Filipe Furtado
Termo com duplo estatuto morfológico (substantivo/adjectivo) e conceito propostos por Filipe Furtado (1980, p. 20-21). A sua formulação visava, em primeiro lugar, constituir mais um sinônimo do que tradicionalmente se denomina sobrenatural, elemento indissociável da esfera semântica do género fantástico. Para além disso, com a expressão sugerida, pretendia-se subsumir um fundo conceptual muito mais abrangente e sincrético. Deveria ela permitir englobar personagens e ocorrências que, embora não enquadráveis na noção corrente de sobrenatural, se revelassem alheias ao mundo empírico, pelo menos na época de produção do texto, ou que, sendo então teoricamente possíveis, não houvessem tido ainda efetiva realização. Com um tal grau de abrangência, o vocábulo adequar-se-ia a designar a grande diversidade de figuras, acções, objectos, cenários e ideias susceptíveis de surgir quer no fantástico quer em géneros próximos como o maravilhoso, o estranho ou a ficção científica. Apenas nesse caso corresponderia ao quadro semântico característico das diferentes classes de textos incluíveis no modo fantástico.
A expressão baseava-se na palavra inglesa metempirical, cunhada pelo polígrafo e pensador positivista britânico George Henry Lewes no primeiro volume de Problems of Life and Mind (1874). Com ela, procurava o autor traduzir um sentido, algo próximo do de “metafísico” ou de “transcendente” (LEWES, 1874, p. 15 e passim). Referia, assim, o vasto domínio do pensamento que, apresentando embora como válidas as respectivas ideias e convicções sobre o mundo, não aduz a seu favor qualquer prova aceitável, qualquer fundamentação na experiência sensorial ou nos aparelhos susceptíveis de a incrementar, excluindo-se, portanto, do âmbito da ciência. Sublinhe-se, também, que, tanto no termo de Lewes como no aqui proposto, o prefixo “meta-” não pretende significar “superior” ao universo empírico, mas tão só “exterior” ou “alheio” a ele. A expressão passou a ter um certo curso no jargão filosófico e depressa ultrapassou fronteiras, já figurando em versão francesa (métempirique) na edição de 1880 do dicionário de Littré.
Embora, naturalmente, inclua o conceito visado por Lewes, o termo “metaempírico” procura sobretudo caracterizar uma vasta esfera semântica ocorrente no domínio específico da ficção literária. Com efeito, reporta-se não apenas ao sobrenatural (religioso ou tradicional), com surgimento frequente em textos do maravilhoso ou do fantástico, mas também à imensa e variada temática da ficção científica ou da fantasia histórica. O termo sobrenatural implica a sugestão de que as entidades ou ocorrências por ele qualificadas farão parte duma ordem diferente de substâncias, sendo, portanto, exteriores e superiores à Natureza. Ora, dada a sua óbvia heterogeneidade, quaisquer manifestações consideradas sobrenaturais (como fadas, querubins, vampiros, divindades, espectros, demónios ou assombrações) apenas revelam, afinal, uma característica comum: a sua exclusiva radicação no imaginário, em crenças nunca sujeitas ao ónus da prova. Com efeito, eximem-se por completo ao veredito das percepções sensoriais ou a qualquer outro tipo de verificação intersubjetiva, não sendo a alegação da sua eventual existência comprovável de forma universalmente válida.
Acresce que outras classes de textos (como a ficção científica) evocam figuras, objectos e acontecimentos singulares, não raro fabulosos, também decorrentes do imaginário e (por vezes, ainda) não existentes à época da narração. Contudo, ao invés dos tidos por sobrenaturais, esses elementos parecem obedecer aos princípios do mundo objectivo, vindo eventualmente a ser admitidos como possíveis e, mesmo, como normais numa era posterior. Com efeito, muitos deles, até poucas décadas atrás considerados impossíveis ou alheios à Natureza (como actividades paranormais, mundos paralelos ou outros sistemas de dimensões), vieram a suscitar interesse nos meios académicos e a merecer investigação aprofundada. Por vezes, chegaram, mesmo, a incorporar linhas de pensamento com larga aceitação na comunidade científica, tal sucedendo, por exemplo, com a teoria das cordas (string theory), a das membranas (brane theory) ou a do multiverso (multiverse theory). Em termos gerais, estas e muitas outras foram esboçadas (por vezes com aproximação e antecedência apreciáveis) por textos de fantasia e de ficção científica. Algo semelhante se poderá dizer de múltiplos inventos e meios técnicos descritos em muitas dessas narrativas (por autores não raro eles próprios cientistas ou tecnólogos), elementos que (ainda) não existiam no momento da escrita. Se (ou quando) algum destes dados se vier a tornar comprovável algures no futuro, ganhará pleno direito de cidade quanto à esfera cognitiva decorrente da percepção sensorial. De qualquer modo, quando ocorre o ato narrativo, todos eles (exteriores ou não à natureza conhecida) são efectivamente metaempíricos, ainda que uns se mantenham para sempre no domínio do sobrenatural, enquanto outros poderão vir a entrar na normalidade quotidiana do mundo objetivo. Porém, enquanto tal não sucede, a qualificação de uns e de outros não poderá deixar de ter em conta aquele que é o seu traço comum: o facto de serem metaempíricos.
