TERROR

Cido Rossi

O terror, junto do horror, do pavor e do abjeto, constitui um dos elementos-chave por meio do qual o medo é articulado e/ou manifestado na ficção insólita. Tradicionalmente, terror, horror e medo compõem a tríade sobre a qual se assenta toda a vertente gótica desse fazer ficcional, tríade que também distingue, em um primeiro momento, o gótico do fantástico à medida que efeito do sobrenatural revelado por oposição à hesitação em relação ao sobrenatural que é característica clássica do fantástico (cf. TODOROV, 2004 e CAMARANI, 2014). Contemporaneamente, tal distinção tem sido questionada (cf. ROAS, 2014), de modo que terror, horror e medo também têm sido relacionados ao fantástico, visto que este “gera sempre uma impressão ameaçadora no leitor” (ROAS, 2014, p .135).

Em termos de história, teoria e crítica do insólito, do gótico e do fantástico, a diferenciação entre terror, horror e medo é apenas didática, pois esses três aspectos operam em consonância nos fazeres ficcionais que os utilizam, e tomá-los em separado em uma abordagem teórico-crítica de uma obra de arte insólita, gótica e/ou fantástica pode resultar em problemas conceituais, haja vista que, ao longo do tempo, tentativas de definir em separado, manter estanque ou opor cada um desses termos incorreram em contradições terminológicas e epistemológicas que contribuíram para a sedimentação de dúvidas e ambiguidades ainda persistentes atualmente. A questão fundamental que se coloca é que a história, teoria e crítica do insólito, do gótico e do fantástico demonstram que não há limites claros entre o que é terror, o que é horror e o que é medo. Muito semelhantes entre si, mas não sendo exatamente a mesma coisa, esses conceitos interdependem-se filosófica e epistemologicamente.

Ainda que, a princípio, pareça um problema conceitual, é importante que essa quase impossibilidade de definição — ou quase impossibilidade de limitação — assim permaneça, pois é dela que advém a potencialidade desses três efeitos, cujos usos na ficção intencionam justamente o questionamento e a desarticulação de entendimentos estéticos pré-concebidos e acepções teórico-críticas pré-estabelecidas. A instabilidade epistemológica atrelada à definição em separado de cada um dos membros dessa tríade é, afinal, a responsável pela geração de impressões ameaçadoras entre as personagens de obras de arte insólitas, góticas ou fantásticas e entre os leitores/consumidores dessas obras.

Desse modo, a tentação de juntar esses três termos sob a égide de um único conceito é grande; no entanto, não seria uma solução adequada e, possivelmente, só agravaria o problema, pois, apesar de operarem juntos, terror, horror e medo podem ser privilegiados de maneira distinta, ou seja, o artista pode valer-se do medo e do horror para ressaltar o terror, por exemplo, ou do terror e do horror para articular o medo, o que indicia que existem diferenças irredutíveis entre as três noções. Em suma, ainda que, via de regra, sempre operando em conjunto, terror, horror e medo mantêm, em suas individualidades, um conjunto particular de características que os singularizam, e a circunscrição, por parte do teórico ou crítico, desse conjunto pode apontar, revelar ou explicar a cadeia ou cadeias de significações ocultas nos diversos níveis discursivos de uma obra de arte insólita, gótica ou fantástica.

Sem perder essa instabilidade epistemológica de vista, no que concerne especificamente à singularidade do terror, o entendimento clássico e consolidado que se tem do termo em meio às teorias do insólito, do gótico e do fantástico, atualmente, é que ele nomeia e conceitua a perspectiva psicológica do medo, a qual pode ser oposta, complementar ou suplementar ao horror, cuja tradição histórica, teórica e crítica está associada à manifestação gráfico-imagética do medo. Essa concepção de terror está fundamentada nas ideias veiculadas pelos pensamentos de Aristóteles, Edmund Burke e Sigmund Freud, responsáveis diretos por sua consolidação.

No livro XIV da Poética, Aristóteles trata mais detidamente dos sentimentos de temor e pena em relação à disposição das ações na fábula (entendida pelo filósofo no sentido atualmente atribuído à palavra enredo na teoria literária) da tragédia. Diz o estagirita que “É mister […] arranjar a fábula de maneira tal que, mesmo sem assistir, quem ouvir contar as ocorrências sinta arrepios e compaixão em consequência dos fatos” (2005, p. 33). Temor e pena, arrepios e compaixão, são os sentimentos, as reações emocionais, que a tragédia, o gênero dramático e literário que trata dos infortúnios existenciais, deve necessariamente suscitar no leitor/espectador para poder ser considerada trágica. Para Aristóteles, a arte trágica deve conter, como regra para se constituir, uma dimensão cognitiva que provoque algo assustador em razão da sua tessitura artística (sua fabulação) e, ao mesmo tempo, um elemento que permita o reconhecimento de si na ação, o auto-reconhecimento, a auto-crítica existencial. Em outras palavras, o primeiro teórico e crítico literário entende que uma determinada forma de arte — a trágica —, para atingir seu objetivo, deve ser composta a partir da associação entre assustar e pensar, de algo assustador que faça o leitor/espectador pensar mesmo na ausência desse algo. Sem o saber e sem utilizar a palavra-conceito, Aristóteles articulou e estabeleceu a noção básica — que permanece também, ainda hoje, o conceito canônico — de terror. Por terror se entende a efabulação/enredo que, por meio do assustador e do incômodo psíquico por este causado, objetiva fazer o leitor/espectador pensar a sua própria existência.

