VAMPIRO

Fernando Monteiro de Barros

O vampiro é um personagem que deslizou da cultura popular para a cultura erudita, e desta para a cultura de massa. De criatura folclórica das lendas do leste europeu, que saía de sua tumba para se alimentar do sangue dos membros de seu clã familiar, o vampiro migra para a literatura no mesmo período em que surgem os gêneros (ou modos) fantástico e gótico, na segunda metade do século XVIII. E, já na segunda metade do século XIX, o vampiro se tornou um personagem bastante popular, comparecendo no teatro de variedades francês e nos penny-dreadfuls ingleses, popularidade essa que chega até nossos dias, como atestam as aparições constantes do personagem no cinema e na televisão, além de gibis e games.

Considerado uma das mais duradouras figuras míticas legada pelo Romantismo (TWITCHELL, 1997, p. ix) o vampiro tem sido uma das mais poderosas metáforas eróticas da modernidade, representando a sexualidade em modalidade violenta, noturna e predatória. Encarnando a convergência entre Eros e Tânatos, o amor e a morte (GLADWELL, 1999, p. 5), vampiros têm uma forte ligação com potências daimônicas e ctonianas: o romance Drácula, de 1897, coloca como principal ameaça do vampirismo a insaciabilidade de seu desejo sexual (HINDLE, 1993, p. ix), tão mais ameaçador por ser percebido enquanto força incontrolável da natureza em sua indiferença arcaica (BELSEY, 1994, p. 176-177). Neste sentido, os vampiros apresentam uma dimensão dionisíaca considerável e, curiosamente, além do próprio Dioniso também ter sido associado, por Eurípides, em As bacantes, a um caçador sedento de sangue (OTTO, 1995, p. 109), os rituais em sua homenagem culminavam na omofagia, ou seja, a “consumação imediata do sangue e da carne crua” da vítima sacrificial, geralmente um touro ou um bode, após seu dilaceramento (diasparagmós, em grego) pelos praticantes do culto (BRANDÃO, 1988, p. 137). Paradoxalmente, o vampiro também apresenta um traço apolíneo poderoso na sua representação estetizada no âmbito da arte e da literatura.

A literatura acabou dando contornos eróticos e aristocráticos ao mito do vampirismo (TWITCHELL, 1997, p. 7), inexistentes na tradição folclórica segundo a qual os vampiros eram camponeses mortos que voltavam de suas tumbas apenas para sugar o sangue de seus familiares ainda vivos, ou seja, tendo como finalidade última beber sangue somente. Em pleno século XVIII, no momento em que o Iluminismo está prestes a proclamar a supremacia da máxima cartesiana e da objetividade da verdade, surgem na imprensa, nos decênios de 1720 e 1730, relatos sobre casos de vampirismo em aldeias do leste europeu, assunto abordado no estudo publicado em 1751 Traité sur les apparitions des esprits et sur les vampires ou les revenans de Hongrie, Moravie, etc. de autoria de um monge beneditino francês, dom Augustin Calmet. E neste mesmo período a poesia alemã dá início à representação literária dos vampiros, a partir de Der Vampir (1748), de Heinrich August Ossenfelder, seguido pelas baladas Lenore (1773), de Gottfried August Burger e Die Braut von Korinth (“A Noiva de Corinto”, 1797), de Goethe (TWITCHELL, 1997, p. 33). O poema de Ossenfelder já revestia o mito de contornos eróticos. E, principalmente em Lenore e no poema de Goethe, a fome do vampiro é de “amor, não de sangue” (TWITCHELL, 1997, p. 34).

