INFERNAL DESIRE MACHINES OF DR. HOFFMAN (THE), literatura – Angela Carter

Emannuel Gonçalves Gomes

The Infernal Desire Machines of Doctor Hoffman (1972), publicado nos Estados Unidos como The War of Dreams, é o sexto romance da escritora britânica Angela Carter. Para Rapucci (2017, p. 108), o romance é uma denúncia por Carter dos abusos sofridos pelas mulheres, feito em uma chave que parece ser aquela pela qual a autora compreendia o gótico, a do choque. Para a crítica, essa seria apenas a primeira metade. de uma dupla de romances especulativos, sendo que The Passion of New Eve (1982[1977]), o romance seguinte de Carter, buscaria “compensar as degradações sofridas pelas mulheres” (RAPUCCI, 2017, p. 108) em Desire Machines.

De modo semelhante, também Dimovitz (2016) vê Desire Machines como uma primeira interação de uma série mais longa projetada por Carter. Tomando por base as intenções da autora sobre aquilo que deveria formar a trilogia The Manifesto for Year One, Dimovitz argumenta “que The Passion of New Eve funciona, estruturalmente, como a antítese para a tese de The Infernal Desire Machines of Doctor Hoffman, que Carter busca sintetizar em Nights at the Circus”.

Profundamente intertextual, o romance de Carter estabelece diálogos com o gótico, a ficção-científica, o realismo mágico, os contos de fada e o surrealismo, a partir de uma estrutura narrativa picaresca, com um protagonista viajante que atravessa barreiras sociais e geográficas.

Situado em um país da América do Sul que nunca é nomeado ao longo da trama, Desire Machines conta com uma narrativa de enquadramento em um presente narrativo no qual o protagonista-narrador, Desiderio, filho de prostituta e de ascendência indígena, relembra os eventos que fizeram com que mudasse sua posição naquela sociedade, partindo de sua condição como outsider para a posição de herói nacional. História essa que remonta à sua juventude, durante um conflito entre duas poderosas figuras patriarcais que assolou seu país. De um lado estava o titular Doutor Hoffman, cientista que inventara mecanismos que podiam “libertar o inconsciente” (CARTER, 1994, p. 208) e referência ao autor germânico E.T.A. Hoffmann. As manifestações oriundas desse processo distorciam as ideias convencionais do que poderia acontecer ou existir. Os relógios não mais marcam o tempo, as ruas se transfiguram em versões passadas ou futuras de sua história, a catedral se desfaz em fogos de artifício e todo o público da ópera A Flauta Mágica de Mozart se transforma em pavões. O Ministro não é apenas o antagonista do Doctor Hoffman, mas se coloca como seu oposto em todos os sentidos, aderindo à lógica, ao pensamento sistemático e à ordem da mesma forma que seu rival torna manifestos os sonhos, as fantasias e os desejos. Desiderio declara que o embate entre os dois é aquele “entre o enciclopedista e o poeta” (p. 24).

Apesar de resistir frente às criações do Doctor Hoffman, Desiderio é acometido por um sonho recorrente – e a fronteira entre sonho e vigila em tal contexto é, no mínimo, incerta – no qual vislumbra uma mulher translúcida com coração flamejante. É a primeira de muitas formas nas quais, Albertina, a filha do Doctor Hoffman, vai aparecer para o protagonista. Outra dessas formas é a de embaixador, que vem para discutir com o Ministro da Determinação o impasse entre ele e o Doutor. Após essa visita, o Ministro designa Desiderio para a missão de encontrar e assassinar Hoffman. O subordinado aceita, embora movido antes pelo desejo de reencontrar Albertina, o objeto de seus desejos.

Inicia-se assim a jornada de peripécias de Desiderio, que, em capítulos de estrutura episódica, vai transcorrer o tempo e o espaço em busca de Hoffman e sua filha, ao longo desse percurso encontrando personagens de diversas ascendências e posições sociais, assim como pertencentes a diversos níveis de realidade: cada um dos cenários por onde passa mescla de forma distinta as condições que estabelecem a dicotomia primeira do romance, aquela entre a realidade e a fantasia. Desiderio consegue se adaptar a todas as situações que se encontra não apenas por sua posição pragmática ou por seu intenso desejo de encontrar Albertina, mas antes por seu caráter de outsider. Descendente de índios num país onde isso o releva a uma casta inferior e filho de uma prostituta, o narrador acredita que só lhe foi dada tal missão por ser uma peça sem valor no tabuleiro do Ministro da Determinação, cujo sistema de manutenção da ordem, a Polícia da Determinação, é um grupo militar que une métodos que remetem à Inquisição (como comprovar a realidade através da destruição pelo fogo), mas também às forças paramilitares fascistas, como a SS nazista, cuja descrição de seus uniformes e intransigência remetem diretamente.

