ANÃO

Marcio Markendorf

Os anões povoam o imaginário das mais diversas narrativas, não ficando restritos ao campo do fantástico, do insólito, do maravilhoso, do horror e de vertentes similares. É possível encontrar estas figuras pequenas em narrativas dramáticas e até mesmo policiais. Embora possam existir ficcionalmente em contextos distintos, é preciso descrever objetivamente como são interpelados e constituídos no campo estético e cultural, de modo que o intuito é destacar as principais fantasias artísticas de representação existentes.

Antes de mais nada, é preciso considerar que o nanismo se trata de uma deficiência no crescimento provocada, em sua grande maioria, por carências hormonais ou por mutações genéticas. Ainda que, hoje, a ciência tenha um papel fundamental na desconstrução das taxonomias teratológicas (GIL, 2006), o presente ainda está marcado por uma significativa herança de explicações mágicas ou sobrenaturais para os corpos fora da norma. Em tempos passados, qualquer má formação congênita ou manifestação corporal peculiar nos indivíduos – a exemplo da intersexualidade, da microcefalia, da hipertricose, do albinismo, dos gêmeos xifópagos, dentre outros – era passível de ser considerada um portenta, uma espécie de sinal divino para a violação de algum tabu e/ou punição por um pecado cometido. Logo, seria de se esperar que, em função de uma visão moralista sobre determinadas biologias, um feixe de significados metafóricos fosse engendrado nesses corpos, sendo a monstruosidade um dos primeiros caminhos. O monstro, como diversas teorias sinalizam (COHEN, 1996; NAZÁRIO, 1998; CARROLL, 1999; GIL, 2006), incorpora aspectos de excesso (no sentido de uma aparência excessiva) e/ou de exceção (um tipo de desvio em relação às regras convencionadas).

A presença de anões em contos de fadas ou de magia, histórias produzidas pela inventividade da literatura oral, é vasta, e, para fins de exemplificação, podem-se mencionar dois títulos notórios: “O Pequeno Polegar” e “Branca de Neve”. Cabe observar que os anões frequentemente compõem um binômio antitético com os gigantes, não raras às vezes atribuindo às figuras diminutas um caráter benfeitor (“O sapateiro e os anões”, “A árvore narigueira”) e ao seu oposto, um caráter malfeitor (“João e o Pé de Feijão”, “O exímio caçador”, “O alfaiate valente”). Obviamente, a psicologia atribuída aos anões não apresenta um modelo constante de camaradagem, pureza e bom coração – frequentemente tendendo para aspectos mais sombrios e sinistros da psique (“O rei da montanha de ouro”, “Rumpelstilskin”, “A rainha da neve”). A leitura estética de feiura-bondade pode ser atribuída à estética romântica e o realce da beleza interior em detrimento da exterior; por outro lado, as narrativas de horror insistentemente apostam na descodificação semiótica simples na qual a feiura externa expressa visualmente uma personalidade terrível.

No primeiro caso destacado, “O Pequeno Polegar”, o leitor é conduzido por uma narrativa que tem como fundo histórico o problema da miséria e da insegurança alimentar dos menos abastados no período medieval: um casal com sete crianças está a passar fome e a mulher enuncia o desejo de que os filhos fossem pequenos como um polegar – único modo possível de poder alimentá-los com dignidade. Uma fada zombeteira que ali passava ouviu o pedido insólito e resolveu atendê-lo: fez a mulher dar à luz a um garoto do tamanho de um polegar. Arrependida da pilhéria, a fada concede à criança qualidades fora do comum, como grande esperteza e inteligência. É por conta dessas benesses que o personagem poderá ajudar a própria família: mata um gigante, apropria-se das mágicas botas de sete léguas dele, vaga pelo mundo trazendo riquezas para mudar o status social dos entes queridos.

