FANTASMA DA ÓPERA (O), cinema – Joel Schumacher

José Duarte

Adaptado do célebre musical de Andrew Lloyd Webber, O Fantasma da Ópera (1986), que, por sua vez, é baseado no romance O Fantasma da Ópera, de Gaston Leroux (1910), o filme de Joel Schumacher (2004) destaca-se pelo modo como quer tematicamente, quer visualmente se inscreve no insólito ficcional, tal como outras obras do realizador, conforme acontece com Os Rapazes da Noite (1987) ou Batman para Sempre (1995).

O filme de Schumacher, por um lado, obedece à influência da ficção gótica evidente no romance de Leroux que Jerrold Hogle encara como uma obra que “satisfaz até as mais rigorosas definições do drama e ficção ‘Góticas’” (2002, p. 29, tradução nossa). Como desenvolve ainda o mesmo autor, O Fantasma da Ópera está organizado em função de um espaço fechado que encapsula medos, segredos do passado e um temor generalizado de tudo aquilo que o subterrâneo contém, em particular por este representar a desordem (sobrenatural) perante a ordem (natural) das coisas.

Quer no romance, que se alinha com outras obras como Frankenstein (1818) ou Drácula (1897), quer no filme, essa desordem é manifestada pela presença de Erik, o Fantasma da Ópera. A sua “existência fantomal” (GUERREIRO, 2021, p. 12), “anuncia-se com um traço do passado que, no entanto, se instala problematicamente no presente” (BÉRTOLO, 2020, p. 17), representando uma ameaça que necessita ser eliminada.

Note-se, no entanto, que a definição da personagem principal enquanto fantasma pode ser problemática e no filme isso é evidente. Se, por um lado, o fantasma se caracteriza pela ausência de corpo, por outro, ele se manifesta precisamente pela sua presença na Ópera que, apesar de ser “invisível” nos primeiros trinta minutos do filme, se torna visível (corpóreo) ao longo do restante tempo da obra, em particular quando este se junta a Christine no espectáculo em curso.

Na realidade, essa “existência fantomal” alicerça-se numa condição ambígua, pensando inclusive nas categorias elencadas por Maria João Simões (2018, p. 62), de Erik, Fantasma da Ópera, cuja movimentação no espaço da ópera anuncia a permeabilidade de fronteiras que o filme (e consequentemente a obra) exploram: entre o superhumano e o sobrehumano; o humano e o monstro; o visível e o invisível; a vida e a morte ou entre o eu e o “outro” marginal.

A existência do Fantasma da Ópera está igualmente associada à dupla natureza da personagem principal, aliás sublinhada pela utilização da máscara que cobre a metade disforme da face, e enquanto monstro/humano. E é aqui que o grotesco tem um papel central, uma vez que sublinha a dimensão monstruosa, isto é, fantasmagórica de Erik, em que, por detrás da deformação grotesca, como explicita Maria Cristina Batalha, “insinua-se a presença de um impensável” (2008, p. 187) e, consequentemente, do “inédito”, de revelação e não revelação.

Contribui para esta ideia em particular o próprio espaço da Ópera, também ele marcado por uma dupla natureza: a ópera como o local onde, à superfície, se define pela extravagância, beleza, elegância e classe, mas que, quando justaposto com o espaço misterioso localizado em baixo, isto é, o local ocupado pelo fantasma, se torna horrífico. Consequentemente, tal como o próprio fantasma da ópera, a Ópera está marcada pela ambiguidade, incerteza, suspense e terror (embora, note-se, esta talvez seja a única adaptação fílmica que não é classificada como cinema de horror).

