CIBORGUE

Alexander Meireles

Na mitologia grega, atribui-se ora ao deus Hefesto (o Vulcano dos romanos) ora a Dédalo a criação do primeiro ser artificial: o gigante Talos. Talos protegia a ilha de Creta rodeando a cidade e atacando os navios inimigos que ameaçavam o local (BRANDÃO, 1986, p. 175). O gigante de bronze possuía uma artéria interna que percorria todo o seu corpo metálico através da qual fluía o Ichor, o misterioso fluido da vida que lhe concedia vida e que também estava presente no sangue dos deuses gregos. Sendo estruturada como uma criação que possuía elementos orgânicos (Ichor) e não orgânicos (corpo metálico), Talos foi um antepassado de projetos de hoje que buscam mesclar componentes vivos e artificiais e que deram origem no ano de 1960 a palavra “Ciborgue” (“Cybernetic organism”) (CLYNES & KLINE, 1960, p. 27).

O termo surgiu no contexto da disseminação dos estudos ligados a “Cibernética”, derivado da palavra grega kubernites (“timoneiro”, “piloto”, “leme”) e criado pelo cientista Norbert Wiener no livro Cybernetics, or Control and Communication in the Animal and Machine (1948). Referindo-se à ciência da comunicação e controle em seres humanos e máquinas, a cibernética teve seu início por volta da Segunda Grande Guerra a partir da união de diferentes disciplinas. David Rorvik popularizou a palavra “ciborgue” em sua obra não ficcional As Man Becomes Machine (1971), abordando o derretimento do humano e da máquina e o surgimento de uma nova era de evolução. Dentro deste quadro, o mitológico Talos não foi apenas o primeiro ser mecânico que poderia ser chamado de robô, mas também foi o primeiro ciborgue da cultura ocidental, sendo seguido séculos depois por outros representantes dentro da Ficção Científica em diversas revistas pulp até a primeira metade do século vinte e produções para a Televisão, Cinema e História em Quadrinhos. São exemplos destas representações o Exterminador (O exterminador do futuro / 1984), Robocop (Robocop: o policial do futuro / 1987), os Borg (Star Trek: Nova Geração / 1987-1994) e o super-herói Ciborgue da DC Comics.Na Literatura, uma das primeiras representações do ciborgue está no conto satírico “The Man That Was Used Up” (1843), do norte-americano Edgar Allan Poe sobre um herói de guerra composto por várias próteses. A história foi publicada inicialmente na Burton’s Gentleman’s Magazine em agosto de 1839 e posteriormente foi incorporado na coletânea Contos do grotesco e do arabesco (1843). No conto, Poe tece uma crítica tanto aos efeitos da guerra sobre os seres humanos quanto ao avanço da tecnologia que subverte os limites entre o humano e a máquina.

Longe de se constituírem um elemento único, ligado ao tema dos homens artificiais, o autômato, o androide, o ciborgue e o robô possuem especificidades simbólicas e narrativas, ainda que estas possam se cruzar. Em virtude da sua semelhança física e, muitas vezes, comportamental com os seres humanos Autômatos e Androides são comumente utilizados em narrativas em que as fronteiras entre o natural e o artificial são colocados em xeque, a ponto de os próprios seres artificiais desconhecerem sua verdadeira natureza. Esse é o caso, para citar dos exemplos de mídias diferentes, do protagonista do conto “A formiga elétrica” (1969), de Philip K. Dick e os anfitriões da série televisiva Westworld. A prevalência do Autômato/Androide feminino aponta tanto para o desejo masculino de submissão e esvaziamento do ser feminino como instrumento das vontades do homem quanto para a ameaça que a figura da mulher enquanto ser incompreensível e imprevisível exerce sobre a imaginação masculina, como observados nos seres criados em O homem de areia”, A Eva futura e Metropolis.

No caso do robô, a etimologia de seu nome faz com que este personagem seja recorrentemente explorado em obras que remetam a questões de grupos minoritários ou socialmente desprivilegiados. Na adaptação cinematográfica de 2004 da coletânea de contos Eu, Robô (1950), de Isaac Asimov, por exemplo, os robôs são associados a imigrantes latinos e outros marginalizados na América, sendo reservados a estes seres artificiais empregos de menor prestígio social, como empregado doméstico, catador de lixo, cuidador de cachorros e garçom. Por ser o mais alinhado com questões atuais do impacto da tecnologia sobre o ser humano na esfera social e em seu próprio corpo, o ciborgue vem sendo amplamente utilizado, principalmente no subgênero Cyberpunk, para discutir as fronteiras entre o ser humano e a máquina e como as partes se influenciam. Da mesma forma, o ciborgue permite contestar a arbitrariedade da construção de gêneros na sociedade usando a máquina como subversor das fronteiras entre o masculino e o feminino, algo expresso no filme Matrix (1999), onde o protagonista Neo sente o ato da penetração ao ser conectado pela primeira vez, via pino inserido em sua nuca, ao mundo virtual. O ciborgue também foi acolhido por teóricas para debater o lugar social de grupos específicos. Esse é o caso de Donna Haraway com seu ensaio “O manifesto ciborgue” (1985), em que a crítica propõe novos caminhos para o Feminismo além das fronteiras de gênero.

Na proposta de Haraway, a imagem do ciborgue como criatura composta por fusões entre o social e a ficção, entre máquina e organismo, permite ao Feminismo de base socialista, marxista e radical em contemplar as diferenças entre as mulheres.

REFERÊNCIAS

ASIMOV, Isaac, GREENBERG, Martin H., WARRICK, Patricia S. (Ed.). Máquinas que pensam: Obras primas da ficção científica. Porto Alegre: L&PM Editores,1985.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Editora Vozes, 1996.
CLYNES, Manfred E., KLINE, Nathan S. Cyborgs and space. In: ASTRONAUTICS, September, 1960. Disponível em: http://bit.ly/2EgAq4E. Acesso em 18 maio. 2019.
HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz. (Org.). Antropologia do Ciborgue: As vertigens do pós-humano. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica editora. p. 36-118, 2000.
RORVIK, David. As Man Becomes Machine: The Evolution of the Cyborg. London: Souvenir Press, 1973.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

BELL, David. Cyberculture Theorists: Manuel Castells and Donna Haraway. London: Routledge, 2007.
CLUTE, John, LAGFORD, David, NICHOLLS, Peter (Eds.). The Encyclopedia of Science Fiction. Disponível em: http://www.sf-encyclopedia.com/. Acesso em 11 maio. 2019.
PRAZ, Mario. Introduction. In: FAIRCLOUGH, Peter (Ed.). Three Gothic Novels. Baltimore: Penguin Books, 1968.
ROBERTS, Adam. A verdadeira história da ficção científica: Do preconceito à conquista das massas. Tradução de Mário Molina. São Paulo: Seoman, 2018.
WARRICK, Patricia S. The cybernetic imagination in science fiction. Cambridge: The MIT Press, 1980.