Em sentido restrito, como sinónimo de “sobrenatural”, o conceito de metaempírico torna-se particularmente útil quando, a par da temática corrente nos géneros fantástico ou maravilhoso, se aborda a mais usual na ficção científica. Nesta, com efeito, raramente surgem elementos sobrenaturais, sendo as suas figuras e ações alheias a mitos ou tradições seculares e situando-se, em regra, no presente da produção do texto ou num qualquer futuro. Isto, naturalmente, sem embargo de alguns enredos (sobretudo no caso de fantasias históricas ou de narrativas do tipo sword and sorcery) implicarem por vezes semânticas retrofuturistas em que futuro e passado longínquo se interpenetram. Por outro lado, embora coexista com o conceito de sobrenatural, o de metaempírico apresenta sobre ele nítida vantagem quando empregado nestes domínios literários. Enquanto o primeiro decorre de crenças numa ordem de substâncias exterior e superior à Natureza insusceptível de obter confirmação universalmente aceite, o segundo baseia-se em noções de teor epistemológico e científico. Permite, assim, inferir com clareza o fato de tais dados serem incomprováveis, não deixando qualquer dúvida quanto ao carácter fictício das figuras e ocorrências que qualifica.
Da distinção entre os graus de abrangência das noções de sobrenatural e de metaempírico, decorre, em grande medida, a diferença entre o género fantástico e o modo fantástico. Este último, portanto, para além de (em grande medida, embora não completamente) abarcar o conjunto caracterizado pelo termo fantasia (lato sensu) e de quase por completo coincidir com o conceito atual de ficção especulativa, poderá também denominar-se ficção do metaempírico. De qualquer forma, todas as classes de textos atrás aludidas são, por sua vez, inseríveis no mare magnum do insólito ficcional, um domínio genológico de âmbito ainda mais vasto. Com efeito, a noção de insólito pertence a um nível categorial mais elevado e susceptível de abranger toda a já de si grande latitude semântica inerente ao conceito de metaempírico. Em relação a este, tem um significado mais amplo e inclusivo (embora mais vago e menos definido) no tocante à forma como traduz a alteridade face ao mundo real.
Em síntese, recorrendo a uma analogia de índole taxonômica e grau ascendente de generalidade e abrangência (com base nas noções de género, família e ordem), poder-se-ia dizer que o género fantástico se inclui no contexto mais englobante da família (do modo) constituída pelo fantástico modal ou ficção do metaempírico. Nestes, de resto, também se integram os territórios do maravilhoso, da ficção científica e das diversas formas de fantasia, assim como, em certa medida, do estranho e de muitos romances góticos. Por sua vez, a ficção do metaempírico (ou modo fantástico ou ficção especulativa) será subsumível na categoria mais vasta (na ordem) do insólito ficcional. Este corresponde ao imenso acervo estético-literário de cujas narrativas se poderá, no mínimo, dizer que não têm por objectivo conferir qualquer prioridade a uma mimese icástica, realista, apostando, ao invés, em múltiplas e diversificadas efabulações radicáveis no imaginário. Daí que, para além das classes genológicas acima referidas, nele também se insiram o realismo mágico, o real maravilhoso, a história alternativa (apenas contrafactual ou abertamente fantasista) e muitos outros tipos de textos.
REFERÊNCIAS
FURTADO, Filipe. A Construção do Fantástico na Narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980.
FURTADO, Filipe. Demónios Íntimos. A narrativa fantástica vitoriana (origens, temas, ideias). (Tese de Doutorado). Universidade Nova de Lisboa, 1987.
FURTADO, Filipe. Discursos do Metaempírico. In: SEIXO, Maria Alzira (Org). O Fantástico na Arte Contemporânea. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 51–57, 1992.
FURTADO, Filipe. S.v. Fantástico (modo). E-Dicionário de Termos Literários. CEIA, Carlos (Coord.). Disponível em: http://www.edtl.com.pt.
LEWES, George Henry. Problems of Life and Mind. (Vol.I), 1874. Boston: James R. Osgood and Company.