DAS UNHEIMLICHE

Lenice Alves Soares

Das Unheimliche é o título de um artigo de Sigmund Freud (1856-1939), publicado em 1919, assim como um conceito psicanalítico que extrapolou o âmbito da psicanálise, sendo utilizado com frequência na área das artes em geral, entre outras.

Freud escreve este ensaio, cujos registros iniciais remetem a 1913, com a intenção de elucidar como se manifesta e de onde vem o sentimento de estranhamento, inquietude, angústia e horror que assola os seres humanos em determinadas situações.

Nesse texto, Freud lança ideias de grande importância para a teoria psicanalítica, trabalhando com noções e conceitos relevantes, como o complexo de castração, recalque, negação, o duplo, a repetição (ou compulsão à repetição), narcisismo, animismo, além do próprio termo, unheimlich, que dá título ao ensaio, e que se tornou, a partir daí, também um conceito ou, como ele próprio escreve, uma palavra-conceito (Begriffswort) dentro da psicanálise (FREUD, 2019, p. 29).

Alguns desses conceitos também são muito caros aos estudos literários, tendo este texto de Freud um destaque especial na crítica e na historiografia literárias da ficção fantástica, sendo referido por vários estudiosos dessa área (SOARES, 2019). O precursor da psicanálise lança mão, preponderantemente, de um texto literário para exemplificar suas teorias a respeito de tal sentimento que nos toma. O texto em questão é o conto O homem da areia (1817), do autor alemão Ernst Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822), publicado cerca de cem anos antes do texto de Freud, e que tem papel de destaque em seu ensaio.

O texto de Freud é composto de três partes: Na primeira, ele apresenta um estudo filológico-etimológico da palavra unheimlich; na segunda, e mais longa parte, ele apresenta a sua teoria, tendo como base o conto de Hoffmann, o qual é praticamente recontado e trabalhado em detalhes; na terceira parte, Freud amplia as suas ideias, trazendo muitos outros exemplos, a maioria deles também literários, mesmo que só citados ou mencionados superficialmente.

Num movimento às vezes vertiginoso, Freud se apropria de uma palavra de uso relativamente comum em alemão (pelo menos em seu uso adjetivo-adverbial), empresta-lhe um estatuto conceitual, transporta-a por variadas searas linguísticas e filosóficas, examina a experiência literária que melhor a engendra, escrutina a vivência real que ela recorta, para, ao final, devolver a palavra à língua, mas desta vez com o selo perene da psicanálise. (IANNINI, TAVARES, 2019, p. 7)

Ou seja, ele parte de uma abordagem linguística, trabalha a seguir a fenomenologia dos afetos envolvidos, para ao final focar na relação entre imaginação e realidade (FREUD, 2001), passando por questões clínicas, culturais, e recheando o seu texto com inúmeras referências literárias (RABÊLO; MARTINS; STRÄTER, 2019).

Encontramos diversas traduções para o português do unheimlich: estranho (FREUD, 1976), sobrenatural (FREUD, 2001), inquietante (FREUD, 2010), infamiliar (FREUD, 2019), além de “inquietante estranheza”, como verbete do E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia, entre outras. E aqui nos limitamos à literatura no campo psicanalítico e dos estudos literários. Consultando um dicionário Português/Alemão – Alemão/Português, ainda encontramos as palavras sinistro, lúgubre, medonho e numinoso como possíveis traduções (Langenscheidt, 1988). Pode-se mesmo afirmar que Freud leva um novo significado dessa palavra não só para a língua alemã, mas também para o mundo, através da criação do conceito psicanalítico neste seu ensaio de 1919. Como afirmam Iannini e Tavares no prefácio “Freud e o Infamiliar” à tradução de 2019:

Definitivamente, a análise empreendida por Freud modifica não apenas a língua alemã, acrescentando um sentido e um emprego inauditos, mas ainda exporta para todas as línguas através das quais a psicanálise se difundiu um significante novo e incômodo, um vocábulo, a rigor, intraduzível (2019, p. 8).

A dificuldade de tradução do Unheimliche se mostra em várias línguas e suas diversas traduções, sendo um texto constantemente retraduzido, deixando clara a necessidade de atualização de suas retraduções (BERMAN, 2017).

No Brasil, a tradução que existe há mais tempo é da Editora Imago, que no final dos anos 1960 adquiriu os direitos para a tradução das obras completas de Freud diretamente da edição inglesa. A Imago, como consta no próprio site da editora (IMAGO, s.d), foi fundada em 1967, e criada com o objetivo de produzir a edição brasileira da coleção das obras psicológicas de Freud. Baseada na edição standard inglesa, a edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud segue uma ordem cronológica das obras do médico vienense. O ensaio motivo deste artigo, ali intitulado “O estranho” (1976), está no volume XVII de um total de 24 volumes. Como consta na folha de rosto do referido volume: tradução do Alemão e do Inglês sob a direção geral e revisão técnica feita pelo psicanalista e psiquiatra Jayme Salomão.

