ESQUELETO

Fabianna Simão Bellizzi Carneiro

Em uma acepção arqueológica, o tema do esqueleto humano surge em meados do século XVIII, quando a antropologia física passa a perscrutar questões relacionadas à origem e variabilidade tipológica da espécie humana a partir de seus remanescentes esqueléticos (LESSA, 2011, p. 3). Nesse período, antropólogos europeus começam a desenvolver sistemas de classificação racial através das medições de ossos. Abordagem semelhante incentivou pesquisadores e viajantes naturalistas estrangeiros em terras brasileiras, e aqui podemos destacar o trabalho do pesquisador dinamarquês Peter Lund, que em 1834 achou nas grutas calcárias de Lagoa Santa, Minas Gerais, mais de 30 esqueletos humanos em associação rochosa com ossadas de animais, fazendo-o cotejar uma relação entre o homem e a fauna extinta, o que repercutiu diretamente sobre a questão da antiguidade do homem americano (NEVES & PILÓ, 2008, apud LESSA, 2011, p. 4). Devido a esse incipiente trabalho arqueológico que se expandia ao redor do mundo, técnicas curatoriais protocolares passam a ser pesquisadas e desenvolvidas de forma a garantirem manutenção e acervo do esqueleto, sendo o álcool um dos principais elementos usados para tal por desidratar e separar mais facilmente a musculatura ainda amalgamada ao osso.

Prática similar às técnicas curatoriais científicas fora utilizada por religiosas por volta do século XIII, através do fetichismo das relíquias. Sublinha-se que o período medievo avultou a ideia de que o homem, corpo e alma, pertencia não mais aos deuses da natureza, mas a Deus. A este corolário acrescentou-se a ideia da destruição do corpo carnal como uma espécie de sublimação; algo que elevaria as pessoas a um patamar heroico, afinal aceitar o sofrimento incondicional seria o caminho para a salvação. Daí que o homem medievo viu proliferarem grandes rituais sacrificiais, da flagelação à exaltação de chagas, como prova de uma exacerbada abnegação corporal que o levaria à sublimação. Destaca-se que coube ao cristianismo prover um corpo à figura divina: se Deus viveu e morreu como humano, os homens deveriam sacrificar a carne, através de cruéis rituais, para assim se aproximarem de Deus: “Toda ideologia funerária cristã vai oscilar entre esse corpo de miséria e esse corpo de glória e organizar-se em torno do desenraizamento de um na direção do outro” (GOFF, 2004, apud ROUDINESCO, 2008, p. 22). Portanto, transmutar o corpo putrefato em corpo intacto fascinava cristãos, clérigos e em especial aristocratas e monarcas. O rei, figura mais alta na sociedade aristocrata, somente ascenderia ao corpo de glória se seus restos mortais passassem por um ritual de purificação muito particular: o fetichismo das relíquias. O Rei Luís IX, morto em 1270, teve seu corpo fervido em vinho para que as carnes se desprendessem dos ossos – parte preciosa a ser conservada, que se acreditava possuir poder milagroso. Nesse período, a técnica de embalsamento não era conhecida, o que explica, em parte, o fato de o esqueleto do Rei Luís IX ter sido fracionado ao longo de dois séculos, sendo atribuídos ao seu crânio, dentes e maxilar, poderes milagrosos. Tal prática começa a perder apelo por volta de 1300, quando o papa Bonifácio VIII qualifica tais práticas como bárbaras e pagãs.

