ANDRÓIDE

Alexander Meireles

A Europa do século dezoito foi o palco de surgimento da palavra “Androide”, vindo a substituir, ao longo dos séculos seguintes, o uso do termo Autômato para designar seres artificiais orgânicos ou metálicos fabricados para terem o comportamento e a aparência física externa semelhante à dos humanos. Formado pela junção do grego Andro (Homem) e o sufixo oid (tendo a forma ou semelhança de), “Androide” surgiu na Inglaterra na enciclopédia Cyclopædia; or an Universal Dictionary of Arts and Sciences (1728), de Ephraim Chambers (CLUTE & NICHOLLS, 1995, p. 34). Já a estreia na ficção ocorreu na utopia The United Worlds, a Poem, in Fifty Seven books (1834), de Mark Drinkwater (Provável pseudônimo do editor e soldado norte-americano Nathaniel King), nos quais os androides fazem todo o trabalho pesado e possuem o corpo metalizado. Destaque também na literatura para a estreia do androide feminino em A Eva futura (1886), do francês Auguste Villiers de l’Isle-Adam.

Curiosamente, assim como o primeiro autômato da literatura com a Olympia de “O homem de areia” (1817), do alemão E. T. A. Hoffmann, o androide da obra de Auguste Villiers de l’Isle-Adam, alinhado a visão decadentista sobre a mulher, é feminino e se chama Hadaly. Isto quer dizer que, na verdade, ela é uma “Ginoide”, do grego Gyné (Mulher) e o sufixo oid, palavra esta surgida no romance Divine Endurande (1985), da britânica Gwyneyth Jones. Outros termos usados para designar androides femininos, são “Fembot” e “Feminoide”. Todavia, “Androide” é normalmente o termo escolhido para ambos os sexos e começou a ser empregado de forma consistente no campo da Ficção Científica a partir da década de 1940 com o romance The Cometeers (1936), de Jack Williamson (CLUTE & NICHOLLS, 1995, p. 34).

O início do século vinte continuou o protagonismo feminino na representação de seres artificiais na literatura e no cinema. Em 1925, a escritora alemã Thea von Harbou publicou o romance distópico Metropolis, que seria adaptado dois anos depois para o cinema na produção de mesmo nome. Metropolis (1927) trouxe roteiro de Thea von Harbou e a direção de seu marido, o diretor Fritz Lang. O filme apresentou ao público a ginoide Maria, personagem que serviu de base para a criação do androide C-3PO, da saga Star Wars. Nas primeiras décadas do século vinte a crescente desumanização do ser humano frente ao ritmo acelerado da industrialização, que já tinha sido objeto de reflexão em A metamorfose (1915), de Franz Kafka, levou outro escritor tcheco, Karel Tchápek, a publicar em 1920 a obra A fábrica de robôs (1920) (SILVA, 2012). Nesta peça teatral o termo Robô surgiu pela primeira vez a partir da sugestão de Joseph Tchápek, irmão do escritor, para usar a palavra tcheca robota (“escravo”, “servidão”, “trabalho forçado”) para dar nome aos produtos da fábrica R.U.R. (Rossum’s Universal Robots) (JOVANOVIC, 2010, p. 16).

Ironicamente, mesmo aqui na obra que as batizou, as criações mostradas não se encaixam na visão popular de robôs da Ficção Científica como um agrupamento de partes mecânicas e eletrônicas. Sendo produzidos de forma biotecnológica a partir da descoberta de um composto orgânico, os robôs de Tchápek se enquadram melhor na categoria de androides. Outro momento relevante na trajetória destes seres artificiais ocorreu em fins dos anos de 1960 em alinhamento com a efervescência cultural da época. Neste contexto o escritor Philip K. Dick publicou Androides sonham com ovelhas elétricas? (1968), romance Cyberpunk que apresentou o termo pejorativo Andys para se referir aos androides perseguidos pelo caçador de recompensas Rick Deckard. Na adaptação para o cinema em 1982, com o título Blade Runner: o caçador de androides, o diretor Ridley Scott adotou o termo “Replicante” para reiterar a capacidade dos androides em replicar a natureza humana, levando os caçadores a aplicar um teste para identificá-los enquanto seres artificiais. O romance traz temas recorrentes de Philip K. Dick, como o debate sobre os limites entre o real e o virtual, o impacto da tecnologia na relação do ser humano com seu meio, e o questionamento sobre as definições do que é ser humano. Longe de se constituírem um elemento único, ligado ao tema dos homens artificiais, o autômato, o androide, o ciborgue e o robô possuem especificidades simbólicas e narrativas, ainda que estas possam se cruzar. Em virtude da sua semelhança física e, muitas vezes, comportamental com os seres humanos Autômatos e androides são comumente utilizados em narrativas em que as fronteiras entre o natural e o artificial são colocados em xeque, a ponto de os próprios seres artificiais desconhecerem sua verdadeira natureza. Esse é o caso, para citar dos exemplos de mídias diferentes, do protagonista do conto “A formiga elétrica” (1969), de Philip K. Dick e os anfitriões da série televisiva Westworld.

