CHARLES BAUDELAIRE – ficcionista

Renata Philippov

Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867), um dos mais importantes poetas franceses do século XIX, foi também ensaísta e crítico de arte e teve uma vida errática e conturbada. Orfão de pai aos seis anos foi “adotado” pelo padrasto, o militar Aupick, com quem teve uma convivência muito difícil. Desde cedo externou uma personalidade intensa, sendo expulso da escola e reprovado no Baccalauréat (exame de conclusão do ensino médio da época). Desde cedo também frequentou o universo de poetas, pintores, artistas e da boemia francesa, envolvendo-se platônica ou concretamente com dançarinas e atrizes. Participou ativamente dos combates e barricadas nas ruas de Paris durante a Revolução de 1848, mas logo abandonou, desalentado, os ideais revolucionários. Aos poucos foi publicando poemas, poemas em prosa, traduções e textos críticos em diferentes periódicos por ele editados ou não. Sua coletânea mais conhecida é Les Fleurs du Mal (Optou-se, por questão metodológica, por se manter o título das obras aqui mencionadas todas no original. Ao final deste verbete, na bibliografia, é possível acessar as obras originais bem como indicações de traduções para o português), gestada inicialmente sob o título de Les Lesbiennes, e cujo título surgiu, pela primeira vez, em 1855. Foi publicada originalmente em 1857 e rapidamente retirada de circulação devido a um processo judicial. Acusado de ataque aos bons costumes e à moral pública, foi obrigado a remover seis poemas e a pagar uma multa bastante elevada para a época.

Nesse mesmo ano de 1855, começou a publicar, ainda de forma esparsa, vários poemas em prosa, futuramente agrupados sob o título Petits Poëmes en Prose (o título foi substituído por Spleen de Paris e depois retomado). Além da profícua produção poética (em verso e prosa), saliente-se o nome de Edgar Allan Poe como relevante para o pensamento estético e as publicações de Baudelaire. Considerado (por ele mesmo e pela fortuna crítica) o tradutor e introdutor de Poe na Europa (e futuramente em outros países, como no Brasil), Baudelaire dedicou-se cerca de vinte anos a traduzir parcela importante da obra do autor norte-americano: são de sua autoria as traduções de vários dos contos e ensaios, bem como de “Le Corbeau” (1859), o romance inacabado – por parte de Poe – Aventures d’Arthur Gordon Pym (1858) e o poema em prosa Eureka (1859) – este último teve sua publicação interrompida por questões de divergências editoriais. Baudelaire organizou três coletâneas de contos do autor norte-americano, Histoires Extraordinaires (1856), Nouvelles Histories Extraordinaires (1857) e Histoires Grotesques et Sérieuses (1871). Sobre esse longo processo e tempo de contato com a obra de Poe, Baudelaire, ao defender o pintor Manet de acusação de plágio em carta endereçada, em 1864, ao crítico Théophile Thoré, assim se refere a Poe: “Você sabe por que traduzi Poe tão pacientemente? Porque ele se parecia comigo. A primeira vez que abri um livro seu, vi, com surpresa e alegria, não apenas assuntos sonhados por mim, mas FRASES pensadas por mim, escritas vinte anos antes” (BAUDELAIRE, 1973, p. 386, tradução minha).

Esse elo entre os dois se deu fundamentalmente pelo prisma do insólito, em termos dos prismas macabro, gótico e grotesco, vertentes essas logo aparentes em vários de seus poemas e poemas em prosa. Passemos a alguns exemplos retirados de Les Fleurs du Mal, cujo título já prefigura a tônica de seu livro pelo uso de um oxímoro, figura de linguagem que une opostos: aqui temos a singeleza da flor, representando a beleza, ao lado do mal, ou da dor. De fato, a primeira parte desse livro de poesias, ¨Spleen et Idéal¨, retoma de forma bastante clara tal dicotomia vista como essencial na concepção estética de Baudelaire: a duplicidade da alma humana em constante conflito interior, dividida entre o bem e o mal, entre o divino e o demoníaco, entre o alto e o baixo, a ascese e a queda, a alegria e a melancolia (ou spleen), binômios opostos, formando duplos inseparáveis e, ao mesmo tempo, totalmente opostos. Aliás, é de Baudelaire a expressão “homo duplex”, um ser cindido em relação a seu duplo, que explica da seguinte forma em Mon Coeur Mis à Nu, coletânea de textos esparsos e fragmentos de pensamentos publicados postumamente em 1887: ¨Há em todo homem, a todo momento, duas postulações simultâneas, uma volta a Deus, a outra a Satã. A invocação a Deus, ou espiritualidade, é um desejo de ascese; aquela voltada a Satã, ou animalidade, é uma alegria de queda” (BAUDELAIRE,  1968, p.632, tradução minha). Ou seja, prefere-se o lado satânico e a decorrente queda, o mal, a destruição, pois é essa que dá alegria, postulação irônica, mas fundante da maioria dos escritos baudelairianos.