“A Noiva de Corinto” é considerada por Mario Praz o primeiro comparecimento literário sério do tema do vampirismo (PRAZ, 1996, p. 89). São várias as representações do vampiro, na literatura ocidental, bem como no cinema, enquanto predador sexual noturno e oportunista, que estuda cuidadosamente a vítima e lança-se ao ataque quando o momento se mostra propício, tal como fazem as aves de rapina. Na Antiguidade clássica, as empusas e as lâmias, segundo Filostrato, por volta do ano 217 d.C, eram “amorosas” e desejavam “os prazeres do amor, mas sobretudo as carnes dos humanos”, e os seduziam “proporcionando-lhes prazeres amorosos, os mesmos que elas querem para saciar-se” (LECOUTEUX, 2005, p. 82). A sede de sexo do vampiro parece simbolizar o drama da condição humana, tal como na Idade Média o texto religioso Imitação de Cristo já reconhecia o corpo como clausura, submetido à tirania do desejo sem fim: “Em verdade, grande miséria é viver na terra. Comer, beber, velar, dormir, descansar, trabalhar, estar sujeito às demais necessidades da natureza é, de fato, grande miséria e aflição para o homem… muito oprimido se sente, com efeito, o homem interior com as necessidades do corpo” (KEMPIS, 1948, p. 44). O poema de Goethe sinaliza a conexão não apenas entre vampirismo e erotismo, mas também entre desejo e clausura, estabelecendo na literatura ocidental, a partir do mito do vampirismo, o “tema do fantasma erótico”, muito vasto na literatura moderna (PAZ, 1994, p.62), visitante noturno que visa muito mais a consumação amorosa impossível do que meramente sua alimentação, vampirismo muito mais metafórico do que literal, pois o sangue, nesses casos, avulta como metáfora do ardor erótico. O vampirismo folclórico, ao contrário, continha apenas o elemento da monstruosidade enquanto violência antropofágica, da criatura alimentando-se de outra criatura.

Se no poema de Goethe a vampira era enclausurada, mas bela e sedutora, há por outro lado um arquétipo vampírico marcado pela clausura decretada pela ausência de atributos físicos sedutores, apolíneos, e inscrito apenas na dimensão cruel e violenta da natureza dionisíaca, com sua face terrível. O mais contundente exemplo de clausura desejante vampírica relacionada a uma aparência repulsiva talvez esteja em um filme alemão muitos anos posterior ao Ultrarromantismo do século XIX, Nosferatu, Phantom der Nacht, de Werner Herzog. O filme, de 1979, associa vampirismo a desejo insaciável, numa perspectiva melancólica, refletindo os impasses da condição humana. Visualmente repelente, o vampiro deste filme lamenta atravessar os séculos incapaz de consumar o desejo de amar, evidenciando o corpo como clausura, conforme a Imitação de Cristo. “O tempo é um abismo tão profundo como mil noites… A morte não é o pior, é bem mais cruel ser incapaz de morrer… A ausência do amor é a dor mais abjeta que existe…”, diz o conde-vampiro, interpretado pelo ator Klaus Kinski, que recorre à postura de ave de rapina, sempre à espreita, não hesitando em avançar sobre o objeto do desejo quando o momento se mostra propício. Na cena em que o personagem Jonathan Harker acidentalmente corta a mão ao partir um pedaço de pão com uma faca, o vampiro, com a desculpa de impedir que a ferida se infeccione, agarra apaixonadamente a mão de Jonathan e suga-lhe sofregamente o sangue.

Na prosa de ficção, “The Vampyre” (“O Vampiro”), de John Polidori, inspirado na figura transgressora de Lord Byron e no seu conto inacabado “Fragmento de um romance”, ambos publicados em 1819, estabelece definitivamente o paradigma do vampiro como homem fatal sedutor: belo, melancólico, altivo e destruidor. Para Christopher Frayling, na literatura romântica os vampiros eram retratados como criaturas elegantemente pálidas e imberbes, dotadas de vozes sedutoras e lábios que passavam a impressão de tédio, além de possuírem extraordinário carisma sexual (FRAYLING, 1992, p. 6). Adele Olivia Gladwell, contudo, observa que os vampiros, surgindo no decalque da figura legendária de Byron, eram, como os demais personagens masculinos da obra do poeta, “amantes incapazes de amar” (GLADWELL, 1999, p. 17). Nina Auerbach, por sua vez, salienta a forte dimensão homoerótica dos vampiros de Byron e Polidori (AUERBACH, 1995, p.14), que também se faz ver em textos como a balada “Christabel” (1816), de Samuel Taylor Coleridge, a novela Carmilla (1872), de Sheridan Le Fanu, e no conto decadentista “The True Story of a Vampire” (1894), do Conde Eric Stenbock.

