AMERICAN GHOSTS & OLD WORLD WONDERS, literatura – Angela Carter

Cleide Antonia Rapucci

A autora inglesa Angela Carter faleceu em 1992 e deixou instruções precisas para a publicação do livro American Ghosts & Old World Wonders, lançado em 1993. Carter deixou o livro preparado para publicação, tendo reunido os contos e já indicado, inclusive, o título. Sua testamenteira literária, Susannah Clapp, disse que esses contos foram escritos no final da vida de Carter: histórias sobre lendas, mitos, maravilhas; histórias que se dividem entre a Europa e a América, entre velhos e novos modos de narrar e celebrar (CLAPP, 1994, p. ix).

Os contos da América incluem “Lizzie’s Tiger”, “John Ford’s Tis Pity she’s a whore”, “Gun for the devil” e “The Merchant of shadows”. A Parte II, que são os contos do Velho Mundo, engloba os contos “The ghost ships”, “In Pantoland”, “Ashputtle or The Mother’s Ghost”, “Alice in Prague or The curious room” e “Impressions: The Wrightsman Magdalene”.

Dois dos contos foram incluídos no livro por Clapp, tendo sido descobertos depois da morte de Carter. Um deles é “The ghost ships: a Christmas story”, que Clapp coloca no meio do livro, iniciando a parte dois e justifica: “Os três navios fantasmas, navegando com seu carregamento mágico entre o Velho e o Novo Mundo, fazem a ponte entre as duas seções” (CLAPP, p. x). O outro é “Gun for the Devil”, que Clapp considera se encaixar em forma e conteúdo a “John Ford´s ´Tis Pity She´s a Whore’.

Este é um livro de travessias. Os contos, em sua maioria, foram publicados em revistas variadas, no período de 1987 a 1992. Nesses textos, Carter revisita gêneros, tradições, a história, outras artes, sempre escrevendo a partir de um entre-lugar, muito próprio do insólito, aquele de narrativa de transição, em que temos uma fluidez de fronteiras, a subversão do real, expandindo-se essa subversão para a totalidade da narrativa carteriana.

Começando pelo próprio título da coletânea: fantasmas americanos e maravilhas do velho mundo, temos a impressão de que os adjetivadores estão trocados. Nos contos americanos, Carter revisita o cenário norte-americano, mexendo com velhos fantasmas, colocando vinho novo em odres velhos, como ela gostava tanto de fazer. Assim, nos traz novas visões, novas histórias e novas possibilidades.

No conto “Lizzie’s Tiger”, Carter revisita a infância de Lizzie Borden, figura real da história norte-americana, acusada de assassinar o pai e a madrasta em Massachusetts em 1892. Há toda uma atmosfera maléfica envolvendo as personagens, o que realça o ambiente puritano em que a pequena Lizzie cresceu.

Já “John Ford’s ‘Tis pity she is a whore” remete à peça de mesmo título escrita por John Ford no século 17, justapondo-a a um roteiro de filme imaginário que teria sido criado pelo cineasta norte-americano John Ford. Carter parte da peça do dramaturgo jacobita John Ford, publicada em 1633, que trata do trágico amor incestuoso entre os irmãos Giovanni e Annabella, em que se pode ver o mito do andrógino, da unidade inicial. O motivo do duplo é explorado aqui por Carter, como se pode observar na cena do espelho.

O conto “Gun for the devil” aborda o motivo do pacto diabólico. A história se passa numa cidade da fronteira mexicana, dominada por uma família de bandoleiros, os Mendoza. Temos uma personagem da nobreza do Velho Mundo, conhecido como Conde, que tem um passado obscuro em que há histórias de pacto demoníaco. Novamente nesse conto temos a ideia do duplo.

Já no conto “The Merchant of shadows”, o narrador é um estudante de cinema que vai entrevistar a viúva de seu objeto de estudo, um diretor de Hollywood da década de 30, chamado Heinrich Manheim. Nesse conto, Carter dialoga com seu próprio romance The Passion of New Eve, em que havia a personagem Tristessa. Desde o início do conto fica marcado o ambiente do insólito, quando o narrador afirma: “I am a student of Light and Illusion” (CARTER, p. 66). Temos nesse conto as identidades trocadas, o limite tênue entre fato e ficção, a cultura do simulacro.

A Parte II inicia com o conto “The ghost ships”, que faz uma ponte entre a América e o Velho Mundo. O conto trata de três navios que chegam à Baía de Boston na noite de Natal, trazendo as antigas práticas pagãs que os puritanos se recusam a aceitar. O conto trabalha com as fronteiras pagão/cristão; sonho/realidade; celebração (Natal=Carnaval)/repressão; lei/folia; razão/descontrole.

“In Pantoland” é um híbrido de conto e ensaio, em que Carter analisa a tradição da pantomima na Inglaterra. Pantomima é um tipo de performance teatral que mistura conto de fadas, comédia pastelão, participação da plateia, leve insinuação sexual, música e dança. Nesse texto, Carter explora a teatralidade, no universo do hiperreal (onde tudo é grande), da carnavalização, “da ilusão e transformação” (CARTER, p. 99), onde “tudo é excessivo e o gênero é variável” (p. 100).

Em “Ashputtle or The Mother´s Ghost”, Carter propõe três versões para a história da Cinderela, fazendo uma revisão do clássico conto de fadas à luz da crítica feminista. Na primeira versão, “The mutilated girls”, Angela Carter na verdade faz uma análise do conto “Ashputtle”, discutindo o papel das personagens: o fantasma da mãe, o pai ausente e as filhas sem desejo próprio, apenas cumprindo o desejo das mães. A segunda versão é uma nova história, “The burned child”, em que a garota tem um papel ativo e disputa o mesmo homem que a madrasta. A terceira versão, “Travelling clothes”, é a mais sucinta das três, em que a menina vai chorar no túmulo da mãe e esta a auxilia a ir em busca da própria sorte, final tipicamente carteriano, a mulher em busca de seu destino.

O conto “Alice in Prague or The Curious Room” é dedicado ao cineasta Jan Svankmayer, nascido em Praga, que em 1988 fez um filme sobre Alice. Carter trabalha com personagens históricas do período elisabetano, os ocultistas John Dee e Edward Kelley, que estão em Praga trabalhando para o Arquiduque Rudolph. Geralmente os críticos consideram esse conto surreal, estranho, mas a vida dessas três figuras históricas não é menos insólita. John Dee dedicou-se à adivinhação e à magia.

O último conto da coletânea é também um híbrido de conto e ensaio, como “In Pantoland”. Em “Impressions: the Wrightsman Magdalene”, Carter analisa a figura de Maria Madalena na pintura, detendo-se no quadro do francês Georges de La Tour, Madalena e as duas chamas, que foi comprado pelo casal Charles Wrightsman e doado ao New York Metropolitan Museum. Temos aqui um híbrido entre texto e pintura.

REFERÊNCIAS

CARTER, A. American ghosts & old world wonders. London: Vintage, 1994.
CLAPP, S. Introduction. In: Carter, A. American ghosts &old world wonders. London: Vintage, p. ix-xi. 1994.