A prevalência do autômato/androide feminino aponta tanto para o desejo masculino de submissão e esvaziamento do ser feminino como instrumento das vontades do homem quanto para a ameaça que a figura da mulher enquanto ser incompreensível e imprevisível exerce sobre a imaginação masculina, como observados nos seres criados em “O homem de areia”, A Eva futura e Metropolis. No caso do robô, a etimologia de seu nome faz com que este personagem seja recorrentemente explorado em obras que remetam a questões de grupos minoritários ou socialmente desprivilegiados. Na adaptação cinematográfica de 2004 da coletânea de contos Eu, Robô (1950), de Isaac Asimov, por exemplo, os robôs são associados a imigrantes latinos e outros marginalizados na América, sendo reservados a estes seres artificiais empregos de menor prestígio social, como empregado doméstico, catador de lixo, cuidador de cachorros e garçom. Por ser o mais alinhado com questões atuais do impacto da tecnologia sobre o ser humano na esfera social e em seu próprio corpo, o ciborgue vem sendo amplamente utilizado, principalmente no subgênero Cyberpunk, para discutir as fronteiras entre o ser humano e a máquina e como as partes se influenciam. Da mesma forma, o ciborgue permite contestar a arbitrariedade da construção de gêneros na sociedade usando a máquina como subversor das fronteiras entre o masculino e o feminino, algo expresso no filme Matrix (1999), onde o protagonista Neo sente o ato da penetração ao ser conectado pela primeira vez, via pino inserido em sua nuca, ao mundo virtual. O ciborgue também foi acolhido por teóricas para debater o lugar social de grupos específicos. Esse é o caso de Donna Haraway com seu ensaio “O manifesto ciborgue” (1985), em que a crítica propõe novos caminhos para o Feminismo além das fronteiras de gênero.

Na proposta de Haraway, a imagem do ciborgue como criatura composta por fusões entre o social e a ficção, entre máquina e organismo, permite ao Feminismo de base socialista, marxista e radical em contemplar as diferenças entre as mulheres.


REFERÊNCIAS

CLUTE, John & NICHOLLS, Peter. Androids. In: CLUTE, John & NICHOLLS, Peter (Eds.). The Encyclopedia of Science Fiction. New York: St. Martin’s Griffin, p. 34-35, 1995.
JOVANOVIC, Aleksandar. Introdução. In: TCHÁPEK, Karel. A fábrica de robôs. Tradução de Vera Machac. São Paulo: Hedra, p. 9-23, 2010.
SILVA, Alexander Meireles da. Sobre robôs e insetos: a crise do fantástico em Karel Capek e Franz Kafka. In: REVISTA LETRAS & LETRAS. n. 2, v. 28, 2012. Disponível em: http://bit.ly/2Q8Ocv2. Acesso em 18 maio. 2019.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz. (Org.). Antropologia do Ciborgue: As vertigens do pós-humano. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica editora, p. 36-118, 2000.
PRAZ, Mario. Introduction. In: FAIRCLOUGH, Peter (Ed.). Three Gothic Novels. Baltimore: Penguin Books, 1968.
ROBERTS, Adam. A verdadeira história da ficção científica: Do preconceito à conquista das massas. Tradução de Mário Molina. São Paulo: Seoman, 2018.