Na poesia romântica brasileira, o tema do vampirismo também comparece ligado ao erotismo. “Amor e Medo”, de Casimiro de Abreu, não deixa dúvidas: “Vampiro infame, eu sorveria em beijos / Toda a inocência que teu lábio encerra, / E tu serias no lascivo abraço / Anjo enlodado nos pauis da terra” (apud MOISÉS, 1991, p. 159). Em “Os Anjos da Meia-Noite”, de Castro Alves, o vampirismo apresenta-se em seu aspecto de visita noturna: “Quando a insônia, qual lívido vampiro, / Como a arcanjo da guarda do Sepulcro, / vela à noite por nós, / E banha-se em suor o travesseiro, / E além geme nas franças do pinheiro / Da brisa a longa voz…” (ALVES, 1976, p. 170).

O mais notório comparecimento do gênero, Drácula, de Bram Stoker, é um romance sobre repressão sexual (TWITCHELL, 1997, p. 5). O enredo, transposto para as telas de cinema inúmeras vezes, é bastante conhecido: um corretor de imóveis, Jonathan Harker, vai até o castelo do conde Drácula, na Transilvânia, efetuar a transação comercial na qual Drácula passaria a adquirir um imóvel em Londres. Chegando lá, Harker fica prisioneiro do vampiro que, ao chegar à Inglaterra, vampiriza Lucy, amiga da noiva de Jonathan, Mina. Jonathan consegue retornar à Inglaterra e, após destruírem a vampirizada Lucy com uma estaca, seus amigos, liderados pelo médico Van Helsing, partem em busca de Drácula que, nesse meio tempo, tenta vampirizar Mina. Finalmente o vampiro é destruído pelos combatentes identificados com a nova ordem moderna burguesa e com a moral vigente. O romance, de 1897, reflete o puritanismo da Inglaterra vitoriana ameaçado pelo “desejo incontrolável” representado pelo vampirismo de Drácula (BELSEY, 1994, p. 176), que, ao fazer suas vítimas, transforma-as em seres desejantes insaciáveis, atestando, dessa forma, “a dimensão subversiva da potência erótica” encarnada pelo vampiro (MENEZES, 1991, p. 69).

A cena em que Jonathan Harker, prestes a dormir no castelo de Drácula, é visitado por três vampiras, é emblemática. Uma das vampiras diz: “Ele é jovem e forte; há beijos para todas nós” (STOKER, 1993, p. 53). Quando a primeira delas aproxima seus lábios da garganta de Jonathan, ele pensa: “Fechei meus olhos num êxtase lânguido e esperei – esperei com o coração acelerado” (1993, p. 54). Mas nesse instante surge o conde Drácula, que afasta violentamente as vampiras de Jonathan, dizendo: “Como ousam tocar nele? Como ousam pousar os olhos nele quando eu o havia proibido? Para trás, todas vocês! Este homem pertence a mim!” (1993, p. 55).

A fala de Drácula, sem dúvida, atesta uma sexualidade totalmente outra atribuída aos vampiros, ambígua, não respeitando a distinção entre os sexos e transtornando a oposição binária entre as fronteiras consagradas pelo edifício metafísico ocidental. Segundo Catherine Belsey, enquanto que no século XVIII pela primeira vez a anatomia define o homem e a mulher como sexos opostos, a sexualidade vampírica imediatamente desconstrói esta recém-estabelecida oposição: tanto vampiros quanto vampiras penetram suas vítimas, mas só após terem sido penetrados por outro vampiro; ao mesmo tempo, é a vítima passiva quem fornece o fluido vital (BELSEY, 1994, p. 174). Também são transtornados os papéis familiares, já que o amado se torna “filho” do vampiro que o mordeu (Ibidem). Aluísio Pereira de Menezes também atesta o dado “perverso” da sexualidade vampírica. São “normalmente arroladas como perversas” as escolhas sexuais que não estão “de acordo com o propósito familiar da reprodução” (MENEZES, 1991, p. 72). A questão sexual do vampiro “é confluente com o que se joga na lata de lixo do pecaminoso e das manifestações não utilitárias da sexualidade” (1991, p. 73). Reconhecendo que Freud e Lacan admitem porém que “toda estruturação sexual de um falante é de natureza perversa” (1991, p. 92), Menezes conclui que “sem uma clareza sobre essas questões, acabamos por reduzir o sexo à genitalidade […] Chupar sangue, matar para ver sangue ou mesmo tomar sangue de um outro é, queiramos ou não, uma disponibilidade de sentido erótico possível para um falante” (1991, p. 94).

