FRANKENSTEIN, literatura – Mary Shelley

Jaqueline Bohn Donada

A trajetória de Frankenstein, tanto no meio acadêmico quanto na cultura popular, é das mais notáveis na história da literatura inglesa. Escrito entre 1816 e 1817 e publicado em 1818, o primeiro romance de Mary Shelley testemunhou o surgimento e o desenvolvimento de fenômenos artísticos e históricos que estão no centro da vida cultural e social contemporânea, como a ascensão do romance enquanto gênero literário, a revolução científica e industrial, a consolidação de inúmeras teorias críticas (teoria literária, psicanálise e marxismo, por exemplo) ao longo do século XIX e a explosão na produção da ficção hoje chamada de gótica, de distópica e de ficção científica.A gênese de Frankenstein, conforme contada pela própria Mary Shelley, é o célebre episódio do verão de 1816, que ela passou na Villa Diodati com Shelley, Byron, Polidori e sua meia-irmã Claire. Durante o processo de recepção e canonização de Frankenstein, o episódio adquiriu quase tanta notoriedade quanto o próprio romance, junto do qual vem se tornando um fenômeno midiático, objeto de inúmeras adaptações nos mais diversos produtos culturais, desde a pintura do século XIX até as séries de streaming do século XXI.

A gênese da notoriedade do episódio, por sua vez, está em um texto que a própria Mary Shelley escreveu em 1831 para introduzir a terceira edição do romance. Foi a partir desta introdução que ficaram famosos diversos temas cujo entendimento é hoje considerado essencial para uma leitura contextualizada de Frankenstein, como as leituras de histórias de fantasmas traduzidas do alemão que o grupo fez nas noites de chuva, as longas discussões (das quais Mary Shelley diz que costumava participar como ouvinte) sobre filosofia e sobre os desenvolvimentos científicos e tecnológicos da época (principalmente o galvanismo) e o sonho ou visão que teria sugerido à autora o tema do cientista e sua criatura. É na descrição desse sonho que aparece uma das imagens preferidas dos diretores de cinema fascinados por Frankenstein: o poderoso mecanismo com o qual o cientista dá vida à criatura não aparece no texto do romance.

No entanto, seria ingênuo tomar a Introdução como uma apreciação crítica e imparcial das origens do primeiro romance de Mary Shelley. Ao escrevê-la, a autora não abriu mão de sua inventividade romântica. Além disso, a crítica posterior esmiuçou o romance sobre as mais variadas perspectivas e identificou toda uma gama de temas e ideias que ali se entrecruzam. São temas e ideias advindos do contexto histórico, literário e filosófico do início do século XIX, da vida de Mary Shelley, das viagens que fez logo antes de iniciar a escrita do livro (pouco se fala sobre a importância de Mary Shelley como autora de literatura de viagem) e das inúmeras leituras que já havia realizado aos 18 anos de idade. O tratamento detalhado das possíveis fontes de Mary Shelley para a escrita de seu primeiro romance não cabe aqui. Cabe, sim, uma brevíssima sistematização dessas em seis principais referências essenciais à compreensão do processo de composição da obra:

1) a literatura – Mary Shelley encontra inspiração no Prometeu Acorrentado de Ésquilo, nas Metamorfoses de Ovídio (poucos pesquisadores lembram de mencionar que Mary Shelley lia grego e latim), em contos populares de fantasmas e de folclore, no Paraíso Perdido de John Milton, nos Sofrimentos do Jovem Werther de Goethe, no Caleb Williams de William Godwin, na poesia dos seus contemporâneos românticos e nos romances góticos do século XVIII;

2) a história – tem papel relevante também as Vidas Paralelas de Plutarco, a recente Revolução Francesa e toda a discussão política e filosófica em torno dela que acontecia na infância e na adolescência da autora;

3) a filosofia – muito se menciona a importância do pensamento de Rousseau para Frankenstein, mas é importante também lembrar da presença de ideias de John Locke e da Justiça Política de William Godwin, em diversas passagens do enredo;

4) a mitologia – está presente de forma clara na representação de um Prometeu moderno, mas aparece também no tratamento de um dos temas mais relevantes de diversas mitologias: o surgimento da vida;

5) a biografia – experiências pessoais de Mary Shelley também ajudam a dar forma à sua narrativa, principalmente suas experiências de perda de pessoas amadas, como a de sua mãe e a da filha que perdeu em 1815;

6) a ciência – Frankenstein foi escrito, “em pleno vigor da revolução industrial” (MORETTI, 2007, p. 105). Dramatizam-se na narrativa tanto o fascínio quanto os anseios gerados pelos novos desenvolvimentos tecnológicos e científicos possibilitados pela revolução industrial.