Basta que se pense na estratégia narrativa e visual de Joel Schumacher em cenas como o início do filme, com o espaço da Ópera em ruínas e que gradualmente se transfigura, ganhando vida numa visão nostálgica e sumptuosa ou, nos momentos em que o fantasma é apresentado no espaço subterrâneo, este se transforma num labirinto – com canais e passagens secretas –, um traço distintivo que sublinha a sua natureza claustrofóbica e tortuosa. A presença de espelhos, por sua vez, embora mais ténue do que no romance de Leroux, acentua da mesma forma o sentido da Ópera como um espaço de construção e reconstrução identitária, mas também enquanto local de ilusões, o que aponta para o modo como o fantasma é apresentado cinematograficamente.

A sua inquietante natureza grotesca é simultaneamente alvo de aversão e fascínio – a máscara ou a sua ausência provocam estas reacções – oscilando entre o monstro e humano. Tendo em conta este aspecto, essa monstruosidade no Fantasma da Ópera “pertence a uma alteridade que rejeita a ordem estabelecida” (BATALHA, 2008, p. 190) e funciona como figura de disrupção. A sua monstruosidade, no entanto, resulta igualmente da “ordem real da qual ele é um fruto” (BATALHA, 2008, p. 190). Forçado a esconder-se depois de ter assassinado o homem que o mantinha como prisioneiro de um “circo de horrores”, onde a sua disformidade era atracção, Erik vive atormentado na “prisão” subterrânea esquecido pelo resto do mundo, daí também a sua condição de fantasma. As falhas de Erik resultam, portanto, da sua condição disforme que, no fundo, afecta a forma como lida com o mundo e vice-versa.

Finalmente, é importante sublinhar que, no filme de Schumacher (talvez mais do que nas anteriores adaptações), a dimensão humana de Erik é exaltada por via da sua genialidade musical e, ao mesmo tempo, pelo sacrífico que faz: perante a impossibilidade de ser amado liberta Christine para que esta seja feliz com Raoul.

Este é um resultado típico das histórias góticas em que o monstro se sacrifica para que a sua amada possa ter uma vida normal, mas é igualmente acção perante o inexplicável. Quando não se o entende, é mais fácil fazê-lo desaparecer. Assim, e não obstante esta romantização da personagem principal, e como adianta ainda Jessica Sternfeld, Erik permanecerá sempre como superhumano (um deus, um fantasma, um génio) ou como sobrehumano (um monstro, um assassino), mas nunca como um humano, como um de nós (2016, p. 805; 811).


REFERÊNCIAS

BATALHA, Maria Cristina. O grotesco entre o informe e o disforme, um possível sentido. Itenerários, Araquara, n. 27, p. 183-192. 2008.
BÉRTOLO, José. Espectros do Cinema: Manoel de Oliveira e João Pedro Rodrigues. Lisboa: Documenta. 2021.
GUERREIRO, Fernando. A Cadeira (do) Fantasma: Cinema Excêntrico. Lisboa: Enfermaria 6. 2021.}HOGLE, Jerrold E. The Undergrounds of the Phantom of the Opera: Sublimation and the Gothic in Leroux’s Novel and its Progeny. New York: Palgrave. 2002.
LEROUX, Gaston. The Phantom of the Opera. New York: Harper. 1987.
SIMÕES, Maria João. Personagem Irreal: Estratégias da Figuração Disforme ou Informe. In: A Personagem nos Mundos Possíveis do Insólito Ficcional. Rio de Janeiro: Dialogarts, p. 53-69. 2018.
STERNFELD, Jessica. ‘Pitiful Creature of Darkness’: The Subhuman and the Superhuman in The Phantom of the Opera. In: The Oxford Handbook of Music and Disability Studies. New York: Oxford University Press, p. 795-814. 2016.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

BLOOM, Clive. Gothic Histories: The Taste for Terror, 1764 to the Present. London: Continuum. 2010.
HALL, Anne C. Phantom Variations: The Adaptations of Gaston Leroux’s Phantom of the Opera, 1925 to the Present. Jefferson, NC: McFarland. 2009.
REYES, Xavier Aldana. Gothic Cinema. London and New York: Routledge. 2020.