Na sua concretização literária, o esqueleto aparece em um ritual muito próximo ao ritual do fetichismo das relíquias na última estrofe do oitavo canto do poema I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias: “Um amigo não tenhas piedoso / Que o teu corpo na terra embalsame, / Pondo em vaso d’argila cuidoso / Arco e flecha e tacape a teus pés! / Sê maldito, e sozinho na terra” (s/d, p. 11). Em algumas tribos brasileiras, os nativos designavam como herói aquele que tivesse, após a morte, seus ossos armazenados em vaso de argila. O corpo era enterrado e diariamente molhado de forma a rapidamente apodrecer e expelir odores. Os odores eram a garantia da putrefação. Nesse estágio, as mulheres retiravam o cadáver do interior da terra e prosseguiam com o ritual de desprendimento da carne e limpeza do esqueleto, que uma vez limpo, teria os ossos desmembrados e armazenados em vasos de argila juntamente com o arco, flecha e tacape (FRAGOSO, 1999, p. 14). Quase um século após a publicação de I-Juca-Pirama, e imbuídos do sentimento do macabro e grotesco que marcou narrativas europeias (que iam na contramão dos preceitos burgueses romanescos) das últimas décadas do século XIX, escritores brasileiros retomam temas ligados ao maquinário gótico como morte, necrofilia, esqueleto e túmulos e os adaptam em narrativas como “A dança dos ossos”, de Bernardo Guimarães (1825-1884); e “A mulher que comeu o amante”, de Bernardo Élis (1915-1997). “A dança dos ossos” traz a história de um “esqueleto dançarino”. Tal fato ocorria por causa de um crime passional: um rapaz, assassinado por conta de ciúmes, fazia fantasmagóricas aparições durante a Lua Cheia – momento em que seus ossos saíam da cova, se juntavam e assustavam pessoas que passavam pelo local:

Por fim de contas, veio vindo lá, de dentro da sepultura, uma caveira branca como papel, e com os olhos de fogo; e dando pulos como sapo, foi-se chegando para o meio da roda. Daí começaram aqueles ossos todos a dançar em roda da caveira, que estava quieta no meio, dando de vez em quando pulos no ar, e caindo no mesmo lugar, enquanto os ossos giravam num corrupio, estalando uns nos outros, como fogo da queimada, quando pega forte num sapezal. (GUIMARÃES, 2011, p. 87)

Na narrativa de Élis, em contrapartida, atesta-se que o destino cruel, sombrio e terrífico reservado à maioria de suas personagens aparece na figura de Januário, que fora assassinado pela esposa, Camélia, e seu amante, Izé. Após o crime, os amantes jogam o copo de Januário no rio, que imediatamente é devorado por piranhas – estas executam o comensalismo com tamanha rapidez, a ponto de deixarem o esqueleto completamente desprendido das carnes: “ […] no fundo do rio, entre os garranchos, estava o esqueleto limpinho, alvo, do Januário. Tão branco que parecia uma chama. As mãos amarradas ainda pareciam pedir perdão a alguém, a Deus talvez. A caveira ria cinicamente, mostrando os dentes sujos de sarro, falhados pela velhice, com um chumaço de barba na ponta do queixo. (ÉLIS, 2005, p. 114).

Presente em narrativas góticas tradicionais, o esqueleto pode simbolizar o singular desejo de se dar voz aos conflitos internos de uma sociedade marcada por fortes mudanças estruturais e muitas vezes dividida entre valores de um humanismo confuso, e valores que marcaram a incipiente sociedade industrial e altamente racional.

REFERÊNCIAS

DIAS, Gonçalves. I-Juca-Pirama, 1969. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000007.pdf. Acesso em 19 maio. 2019.
FRAGOSO, Dina Maria. Cultura e teatralidade em I-Juca-Pirama. Rev. de Letras, v. 1-2, n. 21, p. 10-16, 1999. Disponível em: http://www.revistadeletras.ufc.br/rl21Art02.pdf. Acesso em 19 maio. 2019.
ÉLIS, Bernardo. A mulher que comeu o amante. InErmos e Gerais. São Paulo: Martins Fontes, p. 109-115, 2005.
GUIMARÃES, Bernardo. A dança dos Ossos. In: BATALHA, Maria Cristina (Org). O fantástico brasileiro: contos esquecidos. Rio de Janeiro: Caetés, p. 82-102, 2011.
LESSA, Andreia. Conceitos e métodos em curadoria de coleções osteológicas humanas. Arquivos do Museu Nacional, Rio de Janeiro, v. 68, n. 1-2; 3-1, 2011. Disponível em: http://www.museunacional.ufrj.br/publicacoes/wp-content/arquivos/Arqs%2068(1-2)%20p%203-16%20Lessa.pdf. Acesso em 25 maio. 2019.
ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos. Uma história dos perversos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.