Para um aprofundamento sobre a questão das origens e das principais fontes que resultaram no texto publicado em 1818, dois estudos são seminais: In Search of Frankenstein, de Radu Florescu (1999 – primeira publicação em 1975) e Frankenstein, Mito e Filosofia, de Jean-Jacques Lecercle (1991 – primeira publicação em 1988). Mais recentemente, textos de introdução a novas edições do romance também têm contribuído de forma significativa para esse o entendimento das tão buscadas fontes de Mary Shelley. Destaco a introdução de Hindle (2003) e a de Guston, Finn e Robert (2017), que tratam de praticamente todos os pontos elencados acima.

Mas a fortuna crítica de Frankenstein, neste início de século XXI, chega perto de (se é que não consegue) exceder a capacidade humana de leitura e de atualização. Para dar forma coerente a este verbete, as reflexões apresentar-se-ão em três seções que procuram tocar em questões fundamentais sobre Frankenstein e sua crítica nos três séculos que transcorrem desde sua primeira publicação em 1818.

Frankenstein no contexto do século XIX

À época de sua publicação, Frankenstein foi recebido com uma enxurrada de críticas negativas e sua reputação de obra de mau gosto permaneceu inalterada no meio acadêmico até meados da década de 1970 quando foi resgatado de seu ostracismo pela crítica feminista.

Schoene-Harwood cita diversas resenhas escritas após a publicação anônima do livro. São inúmeros textos que salientam a imoralidade da história, seu suposto sensacionalismo e sua semelhança com obras de igual reputação, como os romances góticos do século XVIII. Apesar do fracasso de crítica, Frankenstein foi um sucesso quase imediato de público, fato que se atesta pelo comentário de Thomas Peacock em carta para Percy Shelley datada de agosto de 1818. Ao relatar como havia sido inundado por “uma multidão de perguntas sobre Frankenstein e seu autor”, ele constata que o livro “parece ser universalmente lido e conhecido” (PEACOCK apud SEYMOUR, 2000, p. 197, tradução minha). As opiniões divergentes expressas nessas primeiras resenhas nos dão testemunho de uma característica marcante de Frankenstein: a sua ambivalência e seu potencial para as mais variadas interpretações. Repúdio e fascínio são palavras que podem resumir o caráter da recepção do livro ao longo do século XIX.

A data de sua primeira publicação é 01 de janeiro de 1818. É importante ter em mente algumas outras datas para pensar nesse contexto histórico-literário: na década de 1780, Luigi Galvani realizava vários de seus experimentos sobre eletricidade; as Baladas Líricas, de Wordsworth e Coleridge, haviam sido publicadas em 1798; a Revolução Francesa havia transcorrido há menos de vinte anos (entre maio de 1789 e novembro de 1799) e permanecia sendo uma ferida aberta na Europa; entre 1764 e 1798, quatro dos mais célebres romances góticos da época haviam sido publicados (The Castle of Otranto, The Mysteries of Udolpho, The Monk e Wieland) e em 1812, Lord Byron havia publicado o seu poema A Peregrinação de Childe Harold. Esses são apenas alguns dos acontecimentos relevantes para a escrita de Frankenstein.

Por ter sido publicado anonimamente, mas com um prefácio escrito por Percy Shelley e uma dedicatória para William Godwin, muitos assumiram que Shelley era o autor do livro. O engano só foi desfeito (e ainda assim não completamente) na ocasião da segunda edição do livro em 1823, quando a verdadeira autoria foi revelada. No entanto, a essas alturas, Frankenstein já havia sido associado aos Jacobinos Ingleses, um grupo de pensadores revolucionários aliados aos ideais da Revolução Francesa. Um dos mais conhecidos e polêmicos membros do grupo era, precisamente, o pai de Mary Shelley. Em função dessa associação, logo surgiram interpretações do romance enquanto alegoria da Revolução Francesa. O ímpeto destrutivo da Criatura foi entendido como uma metáfora do chamado Reinado do Terror e a simpatia com que o monstro é descrito na obra foi lida como um elogio à violência dos revoltosos. No mesmo período, Frankenstein também ultrajou religiosos das mais diversas correntes do cristianismo ao retratar, na mesma figura, um cientista que usurpa o poder divino da criação e um profanador de cadáveres. A edição de 1818 trazia na folha de rosto uma epígrafe retirada do Paraíso Perdido, de John Milton, que sugere uma identificação de Victor com Deus e da Criatura com Adão. Como se não bastasse, o livro também funde Deus (em função da epígrafe) e Prometeu (em função do subtítulo), um personagem pagão, na mesma imagem. Acrescente-se a tudo isso que, no texto de 1818, Victor e Elizabeth eram primos. Ou seja, pairava sobre a sua união um ar incestuoso. Naturalmente, todas essas ideias foram consideradas ofensivas. Nem religiosos nem conservadores se detiveram na complexidade simbólica dos personagens. Não passou pela sua apreciação que algo da imagem de um Adão revoltoso e questionador aparece tanto em Victor, que desobedece a seu criador ao buscar compreender o segredo da vida e da morte, quanto na Criatura, que questiona diretamente seu Criador. O sutil jogo de correspondências e espelhamentos que se dá entre Walton, Victor e a Criatura ficou ofuscado por aspectos mais superficiais do enredo, assim como ficou ofuscada a relação da obra com a poesia romântica.