A visão de Aluísio Pereira de Menezes, exposta acima, pressupõe o vampirismo encarado de maneira literal, corroborada por Catherine Belsey: “beber sangue é explicitamente erótico” (BELSEY, 1994, p. 174).

Assim, o vampirismo enquanto produto da criação literária, como metáfora da condição humana, como impostação artística, como fingimento poético, se impõe como um dos mais poderosos arquétipos da modernidade. Um dos maiores estudiosos acadêmicos do vampirismo na literatura, James B. Twitchell, insiste em afirmar que o vampiro “vive para o amor, não para o sangue” (TWITCHELL, 1997, p. 51). De qualquer forma, mesmo interessado apenas no sangue, este não se reduz, para o vampiro, a mera alimentação, mas antes enquadra-se dentro da dimensão erótica do mito, atestando duplamente o seu caráter perverso.

No século XXI, acompanhando uma tendência geral na cultura do milênio que tem procurado domesticar o monstruoso, os vampiros da saga Crepúsculo (2005-2008), de Stephanie Meyer, se apresentam despidos dos aspectos aterrorizantes do mito e convertidos à esfera da padronização conforme o etos da classe-média norte-americana. O vampiro da série de tv Angel (1999-2004) encarnava o mocinho com superpoderes que combatia o mal e os vampiros adolescentes de Vampire Diaries, série de tv (2009-2017) inspirada nos romances de L. J. Smith, frequentavam a escola secundária norte-americana como qualquer mortal. Tem havido, no entanto, exceções a essa tendência, como atestam os filmes Låt den rätte komma in (Deixa Ela Entrar, 2008), do sueco Tomas Alfredson, Only Lovers Left Alive (Amantes Eternos, 2013), do norte-americano Jim Jarmusch, e Girls Walks Alone at Night (Garota Sombria Caminha pela Noite, 2014), da diretora norte-mericana de origem iraniana Ana Lily Amirpour, que reinserem os vampiros dentro da dimensão de estranhamento e horror na qual sempre foram tradicionalmente consignados.

REFERÊNCIAS

ALVES, Antônio de Castro. Obra completa. Organização Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976.
AUERBACH, Nina. Our vampires, ourselves. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.
BELSEY, Catherine. Desire: love stories in Western culture. Oxford: Blackwell, 1994.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega: volume II. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1988.
FRAYLING, Christopher. Vampyres: Lord Byron to Count Dracula. London: Faber and Faber, 1992.
GLADWELL, Adèle Olivia. The erogenous disease. In: GLADWELL, Adèle Olivia (Ed). Blood & roses: the vampire in 19 century literature. London: Creation Books, 1999.
HINDLE, Maurice. Introduction. In: STOKER, Bram. Dracula. London: Penguin Books, 1993.
KEMPIS, Tomas de. Imitação de Cristo. Tradução de P. Leonel Franca, S.J. 4.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948.
LECOUTEUX, Claude. História dos vampiros: autópsia de um mito. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
MENEZES, Aluísio Pereira de. De sexo. Jeito de todos os vampiros: arte e transmissão. Tese (Doutorado em Teoria Literária). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1991.
MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através dos textos. 16.ed. São Paulo: Cultrix, 1991.
OTTO, Walter. Dionysus: myth and cult. Tradução de Robert B. Palmer. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press, 1995.
PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wladyr Dupont. São Paulo: Siciliano, 1994.
PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Tradução de Philadelpho Menezes. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.
STOKER, Bram. Dracula. London: Penguin Books, 1993.
TWITCHELL, James B. The living dead: a study of the vampire in Romantic literature. Durham, N.C.: Duke University Press, 1997.