A atribuição de supostos poderes mágicos ou preternaturais aos anões muitas vezes faz deles um tipo irmanado a outras raças da fauna maravilhosa, tais como duendes e gnomos, especialmente por consequência do tamanho diminuto. Em “O livro dos seres imaginários”, Jorge Luis Borges (2007, p. 108) registra que os gnomos são “duendes da terra e das montanhas”, desenhados no imaginário coletivo como anões barbudos, de traços toscos e grotescos, com vestes encapuzadas, cuja função seria a de salvaguardar tesouros ocultos do mundo. Na abordagem de Borges é possível destacar uma figuração típica dos anões, responsável por criar uma aparência corporal considerada esteticamente dúbia, grotesca e intersticial (KAISER, 2009): parecem crianças, mas são velhos barbudos. Tal combinação entre infância (estatura) e velhice (aparência) produz um sentimento de inquietação e, até mesmo, de dissonância cognitiva – motivo para que pessoas com nanismo costumem ser infantilizadas ainda hoje no mundo social, segundo práticas capacitistas. No registro de Borges há, ainda, um traço esotérico, místico, associado aos gnomos/anões, especialmente porque na psicologia da matéria e dos devaneios (conforme interpretações de Gaston Bachelard), lagos, grutas, abismos e geografias similares funcionariam como portais do inconsciente. Convergindo com essa leitura, o escritor argentino chama atenção para a etimologia do termo gnomo, uma derivação de gnosis, ou seja, o conhecimento. A partir de semelhante conclusão, entende-se que tais seres mágicos possuam o saber especializado acerca dos tesouros escondidos – materiais e imateriais. Afinal, o tamanho diminuto permite que se embrenhem em lugares de difícil acesso e descubram territórios que nenhum outro pode.

Por essa lógica é possível compreender um acrescentamento de função, originalmente atribuída aos gnomos, na representação esquemática dos sujeitos de pequena estatura nos contos de fadas. Em “Branca de Neve”, conforme registro dos irmãos Grimm, os sete anões da história são caracterizados como um grupo de trabalhadores extremamente organizado, responsável por extrair minérios das montanhas. Na narrativa, o grupo abriga a personagem-título do conto na própria casa e, depois que a menina cai em sono letárgico por conta da maçã envenenada, os anões, julgando-a morta, constroem um ataúde de vidro para a princesa, mantendo-a no alto da montanha, sob guarda, como se protegendo a um tesouro (a beleza estética da princesa é o valor precioso a ser salvaguardado). Na versão cinematográfica dessa história elaborada pela sensibilidade dos Estúdios Disney (1937), “Branca de Neve e os sete anões”, as figuras protetoras da princesa são destacadas no título e humanizadas por meio de nomes-epítetos de suas personalidades (Atchim, Soneca, Zangado, Feliz, Dengoso, Mestre e Dunga). No entanto, contrariando a versão original da história oral, os anões são mostrados de modo infantilizado, como crianças bagunceiras e desorganizadas, de modo que, ao chegar no casebre desses mineradores, Branca de Neve pensa tratarem-se de órfãos – algo sinalizado pelas camas pequenas e pelo estado caótico e insalubre do lugar. Por essa razão, simbolicamente a princesa assume uma função maternal naquele microcosmo, atitude que limita qualquer desejo amoroso (no sentido sexual do termo) e produz um tipo de disputa infantil por atenção, afeto e cuidados maternos por parte de todos os anões (CORSO, CORSO, 200, p. 79). Aliás, cabe sublinhar que, em vista da figuração como adultos de barbas brancas, assim como ocorre no imaginário tipicamente atribuído à última das idades da vida, a velhice, os anões parecem mesmo habitar um lugar não sexuado, de afetividade platônica e/ou somente espiritual.

Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2001, p. 49-50) reverberam parte da leitura efetuada por Borges ao descreverem os anões como seres de aparência monstruosa do mundo subterrâneo, símbolos das forças obscuras da nossa psique e, por isso, personificações das manifestações incontroladas do inconsciente. Seguindo tal linha de pensamento imaginativo, frequentemente a deformidade e a pequenez dos anões termina por compará-los a tipos específicos de demônios. Para além disso, também poderiam expressar, em razão do tamanho diminuto, a ideia de que são iniciados na retórica dos pensamentos dissimulados, nos mistérios e na clarividência – razão para que sejam tanto guardiões de tesouros quanto depositários de segredos, exercendo frequentemente a função de ouvintes e conselheiros das alcovas. No romance romântico regionalista “Inocência”, de Visconde de Taunay (2020), datado de 1872, o leitor encontra o pressuposto do conhecimento, da descoberta e do sigilo materializado no anão mudo Tico, que desempenha a função de vigia da personagem-título (tesouro da beleza e da pureza) e é responsável por revelar o relacionamento secreto de Cirino e Inocência, moça que já estava prometida a outro homem. Em outra seara, no conto criminal contemporâneo “O anão”, pertencente à coletânea “O buraco na parede”, de Rubem Fonseca (1995), o narrador da história, um ex-bancário apaixonado por uma mulher casada, confidencia suas aventuras amorosas a um anão em situação de rua, alguém que, mais tarde, irá traí-lo e chantageá-lo, ação que culminará em morte e destruição. Em ambos os enredos ficcionais, ainda que distintos em gênero e distantes no tempo, vê-se que os anões são figuras periféricas da história, marginais/marginalizados, mas fundamentais para a perturbação dramática dos enredos em vista do conhecimento secreto que detém.

