CHARLES NODIER – ficcionista

Maria Cristina Batalha

Charles Nodier (1780-1844) nasce em Besançon, sudeste da França. Começa sua carreira literária tardiamente, em meio às turbulências da Revolução francesa e muito marcado pela influência de Werther, de Goethe, que se coaduna com seu temperamento sonhador de jovem romântico. Faz carreira de bibliotecário e dirige por muito tempo a biblioteca do Arsenal, em Paris, que, por sua iniciativa, abriga o famoso Cenáculo (Cénacle), espécie de salão literário que reúne intelectuais românticos que têm como figura de proa Victor Hugo. Por volta de 1830, graças ao sucesso retumbante de Hugo, muitos de seus pares (os Pequenos Românticos) desertam do Cénacle e preferem reunir-se em outros endereços, mantendo sua condição de antiburgueses e avessos à glória. Neste mesmo ano, por conta do regime da Restauração instalado, Nodier acaba perdendo seu cargo de bibliotecário.

Como crítico literário, Nodier defende o gosto clássico, mas são os romances de proscritos, histórias de marginais e o conto fantástico e “frenético” intitulado Smarra (Smarra significa demônio do pesadelo, uma espécie de vampiro) ou les démons de la nuit, de 1821, que marcam seu começo na literatura. No prefácio ao conto – que o autor apresenta como uma “tradução de Ragusain, nobre de Illyrie, que tomava emprestado o nome de conde Maxime Odin” – Charles Nodier diz ter pressentido a chegada de uma literatura nova e reconhece que a novidade ficava por conta do sonho que ocupa uma grande parte da escritura (NODIER, 1957, p. 107). Contudo, ele também adverte que, “aquele que se resignou a ler Smarra do começo a fim sem perceber que lia um sonho, perdeu o seu tempo” (p. 112), demarcando assim os limites da ficção e impedindo a confusão entre os dois planos. Sem ser “fantástica”, a novela Smarra evoca as perturbações causadas pelos pesadelos e as alucinações da vida noturna antes mesmo de Hoffmann, grande mestre neste tipo de relato. Já em Samarra, as imagens se revestem de uma faixa de indeterminação tal que, aquilo que estaria simplesmente ligado às experiências de um visionário, surge como prova da presença imanente de forças obscuras que intervêm na ordem universal. Porém, nesse conto são as imagens produzidas em sonho que o narrador relata e, como tal, não encerram dúvidas quanto à sua origem.

Charles Nodier lança seu manifesto de 1830 em favor do resgate do maravilhoso na literatura. Decepcionado com o positivismo crescente de seu tempo, a literatura fantástica se apresenta como uma compensação à crise política, filosófica e estética, e como reação ao realismo, como fica evidenciado no ensaio Du fantastique en littérature (1830), de Charles Nodier, que figura como um prefácio a seus Contes fantastiques e se constitui como a primeira tentativa para apresentar uma reflexão coerente sobre o fantástico, gênero que desfruta de grande prestígio à época. Neste ensaio, Nodier deplora a inexpressiva vocação da literatura francesa para a fantasia e a liberdade ilimitada pela qual toda criação deveria se pautar, já que, diz ele, “não é em solo acadêmico e clássico da França de Luís XIII e de Richelieu que essa literatura, que vive de imaginação e de liberdade, poderia aclimatar-se com sucesso” (NODIER, 1957, p. 94). Assim, nesse ensaio, Charles Nodier, reconheceu, naquilo que designou por fantástico, uma reação contra o esgotamento da sociedade e de seus discursos. Em seu percurso histórico do gênero, refere-se ao fantástico – que ele nem sempre distingue do maravilhoso – como aplicável às obras de Homero e às do maravilhoso da Idade Média, rechaçadas, respectivamente, pela era dos filósofos e pela da sabedoria prosaica dos clássicos. O fantástico torna-se então um refúgio contra a desilusão causada pela dura realidade do mundo e o termo “fantástico” abarca todas as áreas da imaginação poética. Aliás, Gérard de Nerval também proclama que “na literatura, nós [escritores] visamos ao fantástico” (NODIER, 1957, p. 64). Ou seja, o epíteto é extensivo a qualquer manifestação da imaginação criadora e libertadora.

Charles Nodier associa a eclosão do fantástico na França à ruptura histórica – época romântica pós-revolucionária que corresponde ao período da Restauração -, com seus reflexos no campo da literatura, que se vê então estreitado pela banalidade dos discursos de especialização, tais como o discurso religioso e o científico, que vêm sustentar o discurso político. Por esta razão, em seu “Préface inutile” (Prefácio inútil), dos Quatre talismans, Nodier declara: “As novelas que conto a mim mesmo antes de contá-las aos outros exercem em meu espírito uma atração que consola, elas desviam meu pensamento dos fatos reais” (NODIER, 1979, p. 719). Para ele, a literatura fantástica surge então como uma compensação para o caos instalado na sociedade e o inverossímil que ela traz à baila expressa a impossibilidade de dizer o exterior desordenado. Por essa razão, diz ele que “não devemos esbravejar contra o romantismo e contra o fantástico” (NODIER, 1957, p. 84-5).

Para Nodier, a imaginação é a fonte das religiões e a fé protege o homem em seus momentos de crise. Não se trata nem de um gosto nem de uma estética, como enfatiza em Du fantastique en littérature, mas de salvação, um bem necessário ao homem e que não lhe pode ser negado, sob pena de deixá-lo mergulhar no abatimento. Com o peso a ele atribuído, o conto de fadas é definido por Nodier como uma  “epopéia em miniatura” (NODIER, 1850, p. 25) e os 41 volumes do Cabinet des fées oferecem ao público burguês o que a Bibliothèque bleue oferece ao gosto mais popular e menos sofisticado.

Entre Cazotte e a introdução de E.T.A. Hoffmann na França, surge então a ficção de Charles Nodier. Sua obra, que embora não se possa chamar de fantástica em termo stricto, envereda pelo terreno do sonho, da fantasia e da loucura: o onírico e a loucura convivem lado a lado com a vigília e a razão, como na Fée aux miettes, por exemplo, onde aparecem, alternadamente, o verso e o seu reverso, ou seja, a mendiga e a fada, o louco e o sábio. Por isso, as últimas palavras que a Fada dirige a Michel, protagonista da Fée aux miettes, de Charles Nodier, são: “Tudo é verdade, tudo é mentira”.

REFERÊNCIAS

NODIER, Charles. Contes fantastiques, 1 e 2. Apresentação de Michel Laclos. Paris: Jean-Jacques Pauvert, 1957.
NODIER, Charles. La Fée aux miettes. Paris: Jean-Jacques Pauvert, 1961.
NODIER, Charles. Contes. Prefácio de Pierre-Georges CASTEX. Paris: Garnier, 1961[1979].