A primeira parada na busca de Desiderio é numa cidade próxima, onde se estabelecera um gabinete de curiosidades que, segundo o Ministro, guardava relação com Hoffman. Enquanto investiga, Desiderio é recebido pela filha do prefeito, Mary Anne. Numa mansão coberta de hera, a jovem é guardada de perto por uma governanta. Esse cenário, unido ao fato de ser Mary Anne sonâmbula, e estabelecer relações sexuais com Desiderio nesse estado, cria uma relação de intertextualidade com o conto de fadas da Bela Adormecida (MIKKONEN, 1998).

No dia seguinte, Desiderio encontra o gabinete de curiosidades, comandado por um cego, antigo professor de Hoffman. As peças no seu peepshow não apenas revelam elementos importantes da teoria por trás da investida de Hoffman contra a realidade, mas também encapsulam alguns dos grandes temas do romance, como a busca de Desiderio por Albertina, a natureza da relação entre os dois, o questionamento da conexão entre visualidade e realidade e alegoria maniqueísta do embate entre realidade e fantasia que é subvertida por Carter. Após esse momento de revelação, que acaba por confundi-lo ainda mais, Desiderio descobre o corpo de Mary Anne, e é acusado de sua morte pela Polícia da Determinação, passando assim a experimentar a violência do lado que, a princípio, seria o seu.

O protagonista, no entanto, consegue escapar e acaba por se refugiar com uma tribo indígena, o povo do rio, que tem uma comunidade nômade na qual as mulheres compartilham o protagonismo. Dentro desse novo contexto, Desiderio se reaproxima de sua ancestralidade e acaba por se integrar à sociedade de forma mais eficiente do que em sua vida anterior, sendo adotado por uma família e sendo prometido em casamento. Ao descobrir, no entanto, que seria canibalizado para que a comunidade absorvesse seu conhecimento de leitura e cálculos, Desiderio novamente foge.

Dessa vez, seu refúgio é uma trupe circense. Dentre os integrantes desse grupo estão o antigo professor de Hoffman, um homem-crocodilo e um grupo de acrobatas. São esses últimos que, ao estuprarem Desiderio, fazem com que ele se isole da sociedade e, por isso, escape incólume de uma tragédia natural que atinge a trupe, matando todos seus integrantes e destruindo os itens que o professor de Hoffman mantinha para transmitir e controlar as criações do Doutor.

A partir de tal ponto a jornada de Desiderio passa a assumir tons ainda mais abstratos. Ao deixar seu novo refúgio, o protagonista passa a vagar numa paisagem desolada, acabando por se deparar com uma igreja gótica, onde encontra o Conde e seu serviçal Lafleur. O aristocrata lituano é uma das figuras-chave do romance. Descrito com características vampíricas e com uma retórica da onipotência dos desejos, Carter estabelece na personagem um diálogo direto com o Marquês de Sade. O Conde foge de seu duplo, um cafetão negro, e em sua rota de fuga molda o mundo ao seu redor de acordo com seus desejos. É como manifestação dele que surge ante o grupo de viajantes o prostíbulo chamado “Casa do Anonimato”, onde o Conde materializa seus desejos objetificando mulheres, representadas por sua vez como seres híbridos entre humanos, vegetais e animais, ao lado de autômatos.

Liderados pelo Conde, os personagens partem então numa jornada naval, onde são abordados por piratas e em seguida naufragam, sendo levados pela maré até os domínios de uma tribo africana. O líder dessa tribo se revela como a manifestação do duplo do Conde, cujos desejos persecutórios acabam por concretizar sua morte, canibalisticamente. Nas mãos dos seus captores, Lafleur revela sua real identidade, Albertina, que espionava o Conde devido a sua capacidade de causar distorções nas manifestações criadas por Hoffman.

Desiderio e Albertina conseguem escapar da tribo africana apenas para entrarem naquilo que a filha do Doutor chama de “Tempo Nebuloso”, um estado de completo descontrole das criações de seu pai, causada pela destruição do gabinete de curiosidades. Nesse estado das coisas, os desejos resultariam em alterações da realidade em sua forma mais caótica, como a comunidade de centauros que passa a ser o novo cativeiro das personagens. Os centauros se comunicam através de uma linguagem sem palavras, puramente rítmica, tatuam seus corpos em louvor a um deus-cavalo e subjugam as mulheres. Ao ser capturada, Albertina é ritualmente estuprada, de forma que reflete o que foi feito a Desiderio pelos acrobatas. Após um período de recuperação, no entanto, é o desejo de Albertina que materializa as condições para que consigam uma última fuga, desta vez para o castelo de Hoffman.

