárias do gótico inglês, além de várias instâncias em que personagens e narradores (e, consequentemente, os leitores) hesitam entre aceitar ou duvidar dos eventos narrados – o que caracteriza, segundo Todorov (1980), o fantástico – ou ainda, diante da aceitação dos fatos, o estranho, segundo esse mesmo crítico. São narrativas (mesmo no caso de poemas, temos muitas vezes narrativas em forma de poemas, como em “The Raven” e “Annabel Lee”, publicados originalmente em 1845 e 1849, respectivamente) em que a morte, a angústia, a melancolia, a destruição dominam os acontecimentos, personagens, eu-líricos e em que, após longos momentos de susto e hesitação por parte das personagens, dos narradores, e, consequentemente, de nós, leitores, somente parece haver uma saída possível: a aniquilação final.

Mesmo quando temos alguns textos considerados “cômicos”, ou, talvez, melhor dizendo “satíricos”, tais como “Hop-frog: or, the Eight Chained Ourang-Outangs” (1849), “Never Bet the Devil Your Head” (1841) ou “The System of Doctor Tarr and Professor Fether” (1844), vê-se o predomínio de um teor macabro, grotesco e de terror. Em seu Prefácio para Tales of the Grotesque and Arabesque (1840), sua primeira coletânea de contos a ser publicada, respondendo a críticas que o chamavam de produzir pseudo-horror germanista, diz o seguinte: “Se em muitas de minhas produções, o terror é a tese, eu afirmo que o terror não vem da Alemanha, vem da alma” (POE, 1840, p. 5-6, tradução da autora). Do original: “If in many of my productions terror has been the thesis, I maintain that terror is not of Germany, but of the soul” (POE, 1840, p. 5-6). É esse terror da alma que vemos na maior parte de seus poemas e contos, bem como em praticamente todos os seus textos macabros, os quais a fortuna crítica tem classificado, como dito acima, como góticos, grotescos, fantásticos ou, ainda, pertencentes ao estranho. Trazem, em geral, personagens atormentadas por seu passado (como em “The Tell-Tale Heart”, publicado em 1843), pela morte de um ente querido (casos de “Ligeia”, “Morella” e “Annabel Lee”, publicados em 1838, 1835 e 1849, respectivamente), pela angústia existencial e pela tortura física e/ou psicológica imposta por outrem ou por eles mesmos (como em “The Pit and the Pendulum” ou “The Cask of Amontillado”, respectivamente publicados em 1842 e 1846). São narradores e personagens submetidos a forte hesitação entre crer ou não nos fatos e situações a que são submetidos – segundo o fantástico todoroviano – e fadados, muitas vezes, à aceitação de sua aniquilação final – aceitação essa que pode ser lida pelo prisma do estranho, segundo Todorov (caso de “The Fall of the House of Usher”, publicado em 1839), ou ainda que tentam justificar, de forma racional, seus atos (como em “The Black Cat”, publicado em 1843).

Saliente-se certa preponderância na produção contística e poética de Poe da fantasmagoria e maquinaria góticas, que se fazem presentes pela temática, pelo encapsulamento espaço-temporal (com personagens encarceradas em prisões, casas mal-assombradas por seus passados, em palacetes invadidos pela morte avassaladora, como em “The Mask of the Red Death”, publicado em 1842, ou ainda prisioneiras de suas próprias consciências e mentes perturbadas, como em “Tell-Tale Heart” ou “The Fall of the House of Usher”). Temos ainda frequente predomínio de sufocamento de personagens (estas são emparedadas ainda vivas – destino a que a personagem de “The Cask of Amontillado”, de 1842, é fadada) e situações de desespero e infortúnio, tributárias, ainda que de forma reconfigurada, da estética gótica setecentista e do gótico medieval.

Poe é também tido como inventor das narrativas policiais e dos contos de detetive em solo americano, com a criação do primeiro detetive, M. Dupin, que daria início a toda uma tradição de narrativas policiais, seguida, dentre outros, por Arthur Conan Doyle e Agatha Christie. Em duas dessas narrativas, pelo menos (“The Mystery of Marie Roget”, publicado em 1842, e “Murders in the Rue de Morgue”, de 1841), temos mais uma vez a forte presença do macabro e do gótico, tanto em termos de descrição dos espaços quanto na própria temática dos contos, bem como de uma solução final bastante racional, e, portanto, podendo ser vista como pertencente ao estranho, no sentido todoroviano do termo.

A fortuna crítica de Poe também considera que seja um dos precursores de uma proto-ficção científica, com “Mesmeric Revelation” (1844) e “The Facts in the Case of M.Valdemar” (1845), por exemplo. Nesses casos, mais uma vez, temos o lúgubre, o grotesco, com descrições detalhadas sobre o post mortem e a putrefação de cadáveres, bem como a inserção de correntes pseudocientíficas da época, como o Mesmerismo e a hipnose.

Se o macabro, o gótico, o fantástico e o estranho parecem dar o tom da ampla maioria dos escritos de Poe, a morte de sua mulher em 1846, vítima de tuberculose, parece tê-lo afetado profundamente: sua melancolia e desespero o levam a buscar outras mulheres, em vão; sua produção artística sofre sucessivos abalos – faltam-lhe apoio e inspiração. Coincidência ou não, seus escritos mais marcantes desta época refletem a morte da mulher amada, a perda da Beleza ideal, a destruição, o nada. Aparte alguns poucos amigos, apenas Maria Clemm – tia, mãe e protetora – serve-lhe de consolo e apoio.

Ao viajar de navio para tratar de um emprego que prometia tirá-lo desse cenário de desolação e penúria – ao finalmente conseguir ter a tão sonhada revista, acaba abrindo falência, o que agrava sua situação emocional e financeira. É encontrado caído em uma sarjeta, inconsciente, sem documentos e com roupas surradas que não lhe pertenciam em Baltimore, cidade em que não deveria ter desembarcado. Levado ao hospital, incapaz de dizer o que havia lhe acontecido por estar muito desconexo, morre poucos dias depois, em 1849. Poucos após sua morte, o hospital pega fogo e se perdem os arquivos sobre o período. Assim, a causa mortis permanece questionável até os dias de hoje: delirium tremens, raiva humana, vítima de golpe eleitoral (na época, Baltimore estava tendo eleições e havia relatos de que as pessoas eram embebedadas em tabernas duvidosas para que pudessem votar várias vezes em um mesmo candidato), suicídio? Fato é que, embora controverso pelas atitudes e maneira impulsiva de ler o mundo que o cercava, legou uma obra bastante peculiar e diversa de outras produzidas na mesma época, principalmente a produzida nos Estados Unidos, bem como uma extensa fortuna crítica sobre sua vida e obra e impacto sobre muitos escritores, dentro e fora de seu país, como Charles Baudelaire, Machado de Assis, H.P. Lovecraft, Shirley Jackson e Stephen King, para citar apenas alguns que, como Poe, também se dedicaram ao insólito ficcional em suas mais variadas vertentes, como o fantástico, o gótico, o grotesco e o estranho.

REFERÊNCIAS

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