Retomando o passado histórico, a presença de anões na sociedade renascentista dos séculos XVI e XVII (GIL, 2006) – na contramão da fertilidade intelectual e artística pela qual é conhecida o período – implicava em um tipo de moda movida por desejos pervertidos (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2001, p. 50), uma vez que os sujeitos diminutos eram destituídos de sua humanidade ao serem tratados como animais encarcerados. Esse tratamento da deformidade como espetáculo recebeu status de diversão perversa, pois nas cortes europeias era muito comum que anões desempenhassem o papel de bobo da corte a fim de entreter a realeza e seus convidados. Não eram percebidos como elementos maus ou maléficos, mas enxergados por uma lente desqualificadora de sua ontologia: pilhérias da natureza. O corpo atrofiado – vislumbrado como grotesco – poderia favorecer o riso, razão para que ocupassem o centro do entretenimento, e tornar-se alvo de escárnio porque sua estatura diminuta não os permitia serem levados a sério. Assim, assumindo um lugar paródico por excelência, constituindo um vetor para o carnavalesco, não raras as vezes poderiam ser considerados figuras subumanas, destinadas a exercerem o papel de animais de estimação da família real.

Diego Velázquez (1599-1660), artista pertencente ao período do barroco espanhol e artista oficial da corte do rei Felipe IV da Espanha, incluiu anões dos círculos palacianos em muitas de suas representações plásticas. Na corte espanhola, as atribuições mais comuns aos anões eram os de dama de companhia, confidentes e bufões – estes últimos chamados de hombres de placer. Dentre as principais pinturas de Velázquez nas quais os anões se fazem presentes estão: “Retrato de Francisco Lezcano (ou “O menino de Vallecas”), de 1635-1645; “O bobo Sebastián de Morra” (mais lembrada como “Anão sentado no chão”), de 1644; o icônico “As meninas”, de 1656; e “O príncipe Baltazar Carlos com um anão”, de 1900-1930. Historiadores da arte consideram que Velázquez opunha-se ao modo desumano como eram tratadas as pessoas de pequena estatura na sociedade real, posição ética atingida por meio de uma caracterização humanista e humanizadora dos anões na representação pictórica. Em “As meninas”, uma das pinturas mais importantes das artes em função da sintaxe visual idiossincrática dada por Velázquez, além da figura central, a infanta Margarida Teresa, circundada por duas damas de companhia, à esquerda encontram-se dois anões – Mari Bárbola, de origem alemã, e Nicolás Pertusato, italiana.

Embora os dados sobre Mari Bárbola e Nicolás Pertusato sejam um tanto escassos, foi a partir da premissa humanizadora de Velázquez na representação de anões que o escritor espanhol Eliacer Cansiano escreveu o premiado romance “El mistério Velázquez” em 1997. A obra apresenta-se como uma narrativa confessional (“cuadernitos de memoria”) de Nicolás Pertusato, personagem que procura registrar os esforços empreendidos para manter certa dignidade frente à deficiência do seu corpo, bem como sua relação com o pintor Diego Velázquez e a proposta de ceder a um misterioso pacto fáustico. O tema ficcional, centrado nas fronteiras de percepção sobre qual sujeito é constituído de humanidade e qual é destituído dela no mundo social, acaba por elaborar uma meditação filosófica sobre a diferença. Afinal, como argumentaria o filósofo moçambicano José Gil: “Os monstros, felizmente, existem não para nos mostrar o que não somos, mas o que poderíamos ser” (2006, p. 12). Em parte, é este vir-a-ser que torna as monstruosidades teratológicas fontes de fascínio e de inquietação. Nesse sentido, no ambiente das cortes, a presença de anões nos espaços palacianos permitia aos indivíduos uma parada reflexiva sobre o que se é e o que se poderia ser – uma pessoa deformada e/ou deficiente, de vida miserável. Obviamente a realeza e a aristocracia não se permitiam qualquer tipo de empatia frente à alteridade, pelo contrário, era um modo de reafirmar constantemente sua percepção de superioridade (física, estética, moral, material etc.) – às custas da objetificação, da humilhação e da animalização dos anões.