Finalmente encontrando o cientista que alterara a realidade de seu mundo, Desiderio se depara com um Doutor que se comunica e se relaciona com o cadáver de sua esposa como se ela ainda estivesse viva, mas não deixa de ser uma figura prosaica, distante do poeta que ele havia inicialmente imaginado. Concretiza-se assim a realização de que a alternativa oferecida pelo Doutor não é de fato uma libertação (da imaginação, da matéria e, principalmente, do desejo) como Albertina, disfarçada de embaixador, havia inicialmente reivindicado, mas antes uma nova forma de controle. Ao ponto de, para poder atingir os níveis de poder que deseja, Hoffman planejar se utilizar da energia erótica existente entre Albertina e Desiderio. Os dois seriam presos numa jaula, eternamente entrelaçados, numa paródia de um mecanismo de movimento eterno, e através do seu desejo o Doutor ganharia finalmente o domínio sobre a realidade.

Rejeitando essa possibilidade, Desiderio mata não apenas Hoffman, mas também Albertina, pondo fim à guerrilha contra a realidade, mas também fazendo com que seu desejo permaneça para sempre não consumado, alimentando os sentimentos por Albertina que engendram a própria escritura de suas memórias, anos mais tarde.

A presença de símbolos e convenções góticas em Desire Machines não chega a ser paródica, mas sempre surge na narrativa como metacomentário. Os elementos góticos do romance se voltam para as próprias expectativas que, na tradição desse tipo de romance, tendem a criar. A narrativa, portanto, reorganiza as expectativas e imagens do gótico, seja na figura vampírica do Conde ou na crítica que faz à simbologia da heroína ingênua, de modo a criar uma configuração própria desses elementos, apropriando-se da riqueza da tradição gótica, mas explorando novas leituras dentro de suas possibilidades.

Se a retomada do gótico pode ser vista como um olhar retrospectivo dentro do contexto do romance, sua abordagem da ficção-científica teria características que prefigurariam certos desdobramentos que o gênero apresentaria em sua história recente. Desire Machines difere de uma parcela considerável da ficção-científica que lhe é contemporânea por seu enfoque nas ciências humanas em um período no qual preponderava o recurso a outros ramos do conhecimento, uma imagem que se atrela ao gênero mesmo nos tempos atuais. Se, particularmente entre as autoras alinhadas com o movimento feminista, a tendência no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 era a representação de utopias, apenas nos anos 1980 as distopias vistas por tal ótica viriam a ganhar maior impulso editorial.


REFERÊNCIAS

CARTER, Angela. The Passion of New Eve. London: Virago, 1982.
CARTER, Angela. As Infernais Máquinas de Desejo do Dr. Hoffman. Tradução de Afonso Felix de Souza. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
CARTER, Angela. The Infernal Desire Machines of Doctor Hoffman. New York: Penguin, 1994.
CARTER, Angela. Nights at the Circus. London: Vintage, 2006.
DIMOVITZ, Scott A. Angela Carter: Surrealist, Psychologist, Moral Pornographer. London: Routledge, 2016. (e-book).
MIKKONEN, Kai. The Hoffman(n) Effect: Fairy Tales in Angela Carter’s The Infernal Desire Machines of Doctor Hoffman. Marvels & Tales 12.1, 1998.
RAPUCCI, Cleide A. Ficção especulativa e feminismo – o que querem essas mulheres? In: ESTEVES, Antonio R. & RAPUCCI, Cleide A. (Orgs.). Vertentes do insólito e do fantástico: leituras. Rio de Janeiro: Dialogarts, p. 93-110, 2017.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

BONCA, Cornel. In Despair of the Old Adams: Angela Carter’s ‘The Infernal Desire Machines of Dr. Hoffman.’ The Review of Contemporary Fiction, 1994. Disponível em: https://www.thefreelibrary.com/In+despair+of+the+old+Adams%3A+Angela+Carter’s+’The+Infernal+Desire…-a015906143.
CARTER, Angela. Notes on the Gothic Mode. Iowa Review, v. 6, n. 3, 1975. Disponível em: https://pubs.lib.uiowa.edu/iowareview/article/20385/galley/128784/view/.
GORDON, Edmund. The Invention of Angela Carter. London: Chatto & Windus, 2016.