LÚCIO CARDOSO – ficcionista

Fernando Monteiro de Barros

O mineiro Lúcio Cardoso (1912-1968), radicado no Rio de Janeiro, integra o grupo de escritores brasileiros católicos dos anos 1930, como Octávio de Faria (1908-1980) e Cornélio Penna (1896-1958), pertencentes à corrente do romance psicológico, que floresceu paralelamente ao romance neorrealista do Nordeste. Tais escritores apresentam em suas obras uma inquietação metafísica diante do drama da condição humana e seus enigmas. A obra de Lúcio, assim como a de Cornélio, traz a marca da transgressão aos valores morais vigentes no Brasil da primeira metade do século XX. O pecado se constitui como o caminho para se chegar à Graça, em uma perspectiva barroca e subversiva aos códigos sociais da época. A tradição de um Brasil arcaico cultuado como mito se consubstancia em cenários marcados pela decadência de uma aristocracia arruinada e fantasmática, com flagrantes imagens de locus horribiles. Neste sentido, há um forte acento gótico na obra desses escritores.

No caso de Lúcio Cardoso, ele estreia com Maleita (1934), seguido de Salgueiro (1935), romances de estética neorrealista, mas caracterizados por certo traço sombrio. É com A luz no subsolo (1936) que Lúcio rompe com a ficção neorrealista e apresenta uma narrativa permeada de elementos tradicionais da literatura gótica, como o cenário imponente e senhorial da casa-grande figurando um espaço de medo e pesadelo, a presença do vilão aristocrático e da donzela em apuros e até mesmo certas nuances do fantástico, em concorrência com o estranho. Várias de suas outras “narrativas da província” – como a novela O desconhecido (1940) e o romance Crônica da casa assassinada (1959) – apresentam a configuração do Brasil da casa-grande e senzala como cenário arruinado e fantasmático, em evidente apropriação da ficção gótica do século XVIII que nasce com O Castelo de Otranto, de Horace Walpole. O modelo apresentado por Gilberto Freyre em sua obra canônica de 1933 – Casa-grande & senzala, que também apresenta fortes goticismos (BARROS, 2014) – serviu de lastro para escritores que, como Lúcio Cardoso, Cornélio Penna e até mesmo José Lins do Rego, apresentam em suas narrativas a decadência da tradição e do patriarcalismo juntamente com as marcas do passado escravocrata. Na literatura norte-americana, o Southern Gothic, o Gótico do sul dos Estados Unidos, representado por escritores como William Faulkner e Eudora Welty, também representa o passado escravocrata como substrato gótico. Na obra de Lúcio Cardoso, curiosamente, não há personagens afrodescendentes, mas a herança da escravidão se reflete no aspecto enclausurado dos personagens pertencentes à antiga casta senhorial, sobrevivendo anacronicamente no moderno século XX como representantes monstruosos ou vilanescos de um passado extinto.

Assim, na obra de Lúcio encontramos elementos que permitem considerá-lo como um representante do “Gótico brasileiro”, que é o Gótico permeado de elementos da cor local, em evidente clave antropofágica (BARROS & OLIVEIRA, 2017). Com efeito, Alfredo Bosi afirma que “desde Maleita, Lúcio Cardoso revelava pendor para a criação de atmosferas de pesadelo” (1999, p. 413). Luciana Picchio sublinha que, no romance Crônica da casa assassinada, “é nítida a lição neogótica” ( 1997, p.540). E Adonias Filho ressalta que, na obra de Lúcio, “o alvo era sempre o terror, o gothic novel da tradição inglesa” (1969, p.130), reconhecendo, ao mesmo tempo, que “os elementos nativistas persistem” (1969, p. 128).

Já as suas narrativas da cidade – como as novelas Inácio (1944), O Anfiteatro (1946), O enfeitiçado (1954), bem como os contos publicados nas páginas do jornal A Noite na década de 1950 – seguem a linha do Gótico urbano do século XIX, onde ecos de Edgar Allan Poe e Charles Baudelaire se traduzem na representação de um Rio de Janeiro – então capital federal – como espaço sombrio e noturno, onde vagam dândis, flâneurs e femmes fatales, em enredos permeados de acontecimentos insólitos e sinistros.

A rigor, a obra de Lúcio Cardoso apresenta as marcas do Gótico literário sem a presença do fantástico, com exceção de A luz no subsolo, com o personagem fantasma do Mendigo Resignado (que a narrativa deixa em suspenso e se trata de uma mera alucinação de alguns personagens ou não), do drama teatral A corda de prata (1947), com o personagem da Mulher de Preto (que também pode ser produto da alucinação da protagonista) e do drama teatral Angélica (1950) – este sim, plenamente inserido dentro da categoria do fantástico devido à presença do sobrenatural (ROAS, 2014) na temática explícita do vampirismo da personagem título, anciã que goza do viço da juventude ao sugar as jovens que hospeda em sua mansão, em clara alusão à célebre vampiresa húngara Elizabeth Bathory, a “condessa sanguinária”.

Além de romancista e dramaturgo, Lúcio Cardoso também publicou poesia, fez breves incursões pelo cinema – escreveu os roteiros de Almas Adversas (1949) e Porto das Caixas (1962) e dirigiu o inacabado A Mulher de Longe em 1949 – e traduziu obras seminais da literatura gótica, como os romances Drácula, de Bram Stoker, e O morro dos ventos uivantes, de Emily Brönte.

REFERÊNCIAS

BARROS, Fernando Monteiro de. Do castelo à casa-grande: o ‘Gótico brasileiro’ em Gilberto Freyre. Revista Soletras. São Gonçalo, n. 27, p. 80-94, 2014. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/soletras/article/view/13050/10335.
BARROS, Fernando Monteiro de & OLIVEIRA, Márcio Alessandro de. O Gótico brasileiro em “A Orgia dos Duendes”, de Bernardo Guimarães. E-scrita – Revista do Curso de Letras da Uniabeu. Nilópolis, v. 8, n. 3, p. 71-86, 2017. Disponível em: https://revista.uniabeu.edu.br/index.php/RE/article/view/3045/pdf.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 36.ed. São Paulo: Cultrix, 1999.
FILHO, Adonias. O romance brasileiro de 30. Rio de Janeiro: Bloch, 1969.
PICCHIO, Luciana Stegagno. História da literatura brasileira. Tradução de Pérola de Carvalho e Alice Kyoko. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
ROAS, David. A ameaça do fantástico: aproximações teóricas. Tradução de Julián Fuks. São Paulo: Unesp, 2014.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

BARROS, Fernando Monteiro de. A alegoria e o fantasma no Gótico brasileiro: Cornélio Penna e Lúcio Cardoso. Anais do XV Encontro da ABRALIC, Rio de Janeiro, p. 2472-2482, 2016. Disponível em:  https://sobreomedo.files.wordpress.com/2017/05/03072017.pdf.