Em outra perspectiva de preconceito recreativo, o controverso filme “Monstros” (Freaks, 1932), de Tod Browning – livremente adaptado do conto “Spurs”, de Tod Robbins, publicado em 1926 – acentua o enlace entre espetáculo e teratologias, tomando como figura central o anão Hans. No letreiro de abertura do audiovisual, divulgado como um filme de horror com monstros reais, há uma contextualização histórica de como a “anormalidade” era percebida na época da produção hollywoodiana: “O acidente de um nascimento anormal era considerado uma desgraça e a criança com má formação era deixada abandonada para morrer. Se ocasionalmente algumas dessas crianças com má formação sobrevivesse, ela era sempre vista com suspeição. A sociedade a temia por causa de sua deformidade e a família era atribulada pelo resto de seus dias, envergonhada da maldição abatida sobre ela. Ocasionalmente alguns desses infelizes eram levados às cortes para serem zombados ou ridicularizados para diversão dos nobres. Outros eram deixados a perdurar numa vida de mendicância, furto ou fome. O amor pela beleza está profundamente arraigado na civilização. A aversão com a qual nós vemos pessoas anormais, os malformados e os mutilados é o resultado de um longo condicionamento que tivemos de nossos antepassados” (BROWNING, 1932, sem grifos no original). Apesar de a abertura do filme tentar estimular certa comiseração e devolver à humanidade aos personagens “anormais” de uma trupe circense, a mensagem positiva é anulada quando a narrativa termina com a sugestão de que aqueles sujeitos, a fim de se proteger da ameaça dos “normais”, poderiam conhecer segredos obscuros da biologia, capazes de transformar uma bela mulher em um monstro, ainda que apenas como parte de uma vingança poética. “Monstros”, à primeira vista, parece-se com uma fábula às avessas de “A bela e a fera” ou uma versão não sacrificial de “O corcunda de Notre-Damme”, de Victor Hugo (aliás, defensor da heterogeneidade da representação artística, na qual o feio pode realçar o belo, sendo o grotesco e o sublime superlativos desse primeiro binômio antitético). Ao longo do filme, roteirizado por Willis Goldbeck e Leon Gordon, problematiza-se o fato de que um conjunto de sujeitos vistos como freaks não poderia ter outra vida senão na marginalidade civilizatória (o circo sempre está de passagem e situa-se nos limites da cidade) e no cerne espetacular do microcosmo da tenda circense. Na antológica sequência da festa de casamento entre o anão Hans (Harry Earles) e a bela e longilínea trapezista Cleopatra (Olga Baclanova), a mulher humilha em público o próprio marido, tratando-o como uma criança e proferindo sua abjeção contra todos os demais. Cleopatra não quer ser um deles – como havia sido saudada com alegria pelos convidados (We accept you, one of us!  – Nós aceitamos você, uma de nós) – porque seu interesse era tão somente material e não amoroso: a herança que Hans havia recebido de um parente distante. O filme acabou sendo vítima da premissa constante nos letreiros iniciais: “(…) a mais surpreendente história de horror sobre o que é anormal e indesejado” (BROWNING, 1932), algo que perturbou tanto a sociedade da época que, por pressão de entidades religiosas, o filme teve a exibição proibida em diversos países, mas, quando de sua redescoberta nos anos 1960, atingiu um status cult. Curiosamente é nesse mesmo período que a contracultura organiza formas de atuação e resistência políticas ao aglutinar sujeitos divergentes da norma sob a categoria freak – uma reapropriação do termo com vistas a neutralizar seu poder pejorativo – e promovendo a abertura para diferença com o lema “Freak out!”.