Muito se falou, na crítica produzida em 1818, do quão imoral era a obra. A violação de túmulos, a criação artificial da vida, o assassinato de uma criança, um incesto (ainda que apenas sugerido), a violência e a desordem social, moral e simbólica representada pela criatura acabaram por ofuscar as reflexões filosóficas propostas pelo enredo, o diálogo intenso com a poesia contemporânea e a convergência de tradições literárias que aparece em Frankenstein. Passo a um breve comentário sobre cada um desses três pontos.

Já é lugar comum observar como Frankenstein dramatiza conceitos filosóficos como a ideia do bom selvagem, de Rousseau ou a da tábula rasa, de John Locke. O assunto já foi suficientemente detalhado de forma a não ser necessário pormenorizá-lo neste pequeno espaço. Para um aprofundamento do tema, o leitor pode recorrer a Pollin (1965), Lecercle (1991), a Hindle (2003), a Hogsette (2011) e a Boisvert (2018). O que considero pertinente colocar é que as recentes referências à Frankenstein por ocasião de inovações científicas, principalmente no campo da engenharia genética (MELLOR, 2020) e da biologia (HAYDON, 2018) atestam o contínuo valor filosófico da obra. Como já argumentei em outro texto (DONADA, 2009), Frankenstein é um dos poucos romances escritos na Inglaterra durante o Romantismo que, de fato, traduz muitos dos princípios estéticos e filosóficos da poesia romântica para a prosa. Uma pesquisa por compêndios e histórias da literatura inglesa mostra que Mary Shelley é pouco lembrada entre os principais romancistas românticos. Walter Scott e Jane Austen frequentemente aparecem listados como tal (DONADA, 2009, p. 41). No entanto, seus romances não dialogam de forma tão intensa com a poesia do período quanto o faz Frankenstein. Já seria bastante observar que o texto cita diretamente trechos de três poemas: A Rima do Velho Marinheiro, de Coleridge, no capítulo 5 do volume I; Mutability, de Percy Shelley, no capítulo 2 do volume II e Tintern Abbey, de Wordsworth, no capítulo 1 do volume III. Mas também considero relevante observar que cada um desses poemas contribui para a criação em prosa de uma atmosfera ou sentimento comum na poesia da época. Tintern Abbey descreve o arrebatamento do eu-lírico frente às paisagens que contempla e espelha o arrebatamento de Victor e Clerval em sua viagem pelo rio Reno. Mutability aparece quando Victor visita a vila de Chamounix e as paisagens lhe sugerem reflexões sobre a transitoriedade dos sentimentos e pensamentos humanos. “Somos movidos por todo vento que sopra” (SHELLEY, 2019, p. 102), diz Vitor linhas antes de o poema de Shelley traduzir em linguagem poética o que o protagonista vinha expressando em prosa. O fragmento da Rima é citado por Victor na manhã depois da criação, quando, tendo fugido horrorizado de sua criatura e passado a noite no pátio da igreja de Ingolstadt, Victor anda sem rumo pelas ruas da cidade, guiado apenas pelo profundo medo de se deparar com a sua criatura. Os parágrafos contidos entre o momento da criação e a citação do poema de Coleridge são o centro simbólico e imaginativo do texto. É este o momento em que o terror gótico se manifesta de forma mais clara. Paira sobre essa passagem um medo sugestivo de algo sobrenatural que aniquila o teor científico cuidadosamente construído até então. A Rima não contribui apenas para a representação do medo e da ambientação gótica (ainda que não tenha uma arquitetura particularmente gótica, a igreja de Ingolstadt é suficientemente semelhante aos castelos góticos dos romances do século anterior), mas também para vincular Frankenstein a duas tradições literárias, a do gótico e a da poesia romântica.