Assim, na primeira parte da coletânea, intitulada “Spleen et Idéal”, como acima já mencionado, os primeiros poemas, como ¨Benédiction¨ e ¨Elévation¨, são exemplos da vertente voltada à ascese, logo seguidos por uma maioria significativa de poemas que obedecem a uma vertente de queda, de tédio, de angústia, de desencanto, de spleen, tom que permeará o resto do livro. Em geral, o que predomina na coletânea são poemas que apontam para o noturno, o negativo, o anormal, o repugnante, como em “Une Charogne”. Neste um casal enamorado passeia por um campo e se depara com uma carniça em decomposição, carniça essa descrita em detalhes de horror, carregados de tinta de grotesco. O eu lírico, então, aproveita a cena para convidar a amada a aproveitarem o dia antes que seja tarde demais, retomando, assim, o topos do carpe diem: a carniça se torna, para o eu lírico, oportunidade de convencimento retórico para com sua amada, no sentido de um convite ao prazer antes que seja tarde demais. Em “Le Cygne”, por outro lado, o tom é mais melancólico e menos irônico do que em “Une Charogne”: temos um eu lírico que lamenta as mudanças inexoráveis da Paris, que cresce enquanto metrópole, e se remete, alegoricamente, a um cisne, ave que, longe de seu habitat natural, torna-se um ser deslocado e grotesco e que lamenta a ausência de água em meio à poeira da rua. São dois dos vários poemas em que horror, perverso, negativo e repugnante predominam, e contra os quais não há escapatória, por mais que se debatam contra as mudanças do tempo, o passar da vida e as incongruências sociais e políticas a que são expostas, a não ser a morte, tema, aliás, da última parte da coletânea.

O mesmo acontece em vários dos escritos de Petits Poëmes en Prose, como em “La Soupe et les Nuages”, em que o narrador da historieta narrada sob forma de poema em prosa, durante o jantar, sonha acordado com as nuvens e as compara com a mulher, a quem chama de “pequena louca monstruosa de olhos verdes” (BAUDELAIRE, 1968, p. 179, tradução minha). Esta o chama à razão com um “violento soco nas costas” (idem). Mais uma vez temos a perversidade, o grotesco, a ironia, tônica da estética baudelairiana. Algo semelhante pode ser visto em “Le Mauvais Vitrier”: o narrador diz que, tomado por uma vontade incontrolável e inexplicável de fazer o mal, resolve atrair um pobre vidraceiro, que passava pela rua e penosamente carregava os objetos que vendia de porta em porta, fazendo-o subir alguns lances de escadas para apenas empurrá-lo para baixo, de forma que perdesse seu ganha-pão. O narrador tenta explicar, tanto na introdução do poema quando em sua conclusão, que servem de explicação aos fatos narrados, que a perversidade é inerente ao ser humano, podendo tomar qualquer um, a qualquer momento. Na coletânea de poemas em prosa, escrita para ser um contraponto aos poemas em verso, segundo anotações do próprio Baudelaire em textos esparsos por ele não publicados, temos, mais uma vez, o predomínio do insólito, do macabro, do mal, da melancolia, da cisão entre bem e mal.

Mas é, talvez, em projeto de epílogo para Les Fleurs du Mal, escrito em 1860, mas deixado inacabado, sendo publicado apenas na edição póstuma das Obras Completas de 1887, que podemos encontrar a chave para a teoria estética de Baudelaire. Diz-nos o autor: “Você me deu a lama e dela fiz ouro” (p.129, tradução minha). É justamente essa alquimia extraindo valor do horror, a beleza do feio, as flores do mal, vinda do negativo, do grotesco, do macabro, do perverso, que Baudelaire busca, a todo momento, para extrair algo novo: “Queremos…. mergulhar no fundo do abismo, Inferno ou Céu, que importa? Ao fundo do desconhecido para encontrar o novo” (p.124, tradução minha), versos que fecham o poema “Le Voyage”, último de Les Fleurs du Mal. Nesse sentido, aproxima-se do sublime, no sentido burkiano (AUERBACH, 2000).

Assim, podemos afirmar que o insólito, em suas vertentes do grotesco, do macabro, do horror, do mal e do perverso, com tintas de melancolia e desespero, permeia boa parte da estética baudelairiana, quer seja em seus poemas, poemas em prosa ou ensaios completos ou não, como um conjunto coeso cuja tônica foi dada desde o início de sua produção, tônica essa que, como mencionado acima, o teria atraído para as obras e pensamentos de Edgar Allan Poe. Baudelaire traz personagens, eus líricos, alegorias, descrições e, situações insólitas em seus escritos, como exemplificado acima, tornando-os elementos centrais dentro de sua produção estética e poética, os quais marcariam o pensamento futuro de tantos outros escritores, como os do decadentismo francês, por exemplo.

REFERÊNCIAS

AUERBACH, Erich. As Flores do Mal e o sublime. In: Inimigo Rumor, v. 8. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.
BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres Complètes. Paris: Seuil, 1968.
BAUDELAIRE, Charles. Correspondences, tomes 1 et 2. Oeuvres Complètes. Édition de Claude Pichois, avec la collaboration de Jean Ziegler. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1973.
BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres Complètes, tomes 1 et 2. Bibliothèque de la Pléiade. Édition, textes établis et notes de Claude Pichois. Paris: Gallimard, 1975-1976.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

AMARAL, Glória Carneiro. Situando Baudelaire. In: Aclimatando Baudelaire. São Paulo: Anna Blume, 1996.
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e Prosa. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
BAUDELAIRE, Charles. Pequenos Poemas em Prosa – O Spleen de Paris. Tradução de Isadora Petry e Eduardo Veras. Santos: Editora Via Leitura, 2018.
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. São Paulo: Penguin, 2019.
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo. Apresentação e notas e tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas, São Paulo: Papirus, editora da Universidade de Campinas, 1993.
HUGO, Victor. Préface de Cromwell. Théâtre Complet, tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1963.
KAYSER, Wolfgang . O Grotesco. São Paulo: Perspectiva, 1986.
MONCEL, Christian. Baudelaire et la Réalité du Mal. Paris: Christian Moncel, 1993.
PICHOIS, Claude & Jean Ziegler. Charles Baudelaire. Paris: Fayard, 1996.
ROLLINS, Yvonne B. Baudelaire et le Grotesque. Washington, D.C.: University Press of America, 1978.
RUFF, Marcel. L’Ésprit du Mal et l’Esthétique Baudelairienne. Paris: Armand Colin, 1955.