MÁRIO DE CARVALHO – ficcionista

Luciana Morais da Silva

Mário de Carvalho caminha pelas sendas da ficção, aliando posicionamentos críticos ao riso, à ironia e à manifestação do inaudito – termo que, aliás, aparece no título de uma de suas obras, “A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho” (1992, p. 27-35). Suas aventuras são construídas na literatura – crônicas, contos, novelas, romances etc. –, no teatro, no cinema. São narrativas em que as personagens transitam pelo quotidiano, ultrapassando os limites da história e reinventando as bases da ciência. Assim, em sua ficção, o “impulso de desconstrução de mitos e valores adquiridos” (REIS, 2004, p. 30) se instaura, e o insólito destaca-se como categoria pela construção da exceção como parte da vida comum e diária. Trata-se, em síntese, de uma “literatura em que sólito e insólito se manifestam em tensão” (GARCÍA, 2008, s.n.). Nela, a manifestação explicita do insólito estará presente, por exemplo, em Contos Vagabundos (2000), Contos Soltos (1986), Casos do Beco das sardinheiras ([1982] 1991), Contos da Sétima Esfera ([1981] 1990), A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho e outras histórias ([1983] 1992) dentre outros títulos em que verificam diálogos entre a História e as histórias literárias.

Os ambientes de sua escrita encontram-se, em geral, entre o Alentejo, de suas memórias familiares, e Lisboa, onde vive. As lembranças das idas e vindas por Lisboa podem ser encontradas em fortuitos diálogos dos Casos do Beco das Sardinheiras, em que se refere a “um beco como outro qualquer. Encafuado na parte velha de Lisboa” (CARVALHO, 1991, p. 13), ou em “A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho”, situando a ação “nessa manhã de setembro [em que], entravam em Lisboa pela Avenida gago Coutinho, direitos ao Areeiro…” (1992, p. 27). O espaço ficcional de muitas de suas obras está, portanto, profundamente arraigado no mundo empírico de suas vivências: “Ainda hoje, pelo emaranhado de vielas e becos, corre, numa pincelada festiva, o amarelo dos carros eléctricos […] sacudindo o tinir vivo e álacre de campainhas, zunindo vertiginosamente nas ladeiras estreitas, roçando milimetricamente as esquinas” (2018, s.n.).

Suas histórias acontecem em lugares reconhecíveis, e seus mundos ficcionais estabelecem um limite entre vida e obra, ao traçarem na ficção parcelas vivenciadas em seu quotidiano. Como ele mesmo observa: “É difícil dissociar o sorriso dos Casos do Beco das Sardinheiras do declive brando das velhas colinas de Lisboa, a uma luz doce, com um casario ancestral a escorrer sobre um rio vasto, cansado de História” (CARVALHO, 2018, s.n.). O sorriso permite um caminhar pela História presente nas histórias elaboradas por Mário de Carvalho. Afinal, “o riso é uma forma de resistência […] O riso tem sempre qualquer coisa de desafiante e de subversivo” (2010, p. 34).

Nesse sentido, é pelo riso também que ele estabelece o inaudito propiciando às personagens um protagonismo ascendente à condição de co-autores de uma obra de ficção ou ficções, aptos, portanto, a recontar e/ou vivenciar parcelas de suas vidas iluminadas nas páginas de um livro considerado pelo autor-narrador-personagem como “menor” (CARVALHO, 1991, p. 83-87). Sua escrita propõe, por conseguinte, a formulação de narrativas de encaixe, em que os seres ficcionais são capazes de “trocar ideias” com seu autor e, assim, nesse mundo de exageros e transformações, o insólito ficcional é instaurado.

Em Casos do Beco das sardinheiras, a escrita promove uma caminhada entre Alfama ou Moraria, sem se saber ao certo a verdadeira localização do Beco. No “Prólogo” (CARVALHO, 1991, p. 13-16), que antecede os onze contos que compõem o livro, e, no “Epílogo” (1991, p. 83-87) metaficcional, verificam-se opiniões divergentes sobre o Beco, local em que se dão todos os onze episódios. Lugar de morada das personagens e de realização das histórias do Beco das Sardinheiras, um Beco como outro qualquer em Lisboa, o espaço é estruturado com base no mundo de referência, principalmente por atestar a validade da localização por meio de “sólidos argumentos topográficos” (1991, p. 13). O narrador-personagem, figurado na funcionalidade de autor, argumenta: “eu, por mim, não me pronuncio. Tenho ideia de que ali é mais Alfama, mas não ficaria muito escarmentado se me provassem que afinal é Mouraria” (1991, p. 13). A localização do Beco é, dessa feita, ratificada por argumentos sólitos e científicos.

