MARAVILHOSO

Filipe Furtado

Desde os seus alvores, o maravilhoso já patenteava grande número dos elementos semânticos que, até à atualidade, vão acompanhar quer a sua fortuna literária, quer a dos géneros e sub-géneros a ele associáveis: o vazio, o desejo e a alteridade. Muito esquematicamente, poder-se-ia dizer que, desde os seus primórdios, essas classes de textos tendem a preencher um vazio e a fomentar uma possível, embora incompleta, realização de desejo, mediante a efabulação de diversos tipos de alteridade.

À sua maneira, com efeito, o maravilhoso procura ocupar um vácuo multiforme: cognitivo (explicando o mundo, as coisas e a História); ético (estatuindo e exemplificando padrões de comportamento); institucional (fazendo a apologia das estruturas e camadas sociais dominantes); libidinal (proporcionando uma satisfação vicarial do de­ sejo e, através dela, uma acalmia das tensões conflituais do aparelho psíquico).

Porém, como sucede com a maioria dos produtos culturais de sociedades animistas e teocêntricas, as “explicações” avançadas pelo maravilhoso não promovem uma relação cognitiva directa, sujeito-objecto, antes a “triangulam”, por assim dizer, interpondo-lhe axiomaticamente a mediação de um elemento “outro”, relevável de uma ordem dife­ rente e, em regra, encarado como superior. Para se tornar mais imediatamente inteligível, este recebe a forma de diversas entidades preternaturais: os génios, os deuses, os espectros ou os demónios. O poder a elas atribuído está na origem de tudo, determina e condiciona os mais ínfimos comportamentos das sociedades ou dos indivíduos, mesmo quando a estes concede uma vaga ilusão de livre arbítrio ou a capacidade de operar milagres.

Transpondo para a ficção os traços básicos da mundividência animista e da sua sobrevivência nas mentalidades religiosas, o maravilhoso evoca um universo onde o sobrenatural faz parte do quotidiano ou nele surge sem despertar intensas reacções de surpresa ou incredulidade. Daí, em grande medida, o teor geralmente confiante, optimista e, por vezes, eutópico inerente à grande maiora dos textos maravilhosos. A práxis que apontam pretende-se inquestionável: é bebida nas fontes supremas, traduz as verdades absolutas, baseia-se na interpenetração constante do mundo conhecido por forças omnipresentes e omniscientes.

Apenas sujeitos a oclusões episódicas ou a flutuações de pormenor, estes condicionalismos socioculturais manter-se-ão ao longo dos tempos, impregnando a literatura, quer na sua expressão comummente denominada erudita, quer, de forma talvez ainda mais intensa e constante, na sua vertente dita popular. Surgem, assim, as cosmo-teogonias, os restantes mitos, as mais antigas obras literárias, como a epopeia de Gilgamesh, mas também as hagiografias, os romances cavalheirescos e corteses, os contos de fadas e muitas das narrativas radicáveis na tradição oral (baladas, xácaras, rimanços).

Indissociável da proto-história da epopeia, o maravilhoso poderá, portanto, ser encarado através das “formas naturais” da poesia, as quais, em grande medida, integrava já embrionariamente. Sobrevivendo através da Antiguidade e da Idade Média, coexistindo com estruturas religiosas politeístas e monoteístas, como fautor e repositório de alteridade, de figuras e situações alheias à natureza, o maravilhoso manterá, sem desafio, a sua vigência até ao chamado Pré-Romantismo.

Já antes, contudo, a Revolução Científica, o racionalismo iluminista e o livre-pensamento haviam tornado certas camadas de intelectuais e de elementos da média burguesia muito menos permeáveis ou, mesmo, avessos à plena aceitação do sobrenatural ou de qualquer osmose entre ele e o mundo empírico. Condenadas a um severo ostracismo, entidades e manifestações preternaturais quase desaparecem da literatura “culta” na vaga de euforia realista que preside à estética neoclássica e à rápida divulgação do romance moderno, para só retornarem, nos finais do séc. XVIII, com o dealbar do Romantismo e, poucas décadas antes, com o romance gótico.

De qualquer modo, este último revela-se, em quase todas as suas realizações textuais, apenas mais uma variante do maravilhoso, em que, apesar de um recurso muito mais discreto e comedido a elementos exteriores à natureza, os traços essenciais do género permanecem de forma iniludível.

Todavia, o Iluminismo encontra-se ainda demasiado próximo para não invadir e marcar a própria índole supernaturalista destes textos que, afinal, se constituem em grande medida como reacção contra ele. Em alguns deles, como sucede com os de Ann Radcliffe, já as figuras e ocorrências aparentemente sobrenaturais surgidas ao longo da acção encontram, quase sempre no desfecho desta, uma explicação racional que as reintegra na normalidade quotidiana.

Toma, assim, forma o género estranho, cujo principal traço delimitativo face ao maravilhoso é precisamente a recusa final, por racionalização, das entidades e manifestações que este último aceita sem reservas. Tais características viriam a ter expressão em inúmeras narrativas de terror e horror de sobrenatural explicado, muitas delas veiculadas na actualidade através do cinema de outros media.

Este texto é um excerto de:

FURTADO, Filipe. “Os discursos do metaempírico”. In: SEIXO, Maria Alzira. O fantástico na arte contemporânea. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 1992. p. 51-57.