O pensamento aristotélico deixa claro que o que se denomina atualmente terror solicita, sempre, uma reação psíquica ao assustador. É o terror que torna o medo racional, controlável, e, na medida adequada, prazeroso, pois promove um distanciamento estético entre o sujeito e a situação amedrontadora. Essa ideia do terror como sentimento associado a um distanciamento estético prazeroso e de ordem psíquica entre aquele que é assustado e o elemento assustador advém do trabalho do filósofo irlandês Edmund Burke (1729 – 1797), autor de A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful (Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo, 1757), importante tratado de estética negativa do século XVIII. Amparando-se fundamentalmente nas ideias de Aristóteles, Burke afirma que “Qualquer coisa que se proponha, por qualquer meio, a incitar as ideias de dor e perigo; qualquer coisa que seja, de qualquer modo, terrível ou relacionada a objetos terríveis, ou que opere de maneira análoga ao terror, constitui uma fonte do sublime” (1990, p. 33, tradução nossa). Na acepção do pensador, “qualquer coisa que seja terrível, no que concerne ao visual, é também sublime, seja essa coisa a causa ou não de terror, dotada ou não de grandeza de proporções. […]. De fato, o terror é, em absolutamente todos os casos, seja de modo mais evidente ou mais latente, o princípio que rege o sublime” (1990, p. 34, tradução nossa). O terror, no entendimento de Burke, é o próprio sublime, o qual constitui uma reação estética do pensamento a tudo que é vasto, obscuro e grandioso, a tudo que, de algum modo, consciente ou inconsciente, faça o humano lembrar ou reconhecer sua pequenez frente às grandezas da Natureza, também as grandezas da existência.

Com a abordagem de Burke, o terror adquire a conotação de paixão egoísta, uma vez que, dentro das ideias do filósofo, está implicado no instinto humano de autopreservação diante daquilo que não é inteiramente apreensível e/ou que não se submete totalmente aos escopos e parâmetros da racionalidade lógica, inapreensão e insubmissão que se constituem extremamente prazerosas ao sujeito por advirem da injunção de duas perspectivas complementares: o lado perverso da psique humana, dimensão em que tudo aquilo que é considerado irracional, insano, hediondo, maligno, etc. é utilizado e/ou se manifesta racionalmente com o único intuito de promover o prazer irrestrito; e a paradoxal sensação de proteção implícita na fruição estética do terror, a qual provém da percepção, consciente ou semiconsciente, por parte do sujeito, de que é possível vivenciar as emoções assustadoras do terror no universo psíquico sem, no entanto, colocar em risco a integridade física ou mesmo a integridade psicológica que estariam implícitas a uma situação “real”.

Assim, o terror constitui-se como experiência pessoal, intrínseca à psique do sujeito. No entanto, como se pode observar, tanto Aristóteles quanto Burke deixam claro que, apesar de experiência pessoal, o terror é engendrado por causas externas: temor e pena diante do trágico, o sublime característico das forças grandiosas e incontroláveis da Natureza. É Sigmund Freud (1856–1939), no século XX, quem adicionará a esse entendimento certa profundidade ao conceber a instauração do terror por causas internas à psique. Ao terror instaurado ou advindo da dimensão do próprio pensamento Freud chamou unheimlich (“estranho”, “inquietante” ou “infamiliar” — a palavra não detém um correspondente adequado em português).

Em seu ensaio “Das Unheimliche” (“O ‘estranho’”, 1919), Freud define o unheimlich como “aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar” (1976, p. 277) e como a manifestação, no campo mental da consciência, de “algo reprimido que retorna” (1976, p. 300, grifo do autor). Esse elemento, qualquer que seja, “conhecido, de velho, e há muito familiar” — um medo, um trauma, uma memória etc. — fora reprimido pelas defesas do consciente e lançado nas profundezas abissais do inconsciente, onde passou por um processo de ressignificação, pois o id é um repositório caótico de fragmentos de linguagem em permanente tentativa de junção, articulação, significação e esfacelamento mútuo. Quando tal elemento retorna à consciência via sonhos, neuroses, parapraxes ou chistes, ele causa lapso de significação, uma vez que o sujeito o reconhece como algo familiar, mas não consegue entender a razão da familiaridade, por isso o nega e repudia. É esse lapso de significação — que incita, inicialmente, a negação e a repulsão e que, ao se instaurar, causa sofrimento — o constituinte do terror articulado pela dimensão interna da psique. O terror, dentro da perspectiva freudiana, é o próprio unheimlich manifestado no e pelo pensamento. Como tal, ele obriga o sujeito a pensar sobre as profundezas interiores de si mesmo, e não apenas sobre a tragédia do outro ou a percepção e reconhecimento de sua pequenez em relação à existência. Com isso, o terror ganha uma dimensão psicológica para além das suas dimensões representacional e cognitiva e se consolida, no século XX, como o modo mais utilizado e a preferência mais recorrente entre os artistas na construção de arquiteturas do medo pela vias das ficções insólita, gótica e fantástica.

REFERÊNCIAS

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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

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