Acredito que se vincular ao gótico através da poesia contemporânea e não através dos romances do século XVIII seja uma escolha consciente de Mary Shelley. Antecipando a recepção negativa que seu livro recebeu, a autora procura vincular sua obra literária aceita como respeitável, o que não era o caso dos romances de Walpole, Radcliffe e Monk Lewis. Essa tentativa já havia sido feita no prefácio à primeira edição escrito por Percy Shelley. Ali ele não apenas afirma seguir procedimentos semelhantes aos de Homero, de Shakespeare e de Milton, mas esclarece que não está “meramente tecendo uma série de terrores sobrenaturais” (SHELLEY, 2003, p. 11, tradução minha). Sabe-se que tanto Mary quanto Percy liam admiravam os romances góticos da época, mas também é importante perceber como Frankenstein se diferencia deles, ainda que encontre lá bastante inspiração. Convergem para o primeiro romance de Mary Shelley não apenas o gótico e o romantismo, mas também outras tendências formais e temáticas desenvolvidas pelo romance inglês até então. Aparecem no livro questões de ordem moral e um interesse, esse sim novo, em ciência e tecnologia. Escrito quando o romance era ainda muito jovem enquanto gênero, Frankenstein também se vale de certas formas convencionais disponíveis, como a narrativa epistolar e a representação realista que aparece, por exemplo, nos capítulos que narram a infância de Victor. Ao estruturar seu próprio romance pegando de empréstimo aquilo que lhe interessava dentro das possibilidades do gênero, Mary Shelley também cria tendências, como a estrutura narrativa em camadas, que passou a figurar com frequência em romances de viés gótico ao longo do século XIX, como se pode verificar, por exemplo, em O Morro dos Ventos Uivantes (1847) e A Volta do Parafuso (1898).

Ao incorporar convenções formais já desenvolvidas pelo romance e criar possibilidades formais, Frankenstein faz um movimento que se perceberá no romance inglês durante todo o século XIX. Em primeiro lugar, Frankenstein inaugura uma nova fase do romance gótico: “Em 1818, Shelley está se afastando dos domínios do gótico tradicional e se aproximando de algo novo, que é o começo da ficção científica gótica, um subgênero do gótico, reconhecível por seu particular interesse na ciência, na indústria e na tecnologia dentro de uma estrutura gótica” (MACARTHUR, 2015, p. 2, tradução nossa).

Alguns críticos observam que Frankenstein não é a primeira história de ficção científica, mas ele é, isso sim, a porta de entrada deste tipo de ficção no âmbito do romance moderno, especialmente em língua inglesa. São, portanto, inúmeras tendências que se encontram e se desenvolvem por inúmeras décadas. Observe-se, por exemplo, como em Drácula (1897), a estrutura narrativa em camadas, o interesse em ciência e tecnologia e a representação do monstro como outro (simbolizando um medo que é tanto individual quanto coletivo) aparecem retrabalhados. Especificamente sobre isso, pode-se ver o texto de Scarborough (2008). Frankenstein também dialoga tanto com o romantismo, como argumentei acima, quanto com o realismo, ainda que de forma incipiente. Sobre questões pertinentes à forma do romance e a características realistas em Frankenstein, é seminal o trabalho de Levine, que considera que o livro pode ser lido como “representativo de certas atitudes e técnicas que se tornam centrais à própria tradição realista” (1973, p. 14, tradução minha). Entrecruzam-se, assim, o gótico, a ficção científica, o romantismo e o realismo em uma obra que ainda está por ter seu papel de centralidade na ficção inglesa do século XIX mais amplamente reconhecido.

Frankenstein no século XX

O século XX testemunha a transformação de Frankenstein em um dos produtos artísticos mais representativos do imaginário cultural do ocidente (DONADA, 2009 e 2018). Ao longo do século, se consolidam a sua trajetória excepcional no cinema e a sua entrada definitiva no meio acadêmico. Também se confirma o seu potencial simbólico através das múltiplas perspectivas de interpretação que surgem não apenas no campo dos estudos literários, mas também em áreas como a medicina e a biologia. Veja-se, por exemplo, o texto de Shafer (2018) sobre certas intersecções temáticas em Frankenstein.

Foi em 1974, a partir da publicação do ensaio Female Gothic, de Ellen Moers, que Frankenstein passou a encontrar espaço no meio acadêmico. Moers ofereceu uma interpretação inovadora do primeiro romance de Mary Shelley como um mito de nascimento: “Frankenstein parece ser claramente a mitopoiese de uma mulher sobre nascimentos justamente porque a sua ênfase não é naquilo que precede o nascimento nem no nascimento em si, mas naquilo que decorre do nascimento: o trauma do pós-parto” (MOERS, 1982, p. 81, tradução minha). Pela primeira vez, a questão do gênero assumiu papel de centralidade em uma análise crítica do romance. A tendência confirmou-se com a publicação, em 1979, do estudo de Gilbert e Gubar, que interpretam Frankenstein como uma leitura feminina do Paraíso Perdido, de John Milton.

