DUPLO – antiguidade

Aurora Gedra Ruiz Alvarez

A Bíblia (1995), especialmente no Antigo Testamento, escrito provavelmente entre 1500 e 450 a.C. está povoada de narrativas de duplos, que se distinguem daquelas de natureza cosmogônica, como as de Caim e Abel, de Esaú e Jacó, da arca de Noé, entre outras. Nas duas primeiras, a duplicidade apresenta-se como resultado de conflitos interiores, governados pela competição e pela cobiça. Caim inveja o seu irmão, Abel, e mata-o por este ter realizado uma oferenda (as partes gordas das primeiras crias de seu rebanho) mais agradável a Deus que os frutos que ele sagrara (Gênesis 4: 4-5). Na história de Esaú e Jacó, a ambição e o ciúme deste último se encarregam de estabelecer a rivalidade e o desejo de Jacó usurpar a identidade e a primogenitura do irmão mais velho. Já no relato do Dilúvio, Noé responde pela ação de colocar em sua barca seres de diferentes espécies e de sexos distintos. Da composição desses duplos, conclui-se que Caim e Abel, assim como Esaú e Jacó, resultam do desdobramento da personalidade de um deles (Caim, Jacó) que deseja ser o outro (Abel, Esaú respectivamente) em determinado momento. Contudo, na história de Noé, os machos e as fêmeas embarcados confirmam o conceito discors concordia, o qual se fundamenta no princípio de que a harmonia se estabelece entre elementos desiguais que se complementam (MERRIAM-WEBSTER, 2021, on-line), ou como é mencionado em Ovídio, no Livro I, versos 432-433 de Metamorfoses: “Embora fogo e água sejam inimigos, este calor úmido cria as coisas todas, e a discordante harmonia fomenta a gestação” (OVÍDIO, 8 d.C./2017, p. 74-75), que recebe o registro latino: Cumque sit ignis aquae pugnax, uapor umidus omnes/ Res creat et discors concordia fetibus apta est.).

Além das concepções de duplo de natureza religiosa, mitológica e filosófica comentadas, comparecem outros gêneros textuais na Antiguidade que tratam dessa temática, como a epopeia de Gilgamesh (circa 2150-1400 a.C.), Anfitrião (circa 206 a.C.) de Plauto, Édipo Rei (circa 427 a.C.) de Sófocles, por exemplo. A primeira obra, um poema épico, caracteriza-se por um conflito bélico que logo se encaminha para a harmonia, enquanto na peça do autor latino há um questionamento que instaura a instabilidade na personagem em relação ao seu avatar, entretanto, com o andamento do entrecho esse conflito interior é superado. Já na terceira obra a questão da duplicidade ganha proporções trágicas.

Considerando a epopeia de Gilgamesh (circa 2150-1400 a.C./2021), ela remonta à cultura acádio-sumeriana e conta a história do quinto rei da primeira dinastia de Uruk, cidade do sul da Mesopotâmia, que viveu por volta de 2600 a.C. Essa figura semilendária tem como companheiro Enkidu, um selvagem criado pelos deuses à semelhança de Gilgamesh, para abrandar a tirania do rei (MARK, 2021 on-line). Essa é uma ocorrência de duplicidade exógena (CUNHA, 2009, 2021), bem como a que acontece em Anfitrião. Embora Gilgamesh e Enkidu travem uma luta feroz no primeiro encontro, depois se tornam grandes amigos e companheiros de batalhas e aventuras. Eles se completam na diferença: um é rei, outro é um selvagem; um é impetuoso e tirânico, outro é prudente e sensato e assim vivem até que os deuses determinam que Enkidu morra.