O autor mune-se da ciência para gerar uma sensação de que, a qualquer momento, há como se adentrar o ambiente do Beco e de suas histórias, produzindo, desde o cerne da obra uma insólita, possibilidade de trânsito entre os níveis narrativos. O autor integraria o universo literário, sendo, portanto, criatura, ou seja, ser de papel, e, ainda, e o mundo de referência, logo, criador, ser de carne e osso. Nesse fluxo de raciocínio, não haveria limites entre idas e vindas, pois, da mesma forma, as personagens do Beco são seres capazes de confrontar insolitamente o autor.

Nesses “casos do Beco”, há a eficácia do jogo literário ao percorrer os caminhos do Beco com histórias que precisam ser contadas; com personagens vivos que, por sua vez, põem em xeque o fazer literário. Desta forma, o autor projeta nesse Beco um homem qualquer, como Andrade da Mula, que é capaz de engolir a Lua e acaba renomeado de Andrade da Lua (“O tombo da Lua”, CARVALHO, 1991, p. 17-20), ou como Zé Metade, que passa dias e dias a transitar sob uma carrinha, depois de ser cortado ao meio por navalhas sevilhanas, perguntando aqui e ali sobre os acontecimentos insólitos lá enraizados (SILVA, 2016a, s.n.). Esse contínuo ir e vir do Beco ganha maiores destaques no “Prólogo” (CARVALHO, 1991, p. 13-16) e, ainda, no “Epílogo” (1991, p. 83-87), sendo este um espaço de concretização das histórias com a mediação do autor-narrador-personagem, que recebe, contrariado e a contragosto, algumas de suas personagens em casa.

Em sua primeira obra, o livro Contos da Sétima Esfera, Mário de Carvalho já surpreendera ao propor um confronto entre os percursos correntes da época, próprios do realismo, e a construção de narrativas fantásticas, maravilhosas, marcadas pela elaboração de mundos da sétima esfera, transbordantes. Nela há contos em que as personagens acabam por perder suas sombras, ocasionando o fim da percepção do belo. Nele, de certo modo, há a abordagem acerca estética da obra literária, possibilitando diversas leituras sobre a narrativa e a partir das narrativas (“A transmutação”, CARVALHO, 1990, p. 151-152). Assim, cada leitor depara-se com o surpreendente, transmutando, por vezes, os conceitos naturais ou, apenas, os conceitos do âmbito da linguagem e da arte.

Em “O circuito” (1990, p. 167-170), por exemplo, o narrador tem por objetivo alugar um apartamento e, ao conseguir, depara-se com uma mancha inexplicável e causadora de um incomodo excepcional, instaurando-se o insólito. Aparecimentos inesperados ou desaparecimentos incomuns são reincidentes em Contos da Sétima Esfera, configurando mundos de possibilidades insólitas, já que transtornados, como em “O circuito”, pelo simples aparecimento de uma mancha.

Nesses mundos de descobertas, Mário de Carvalho compôs um inventário de espaços insólitos, perfazendo-os a partir de uma imersão no caráter crítico diante do mundo em que vive. Em “A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho” (1992, p. 27-35), o autor faz colidir diferentes momentos da História – 1148 e 1984 –, apontando mudanças de mentalidade e costume em um cenário quotidiano, no qual se dissolvem personagens, tempo e espaço, absorvendo ideais distintos e forjando uma lógica transgressiva e, logicamente, crítica, já que também absurda.

A reflexão acerca da História, apontando para manifestações insólitas decorrentes de um aparecimento ou algum acontecimento inaudito, é também o mote para a produção “O Basilisco” (CARVALHO, 1986, p. 25-32). Nas ruas de Lisboa, surge uma serpente mitológica de proporções inimagináveis e, ainda, considerada “uma estranha maldição” (1985, p. 25), mexendo com a “normalidade que havia sido alterada” (1985, p. 25). Trata-se, pois, mais uma vez, da metamorfose de tempo e espaço, promovendo, por meio da manifestação do insólito, a consecução de um ambiente permeado de aventura e mistério.