A adaptação literária de “Monstros” opera de modo inverso em relação ao do conto “Branca de Neve”, já mencionado. Na história original, de Tod Robbins (1926), o anão Jacques Courbé, ainda que seja vítima de um estelionato sentimental por parte de Jeanne Marie (o popular golpe do baú), não assume um papel de vítima passiva, pois a trama envereda para uma narrativa de vingança. Após ser insultado pela esposa na noite do casamento, Jacques decide castigá-la com certa fúria misógina, tratando-a como uma serviçal, isolando-a do convívio social, mantendo-a sob vigilância e maus tratos contínuos e ordenando-a que o carregue nos ombros a uma longa distância, com a intenção de humilhá-la publicamente e aquebrantar seu espírito – o título do conto remete a esse núcleo dramático, pois referem-se às esporas de montaria. Ainda não tendo cumprido metade da terrível sanção do marido, Jeanne Marie procura a proteção de Simon Lafleur, seu antigo interesse amoroso, mas Jacques surge montado em um cão, mata o suposto amante com uma espada e dá sequência à punição da esposa. O roteiro do filme de Tod Browning também difere da história original quanto ao poético código de ética que protege todos os personagens do circo, uma vez que Robbins retrata o anão Jacques como um sonhador romântico, sem amigos entre os outros freaks do Copo’s Circus, e de personalidade mal-humorada e egocêntrica. Outra grande diferença é que, no audiovisual, Hans parece cumprir uma função menos degradante que na ficção literária – Jacques apresentava-se na arena montado em um cachorro, St. Eustache e era alvo de grande zombaria, frequentemente recebendo sobre si uma chuva de cascas de banana e cascas de laranja da plateia. Imaginar sua singular montaria como um bravo corcel e a si mesmo como um valente cavaleiro era um modo de o personagem recalcar a realidade e proteger-se mentalmente das agressões cometidas reiteradamente contra seu corpo diminuto. Aliás, na descrição de Robbins, Jeanne Marie era uma bela e alta amazona e cuja mão, conforme registra o narrador, se estivesse cerrada, era praticamente do tamanho da cabeça de Jacques – e, nos pensamentos e declarações da artista circense, Jacques não passava de um “pigmeu”, “de um pequeno macaco”, de uma “edição de bolso de um cortesão”, alguém que ela poderia carregar nos ombros “como um sagui treinado”. Se, por um lado, “Spurs” sobrepõe à imagem de monstruosidade teratológica à de monstruosidade moral na figura de Jacques; por outro, “Monstros”, aproxima-se de uma abordagem condescendente para com os freaks do side-show e apresenta-os, na voz da cuidadora Madame Tetrallini (Rose Dione), de modo infantilizado, como crianças, endossando uma visão capacitista sobre as deficiências que persiste na sociedade.

Percorrendo a senda interpretativa na qual o monstro incorpora o princípio da alteridade (COHEN, 1996; NAZÁRIO, 1998), a escritora Veronica Stigger demonstra em “Os anões”, conto presente na coletânea homônima de 2010, que a diferença é uma fonte difusa de sentimentos de medo e de ameaça. Na história, um grupo de pessoas de diferentes idades começa a indispor-se com um casal de anões que está a fazer provinhas de doces em uma confeitaria. Embora a narradora procure justificar seu sentimento crescente de agressividade por conta das “graves falhas de caráter” do casal, exemplificadas por umas poucas situações extremamente banais, não há qualquer argumento legítimo para o que se segue ao final da narrativa: um linchamento coletivo violento e bestial. A narradora de Stigger anula qualquer possibilidade de simpatia (no sentido de afinidade identitária) e de piedade (no sentido de consideração pela miséria do outro) pelos anões por causa do alegado desvio ético deles – um substituto moralmente mais viável que o simples julgamento valorativo de estranheza de sua biologia corporal. Por fim, o pequeno casal, comparados a pigmeus, é transformado em um tipo de pasta de carne, sangue e ossos, jogado na lixeira pela única espectadora passiva da violência, a atendente da confeitaria – cuja preocupação é o medo de perder o emprego, caso a patroa veja aquela desordem. O conto “Os anões”, portanto, acaba por ser uma denúncia ácida (e até heurística) sobre como o preconceito atua no imaginário coletivo, destruindo o que não é identidade, designando tal vocábulo aqueles que são iguais/idênticos para manutenção da hegemonia. Cabem aqui os argumentos do historiador Luiz Nazário de que “a morte do monstro é sempre uma apoteose da civilização” (1998, p. 12), ou seja, a eliminação da diferença é uma estratégia (simbólica/política) de manutenção do status quo, e, ademais, um modo de satisfazer impulsos destrutivos sob a égide da eliminação de excessos e desvios da ordem estabelecida como natural. Em tal perspectiva, os personagens do conto projetam na figura dos anões um profundo e íntimo mal-estar acerca da convivência com sujeitos/figuras de exceção, de modo que o anulamento do desassossego consiste na zona de exclusão – algo que culmina em um desmedido ato imerecido de fúria responsável pelo extermínio do casal de anões.

