MONSTRO

Claudio Zanini

Termo flexível e subjetivo usado para designar seres extraordinários que perturbam a ordem dita natural das coisas. Monstros desafiam o status quo e “corporificam tudo que é perigoso e horrível na experiência humana. Eles nos ajudam a entender e organizar o caos da natureza e o nosso próprio” (JEHA, 2007, p. 7). O Online Etymology Dictionary aponta dois usos antigos para a palavra monstro: no início do século XIV a palavra francesa “monstre” descrevia um “animal ou humano mal formado, uma criatura afligida por um defeito congênito” (tradução minha). Já em latim, o termo “monstrum” marca um sinal divino (especialmente um que represente infortúnio), e deriva de “monere”, verbo que significa “lembrar”, “trazer à mente”, “contar sobre”; “avisar”, “aconselhar”, “instruir”, “ensinar”. O verbo “demonstrar” e as palavras dele originadas aparecem como termos relacionados na entrada de dicionário aqui citada. A noção mais básica da ontologia monstruosa é a norma(lidade). O monstro não se encaixa, não pertence, não está contido nela; é, portanto, uma criatura essencialmente não-normativa. O ponto de partida para a monstruosidade é sempre o humano, o que torna o monstro passível de ser rotulado inumano, desumano, sobre-humano ou super-humano. Inicialmente a diferença monstruosa está atrelada a noções estéticas e de gosto – Umberto Eco refere-se a essa estética como sendo do desmesurado, ou hespérica, um padrão medieval que não obedece mais às leis tradicionais da proporção e que preza o gigantesco e desmesurado. (ECO, 2007, p. 111)

A articulação da não-normatividade e da ausência de humanidade no monstro é um processo subjetivo. Uma das formas mais evidentes de monstrificação é a diferença física ou biológica; nestes casos a diferença e a inumanidade se expressam através da forma: bestas ferozes e desproporcionais (King Kong e Anaconda no cinema, Leviatã e Beemote na Bíblia), coisas amorfas (como em Matéria Cinzenta, conto de Stephen King) ou impossíveis de serem descritas (como em O Inominável, de H. P. Lovecraft – aliás, a incapacidade de descrição do monstro e do horror que ele causa é base do horror cósmico lovecraftiano), ou criaturas que se metamorfoseiam, como Drácula (que no romance de Bram Stoker assume as formas de homem, morcego, cão e bruma) e Pennywise, o palhaço assassino de IT, também de Stephen King.

A monstruosidade também pode ser atribuída a criaturas com traços de humanidade visíveis ou identificáveis, o que eleva a complexidade do uso do termo: a criatura sem nome gerada pelo cientista Victor Frankenstein no famoso romance de Mary Shelley é resultado da junção de pedaços de cadáveres humanos; vampiros, zumbis e alvos de possessão demoníaca retêm em sua aparência aspectos morfológicos pré-conversão; por um lado ainda são humanos em certa medida, mas por outro não são mais, e através dessa dicotomia emulam o duplo e o inquietante freudiano. O deparar-se com um ente querido convertido é tropo recorrente nestas histórias – Drácula por exemplo, descreve o encontro no cemitério entre Arthur e sua noiva (e agora vampira) Lucy; em A Noite dos Mortos-Vivos, filme de 1968 que inaugura a saga dos mortos de George Romero, Helen é morta por sua filha zumbificada precisamente por não conseguir identificar a monstruosidade da criatura, apenas o que restou de sua humanidade. Já em O Exorcista (livro de William Peter Blatty de 1971 e filme de William Friedkin de 1973) o demônio Pazuzu reveza o corpo possuído (ferido, animalizado, herético, que vomita verde e flutua) com o aspecto normal da menina Regan.

Há um caráter político subjacente à história do uso do termo “monstro”. Aspectos biológicos e genéticos como o fenótipo, as síndromes, as doenças congênitas e as necessidades especiais por vezes servem como critério para que uma dita maioria rotule um semelhante como monstro, tal como evidenciado pela etimologia do termo citada anteriormente. Dois casos célebres na literatura estão em Otelo (1603) e O Mercador de Veneza (1596-1598), peças de Shakespeare cujos personagens-título ostentam diferenças étnico-raciais ou religiosas usadas como argumento para sua monstrificação. A cor escura da pele de Otelo é associada a seu ciúme homicida, ao passo que a suposta ganância do mercador Shylock é associada a seu judaísmo. Outros exemplos de “monstros” deste tipo na literatura incluem o também shakespeariano Ricardo III (descrito como corcunda, deformado e incompleto, portanto mau), Quasímodo (O Corcunda de Notre Dame de Victor Hugo, 1831), O Fantasma da Ópera (do romance homônimo de Gaston Leroux, 1909-1910) e Bertha Mason, a “louca do sótão” de Jane Eyre (Charlotte Brontë, 1847).