Em muitas de suas narrativas, o tempo é forjado por uma singularidade extraordinária, incomum, conjugando os fatos e a memória aos propósitos subordinados à ficção. Mário de Carvalho constrói personagens, espaços, tramas, narradores e, em certo sentido, também autores que podem ser lidos à luz do insólito ficcional, transbordando o corriqueiro ao elaborar histórias que transitam entre o factual e o ficcional, principalmente, ao extrapolar o riso, por meio de uma reflexão contundente e irônica.

O mergulho nessas narrativas que passeiam pelos jardins do insólito ficcional é validado no “Epílogo” de Casos do Beco das Sardinheiras, quando o narrador-personagem-autor afirma não estar “muito disposto” a receber em sua casa as personagens que lhe vem reclamar a continuação dos casos do Beco, ainda por contar. Ele não queria que acontecessem, no recanto do seu lar, “as coisas que costumam acontecer no Beco das Sardinheiras” (1991, p. 83). Contudo, mesmo a contragosto, recebe suas personagens e lhes diz que não poderia continuar a escrever as pequenas histórias do Beco, pois, afinal, “a literatura […] tem os seus pergaminhos, a sua dignidade” (p. 85), e caso ele continuasse a tratar do caso miúdo do Beco, seria reconhecido como um “escritor menor” (1991, p. 85). Ele declara, por fim, que, se não se precaver, não fará “outra coisa senão história do Beco” (1991, p. 86), e já está farto “deste populismo-fantástico-humorístico-coiso…” (1991, p. 86).

Em Quem disser o contrário é porque tem razão, primeiro de seus livros de ensaios, acerca da escrita criativa, em que problematiza a produção ficcional, a teoria e a crítica, o autor volta ao tema anteriormente tratado metaficcional no prólogo de Casos do Beco das Sardinheiras. Nesse livro, ele afirma que “[o] autor deve criar o leitor que mereça. Um leitor criativo é muito mais gratificante do que um consumidor passivo e estéril” (2014, p. 46). Afinal, “a literatura é uma forma artística, pulsando com e contra o seu tempo. Os conceitos têm de acompanhar essa plasticidade, complexidade e fluidez” (CARVALHO, 2015, p. 202). Para ele, as palavras são volúveis, ultravibráteis (2014, p. 224), formas vivas de criação, costurando os aprendizados da boa leitura ao gene da criação. Nas etapas percorridas pelo bom escritor estará presente a leitura atrelada à escrita, pois, como destaca, é na continuidade da produção que se dá o apogeu do talento.

O papel da escrita, “o ‘abre-te, Sésamo’ da criação literária” (CARVALHO, 2014, p. 275), para ele, seria “fazer com que as coisas sejam outras, como se sentidas pela primeira vez, únicas e especiais, tocadas de mistério e assombro, de riso ou reflexão, para o que é necessário dar-lhes uma nova luz” (2014, p. 275). Suas reflexões apostam na prática mais informada do ofício do escritor, consciente da necessidade de investimento seja pelo riso, seja pela aposta na percepção extraordinária do mundo. O esforço da escrita teria, assim, uma elaboração pela veia criativa ligada especialmente ao talento e à prática em universos de possibilidades singulares.

REFERÊNCIAS

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CARVALHO, Mário de. Contos da Sétima Esfera. 2.ed. Lisboa: Caminho, 1990.
CARVALHO, Mário de. Casos do Beco das Sardinheiras. 5.ed. Lisboa: Caminho, 1991.
CARVALHO, Mário de. A inaudita guerra da Avenida Gago Coutinho e outras histórias. 3.ed. Lisboa: Caminho, 1992.
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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

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GARCÍA, Flavio. Casos do Beco das Sardinheiras, de Mário de Carvalho: paradigma do macro-gênero do insólito. In:revista O Marrare, v. 8, 2007. Disponível em: http://www.omarrare.uerj.br/numero8/pdfs/flavio.pdf. Acesso em: 18 jun. 2020.
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