Desde então, com a ascensão da crítica feminista e dos estudos culturais, questões de gênero, maternidade, sexualidade e raça tem pontuado uma parte significativa da fortuna crítica do romance. Desde sua entrada no meio acadêmico, Frankenstein tem sido interpretado a partir de uma multiplicidade de perspectivas críticas, passando por análises pós-estruturalistas, psicanalíticas, marxistas, decoloniais e feministas. Foi objeto tanto dos estudos culturais e de gênero quanto de estudos de intermidialidade, de cognição, de adaptação, de cinema e de teatro, passando por histórias em quadrinhos e pelo campo da fanfiction. Muitos foram os estudos que se valeram de intersecções teóricas como é o caso de Sterrenburg (1982) – política e psicologia –, de Peter Brooks (1982) – linguagem e sociologia –, e de Emily Burkhart (2018) – pós-colonialismo e feminismo.

Ao longo do século, Frankenstein se mostrou inexaurível e ambivalente. Se em 1818 foi interpretado como alegoria radical da Revolução Francesa, em 1982, foi considerado como contendo “uma visão de mundo mais conservadora e pessimista” (STERRENBURG, 1892, p. 143, tradução minha) do que aquela de seus pais. O romance suscitou tantas interpretações diversas que Sterrenburg veio a compreendê-lo como “um romance que é, de muitas formas, uma subversão de toda a ideologia” (ibidem, p. 144, tradução minha).

Frankenstein no século XXI

No século corrente, as interpretações de Frankenstein parecem não reconhecer limites teóricos. Veja-se como exemplos das possibilidades críticas e interpretativas o trabalho de Wang (2021), em que se entrecruzam diversas correntes teóricas.

Já ao fim do século XX, o pesquisador George Levine sintetizou a profícua trajetória crítica do primeiro romance de Mary Shelley ao analisar o seu legado, que considera ambíguo: “Frankenstein tornou-se uma metáfora da nossa própria crise cultural” (1982, p. 3, tradução minha). Ao seu comentário, eu acrescentaria a ideia de que o livro já nasceu como tal justamente por ser uma obra de uma intelectual em árduo processo de compreensão de si e de seu lugar em um mundo que gestava a crise mencionada por Levine. Em diversos aspectos, as crises culturais do início do século XIX, oriundas (ao menos em parte) das transformações sócio-históricas mencionadas no primeiro parágrafo deste texto, estão na gênese de muitas das nossas crises culturais nas primeiras décadas do século XXI.

Seria de se esperar que 200 anos de progresso científico teriam invalidado a obra de uma menina de 19 anos sobre um cientista ambicioso. No entanto, o século XXI testemunha a contínua relevância de Frankenstein. Até mesmo a pandemia de Covid-19 encontrou no livro metáforas adequadas à nova crise, como bem evidencia o estudo de Alliheibi et all, que conclui que “os motivos góticos de Frankenstein são manipulados e reproduzidos no discurso jornalístico sobre a Covid-19 para retratar o caos e a destruição causados pelo vírus/monstro imensamente catastrófico e poderoso que tomou conta do mundo (2021, p. 1129, tradução minha). Além disso, durante a pandemia do novo coronavírus, ainda houve ocasião para que se desse atenção a outra obra de Mary Shelley, The Last Man, publicada originalmente em 1826.

Seja interpretado como metáfora da Revolução Francesa (SCRIBANO, 2015), do proletariado (MORETTI, 2007) ou, mais amplamente, de nossas crises culturais (LEVINE, 1982) ou lido como retrato do cenário pandêmico de 2020-2021, fato é que Frankenstein perdura, ainda que tenha, de certa forma, ofuscado o restante da obra de sua autora. Acredito que essa resistência se deva, entre inúmeros outros fatores, ao fato de Frankenstein dramatizar questões que estão entre as mais complexas da existência humana: a origem e a natureza da vida. A representação, na imagem da Criatura, da angústia do ser humano dividido entre o ímpeto social e a dificuldade de se movimentar dentro do contrato social também são questões que permanecem válidas. Igualmente válidas permanecem sendo as questões éticas, filosóficas e morais que o texto de Shelley aborda, principalmente no que tange às possibilidades técnicas e os limites éticos da ciência e da tecnologia em um contexto capitalista.


REFERÊNCIAS

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