Com o tempo o corpo não-normativo literalmente tornou-se atração de circo através do advento dos freak shows, muito populares nos Estados Unidos no início do século XX. As pessoas pagavam para ver anões, mulheres barbadas, contorcionistas, ou pessoas muito fortes, muito altas ou muito gordas, via de regra originárias de países distantes que convenientemente realçam seu caráter exótico e monstruoso. A ficção explorou o tema dos freak shows de forma notável nos filmes Freaks (Tod Browning, 1932) e O Homem Elefante (David Lynch, 1980), bem como na quarta temporada da série de antologia American Horror Story: Freakshow (Ryan Murphy e Brad Falchuk, 2014).

O que aqui chamamos de caráter político do uso do termo “monstro” remete à relação de autoria e recepção do rótulo, à dialética em que identificamos tanto a diferença motivadora do rótulo quanto o modo como o autor do rótulo lida com a diferença que identifica em seu monstro. Nesse sentido, “monstro” é uma palavra que pode servir para designar, entre tantos outros, um personagem sobrenatural da ficção, uma entidade inimiga nas narrativas e doutrinas de cunho espiritual (por exemplo, o Diabo no Cristianismo), um opositor político (“A diferença política ou ideológica é tanto um catalisador para a representação monstruosa num micro-nível quanto a alteridade cultural no macrocosmo” (COHEN, 1996, p. 8)), ou um semelhante de essência e práticas sociais aparentemente incompatíveis com as de quem atribui tal rótulo.

É a impureza do monstro que o torna de difícil compreensão para quem se considera “puro”. O termo “impureza” foi utilizado por Mary Douglas em seu ensaio de 1966 intitulado Purity and Danger (“Pureza e Perigo”), em que ela correlaciona reações de impureza à transgressão ou violação de esquemas de categorização cultural. Noël Carroll aprofunda essa ideia a fim de ressaltar que o monstro é um ser intersticial, “que cruza as fronteiras das categorias profundas de um esquema conceitual de uma cultura” (CARROLL, 1990, p.31-32, tradução minha), de natureza contraditória, incompleta ou sem forma (1990, p.32), uma vez que são vivos/mortos, animados/inanimados, ou pertencem simultaneamente a espécies diferentes. Tal estado de coisas leva ao que Carroll chama de incompletude categórica, o que torna o monstro ainda mais perigoso por ser ameaçador física e cognitivamente (p. 33-34). Jeffrey Jerome Cohen (1996) ecoa a noção de incompletude categórica ao postular que o monstro sempre nos escapa (é impossível compreendê-lo por completo), é mensageiro de crises de categoria (sua presença denota a mudança iminente de paradigmas), e que seu corpo é cultural, portanto sujeito a variantes históricas, sociais, geográficas, etárias, de gênero ou sexuais, por exemplo.

Os monstros são resultados de anseios, angústias, medos e incertezas do meio em que surgem. Apesar de diferentes e inumanos, são nossos filhos, como sugere Cohen. Os ensinamentos e avisos monstruosos são sobre nós e o mundo, como o percebemos e nos relacionamos com ele. Sua feiura é proporcional à nossa dificuldade de entender e aceitar o outro, e é precisamente por representar a alteridade que ele nos repele e fascina na mesma medida.

REFERÊNCIAS

CARROLL, Noel. The Philosophy of Horror, or Paradoxes of the Heart. New York: Routledge, 1990.
COHEN, J. J. Monster Culture: Seven Theses. In: COHEN, J. J. (Org). COHEN, J. J. Monster Theory: Reading Culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996.
ECO, Umberto (Org). História da Feiúra. Rio de Janeiro: Record, 2007.
JEHA, Júlio. Monstros: A face do mal. In: JEHA, Júlio (Org.). Monstros e monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, p. 7-8, 2007.
MONSTER. Online Etymology Dictionary. Disponível em: https://www.etymonline.com/search ?q=monster. Acesso em 09 jul. 2020.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR:

ASMA, Stephen T. On Monsters: An Unnatural History of Our Worst Fears, 2009.
COUPE, Laurence. Myth. Londres: Routledge, 1997.
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. Lisboa: Edições 70, 1991. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1861113/mod_resource/content/1/pureza-e-perigo-mary-douglas.pdf. Acesso em 09 jul. 2020.
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
GRANT, Barry Keith. The Dread of Difference: Gender and the Horror Film. Austin: University of Texas Press, 2015.
JEHA, Júlio; NASCIMENTO Lyslei (Orgs). Da fabricação de monstros. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009.
SKAL, David J. The Monster Show: A Cultural History of Horror. New York: Faber & Faber, 1993.