Na narrativa de Gilgamesh desponta um aspecto interessante não encontrado nos duplos estudados. A morte de Enkidu representa para o herói Gilgamesh uma ausência que o faz pensar na transitoriedade da vida e o aproxima do topos do vanitas vanitatum et omnia vanitas (vaidade das vaidades, tudo é vaidade), tema que o conduz à reflexão sobre a pequenez das coisas do mundo. Essa percepção ideológica filia-se, em certa medida, à esteira da complementaridade e, ao mesmo tempo, caminha na linha da exemplaridade, isto é, o que falta a Gilgamesh orienta o rei da dinastia de Uruk a transformar a sua existência para se aproximar da figura que lhe é modelar (Enkidu).

Em Anfitrião (Amphitruo), Plauto (séc. III a.C.) escreve uma tragicomédia para discutir o tema do duplo. Trata-se de uma história em que os deuses Júpiter e Mercúrio usurpam as identidades, respectivamente, de Anfitrião, general tebano, e de seu escravo Sósia. Quando ambos partem para a guerra, o senhor do Olimpo disfarça-se de Anfitrião para receber favores amorosos de Alcmena, esposa do guerreiro. No retorno deste e de Sósia ao lar, a trama cria uma série de confusões que dão margem a interpretações equivocadas e geram o cômico. A par das cenas que provocam o riso, incidem dramas pessoais quando Anfitrião descobre que sua esposa tivera relações íntimas com outro (Júpiter) enquanto lutava na guerra. Igual destino tem Sósia quando se depara com Mercúrio, o seu duplo não apenas à sua semelhança, mas como alguém que mostra também ter vivido as mesmas situações de sua existência. Em meio a tantos mal-entendidos, Anfitrião chega a duvidar de sua própria identidade na fala à criada Brômia (v. 1080): “Vamos, esclarece-me cá uma coisa: tens a certeza de que eu sou o teu amo Anfitrião?” (PLAUTO, circa 206 a.C./1993, p. 117).

Diante da patranha criada por Mercúrio, travestido de Sósia (PLAUTO, circa 206 a.C./1993, p. 48-49 [v. 292]), o escravo vivencia uma desordem interior, sente-se bipartido: “[…] Que o Céu me valha! Mas onde é que eu me perdi? Onde é que eu mudei de pele? Onde é que deixei a minha figura? Será que eu me fiquei por lá [na guerra], sem me ter dado conta disso?” (PLAUTO, circa 206 a.C./1993, p. 53 [v. 455]). A diluição do cômico coincide com o drama do duplo, quando ambas as personagens (Anfitrião e Sósia) se percebem destituídas de suas identidades e, ao mesmo tempo, em estado de seres complementares, no que tange à igualdade de aparência e de vivências que o outro de cada uma das personagens simula ter experimentado. A percepção de se terem duplicado, leva-os, momentaneamente, a se sentirem homogêneos ao seu avatar, como se a aparência e a alma lhes tivessem sido roubadas. Nesse trânsito entre o eu e o outro, cria-se o insólito, aqui compreendido como manifestação do estranhamento do ser que não mais reconhece a sua identidade. De início, as personagens captam a presença do outro como uma imagem familiar a si, porém, abismando-se no seu interior, descobrem uma carência, um vazio. Não encontram o seu eu. Na peça de Plauto, esse impasse dramático cessa com a solução do embuste criado por Júpiter, com a adesão de Mercúrio.

Se a trama de Anfitrião inicia a urdidura do duplo em uma comédia de erros, para na sequência mergulhar no trágico com o conflito identitário, e, por fim, esvaziar essa tensão com a dissolução da trapaça, outro modo de construção do duplo sucede em Édipo Rei (circa 427 a.C./2005), de Sófocles. Nessa peça, a ironia trágica introduz a ambiguidade no discurso e na figura do herói: tudo o que Édipo diz e todas as suas ações levam à leitura de dois conteúdos semânticos que atuam como ricochetes. Édipo é ao mesmo tempo: o forasteiro que ocupa o trono de Laio e o filho da terra, o herdeiro do trono; é o causador da peste em Tebas (por ter cometido o crime da hybris) e o que tenciona salvá-la; o filho e o marido de Jocasta; o que questiona a predição do oráculo e é vítima dessa profecia; o que desafia os deuses e o que sofre o fatum traçado por eles; o lúcido, o racional, e o que é cego, desconhecedor de sua identidade.