A pensadora Susan Sontag (1987, p. 250), estabelecendo um paralelo entre filmes de ficção científica e filmes de horror, lança outras luzes sobre a questão acima destacada ao afirmar que ambos gêneros narrativos oferecerem uma espécie de fantasia destrutiva ao espectador: ao liberar sentimentos cruéis – ou amorais –, há prazer em destruir “seres excluídos da categoria do humano”, pois a operação produz um sentimento de superioridade em relação ao monstro/outro “associada em proporções variáveis à excitação provocada pelo medo e pela aversão”, condições que permitem calar quaisquer escrúpulos morais e autorizar o deleite com a crueldade. Sendo assim, como acontece em “Os anões”, os personagens extravasam no Outro – inferior, estranho, diferente – a hostilidade antes reprimida pela comunidade de iguais na forma de uma catarse homicida.

Por fim, cabe destacar uma última figuração artística, na qual há o predomínio de uma visão insólita e até filosófica desempenhada pelas pessoas de pequena estatura. No romance “Os anões”, de Luís André Nepomuceno, publicado em 2009, em meio a uma peste misteriosa que assola a cidade, o narrador vê sua casa invadida e governada por uma sociedade de anões (descrito pelo narrador como “horda”, o que torna a acepção semântica propositalmente ambígua). Como agentes de fantasias escatológicas (e marcadamente judaico-cristãs) sobre o fim do mundo, que podem ter como vetor epidemias, os anões acabam configurando nessa ficção uma paródia pós-moderna das narrativas-mestras da verdade: a figura do pai (ao modo de Deus), a intersecção entre dogma e burocracia, a dinâmica da crença e da desconfiança, o significado da saúde e da doença, a deficiência do ver (miopia) e do ser (acondroplasia). Da mesma forma que a enfermidade pública dispara medo e repulsa – Susan Sontag (2007, p. 109) argumenta que os juízos morais concernentes às doenças incluem juízos estéticos (belo/feio, limpo/sujo, conhecido/estranho e do normal/insólito) – o aspecto invasor dos anões e sua constituição física destila um sentimento de profunda anormalidade e abjeção – a horda é descrita como composta por corpos feios, carrancudos e desproporcionais. E, em um último comparativo, do mesmo em que tempos antigos cataclismos e desordens poderiam ser anunciados por acontecimentos astrológicos, os anões, como portenta, tornam-se o anúncio de um fim (da história, da utopia, da autoridade). Não é por acaso que monstros e doenças compartilham dos mesmos campos simbólico, tais como, o mal, a abjeção, a monstruosidade e a poluição.

É importante notar que as representações de anões, sobretudo na ficção, podem variar amplamente e podem refletir as atitudes e percepções culturais em relação à estatura e à diferença. Algumas representações podem reforçar estereótipos negativos, enquanto outras são capazes de desafiar preconceitos e promover a compreensão da diversidade humana. Além disso, a presença de anões nas narrativas pode ser empregada simbolicamente como meio de explorar temas variados, dentre os quais estão a luta contra adversidades, a busca por identidade e pertencimento, ou até mesmo questões existenciais, dependendo do contexto e das intenções do autor. Em resumo, a presença de anões nas narrativas é multifacetada e reflete um conjunto de fantasias artísticas que podem variar de acordo com o gênero literário e as influências culturais.

REFERÊNCIAS

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MONSTROS (Freaks). Direção: Tod Browning. Roteiro: Willis Goldbeck e Leon Gordon. Estúdios MGM:  EUA. 1h04min. 1932.
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SONTAG, Susan. Doença como metáfora, AIDS e suas metáforas. Tradução de Paulo Henriques Britto e Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.
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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

ANDERSEN; GRIM; PERRAULT. As mais belas histórias. vol. 2. Tradução de Marcelo Hauck. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
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