Diante do que Édipo se recusa a enxergar dá-se a anagnórise, o reconhecimento da sua realidade ontológica, de sua dupla face. Nesse momento, a personagem sucumbe diante dessa evidência diádica; não suporta identificar-se com aquele que estava oculto em si. Esse impasse dramático entre o que a personagem cria ser e a imagem abjeta de si que lhe fora revelada pela projeção especular provoca-lhe estados insólitos, que alteram o rumo das ações na peça: de um ser investido de realeza para a condição de criminoso, condenado ao ostracismo.

O insólito nas relações de duplicidade nesses textos da Literatura Clássica coincide com a revelação do ser que surge dentro do indivíduo (em Édipo Rei), ou que este reconhece a paridade em outra entidade externa a si (em Anfitrião). Em ambas as peças teatrais, a presença do outro priva o sujeito de sua realidade ordinária, das suas certezas ontológicas e o conduz a vivências extraordinárias: a instabilidade emocional, a perturbação por se sentir confrontado por seu duplo, a perda das referências identitárias, a angústia como ocorre nesses dois últimos casos e até mesmo a loucura ou a morte, como pode ser visto na figura mítica de Narciso, em Metamorfoses (8 d.C./2017) de Ovídio. Os efeitos do insólito decorrentes do surgimento do duplo variam de uma obra a outra, conforme a concepção de duplo assentada no texto e no tratamento estético que cada autor a ele confere.


REFERÊNCIAS

BÍBLIA DE JERUSALÉM. Tradução de Gilberto da Silva Gorgulho, Ivo Storniolo, Ana Flora Anderson (Org.). São Paulo: Sociedade Bíblica: Paulus, 1995.
CUNHA, Carla. Duplo. In: CEIA, Carlos (Org.). Dicionário de termos literários. 2009. Disponível em:  https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/duplo/. Acesso em 20 mar. 2021.
MARK, J. J. Gilgamesh. In: World History Encyclopedia, 2018. Disponível em: https://www.ancient.eu/gilgamesh/. Acesso em 20 mar. 2021.
MERRIAM-WEBSTER. Concordia discors (entry). Dictionary. Disponível em: https://www.merriam-webster.com/dictionary/concordia%20discors. Acesso em 21 out. 2021.
OVÍDIO. Metamorfoses – Edição bilíngue. Tradução, introdução e notas Domingos Lucas Dias; apresentação João Angelo Oliva Neto. São Paulo: Editora 34, 2017.
PLAUTO. Anfitrião (circa 206 a.C.). Introdução, tradução e notas de Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Edições 70, 1993.
SÓFOCLES. Édipo rei (circa 427 a.C.). Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2005.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
CARRATÉ, Juan Bargalló (Org.). Hacia una tipología del doble: el doble por fisión y por metamorfosis. In: Identidad y alteridad: aproximación al tema del double. Sevilha: Ediciones Alfar, 1994. (Colección Alfar Universidad, 80. Série investigación y ensayo).
ELIADE, Mircea. The Two and the One (1965). Chicago: University of Chicago Press, 1979.
FRANÇA, Júlio. O insólito e seu duplo. In: GARCÍA, Flávio; MOTA, Marcus Alexandre. O insólito e seu duplo. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2009.
LE GUEN, Annick. “L’inquiétante étrangeté” et le double. In: Le double. 1. ed., (Dir.). COUVREUR, Catherine; FINE, Alain; LE GUEN, Annick. Paris: Presses Universitaires de France, 1995, p. 83-94. (Col. “Monographies de la Revue Française de Psychanalyse”).
SOUZA, Luciano de. Contraria sunt complementa, ou apontamentos para uma exegese do “espírito que contraria”. In: LOPONDO, Lílian; ALVAREZ, Aurora Gedra Ruiz (Org.). Leituras do duplo. São Paulo: Editora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2011, p. 149-162.