Embora seja uma edição que tenha recebido muitas críticas quanto à precisão terminológica dos conceitos freudianos, ainda é a mais citada no Brasil. Foi revisada pela editora em 2000 e existe no site da editora um dossiê de quase cinquenta páginas sobre os critérios de tradução utilizados nas obras completas (IMAGO, s.d). Assim, o termo estranho é o mais encontrado em português quando se faz uma busca por menções ao referido artigo de Freud.

A partir de 2010, quando a obra de Freud caiu em domínio público, a Editora Companhia das Letras lançou uma nova tradução das obras completas do médico austríaco, desta vez com tradução de Paulo César Lima de Souza, direto da edição das obras completas em alemão (Gesammelte Werke).

O referido texto foi traduzido como “O inquietante” (2010) e é o volume XIV da edição mencionada, que conta com vinte volumes ao todo, e promete máxima fidelidade ao original, como consta da apresentação no site da editora (COMPANHIA DAS LETRAS, s.d). O tradutor é da área de Letras, e em muitos artigos mais atuais, sobretudo ligados ao campo da ficção fantástica, encontramos essa tradução como bibliografia citada.

Em 1919, quando o texto de Freud estava completando cem anos, a Editora Autêntica lançou uma edição comemorativa, bilíngue, que contém também uma nova tradução do conto de Hoffmann, juntamente com alguns artigos sobre os dois textos e seus respectivos autores. A nova tradução, “O infamiliar” (2019), é de Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares, e faz parte das obras monográficas da coleção Obras incompletas de Sigmund Freud. A equipe que assina a coleção é multidisciplinar. O editor e idealizador da mesma é Gilson Iannini, doutor em filosofia e psicanalista. O coordenador de tradução e revisor técnico é Pedro Heliodoro Tavares, doutor em literatura e psicanálise.

A coleção da editora Autêntica, diferente das duas anteriores, além de não pretender ser completa, não apresenta as obras de Freud em ordem cronológica, de acordo com a data de publicação, mas sim em grupos temáticos, prometendo rigor filológico, cuidado estilístico e precisão conceitual, como consta no site da editora (AUTÊNTICA, s.d).

Todas as traduções apresentam inúmeras notas ao referido artigo de Freud, além de pontuarem as dificuldades da tradução, não somente, mas, principalmente, da palavra que dá título ao artigo. Para demonstrar tal dificuldade, e versatilidade de tradução, será apresentado aqui um trecho da primeira parte do texto de Freud nas três traduções mencionadas, além do original em alemão, ressaltando a escolha do léxico específico por parte de cada um dos tradutores.

Freud inicia seu ensaio justificando seu interesse pelo campo da estética, a qual ele entende não apenas como a doutrina do belo, mas sim como a doutrina das qualidades do nosso sentir. E apesar do psicanalista trabalhar com outras camadas da vida anímica, às vezes ele se interessa por algum domínio específico da estética, segundo ele, negligenciado pela literatura especializada, até a sua época. Assim, explica:

 

O tema do ‘estranho’ é um ramo desse tipo. Relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca medo e horror; certamente, também, a palavra nem sempre é usada num sentido claramente definível, de modo que tende a coincidir com aquilo que desperta o medo em geral. Ainda assim, podemos esperar que esteja presente um núcleo especial de sensibilidade que justificou o uso de um termo conceitual peculiar. Fica-se curioso para saber que núcleo comum é esse que nos permite distinguir como ‘estranhas’ determinadas coisas que estão dentro do campo do que é amedrontador. (FREUD, 1976, p. 276,  grifo nosso)“O inquietante” é um desses domínios. Sem dúvida, relaciona-se ao que é terrível, ao que desperta angústia e horror, e também está claro que o termo não é usado sempre num sentido bem determinado, de modo que geralmente equivale ao angustiante. É lícito esperarmos, no entanto, que exista um núcleo especial [de significado] que justifique o uso de um termo conceitual específico. Gostaríamos de saber que núcleo comum é esse, que talvez permita distinguir um “inquietante” no interior do que é angustiante. (FREUD, 2010, p. 329-330, grifo nosso)
Algo desse domínio é o “infamiliar”. Não há nenhuma dúvida de que ele diz respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror, e, de todo modo, estamos seguros de que essa palavra nem sempre é utilizada num sentido rigoroso, de tal modo que, em geral, coincide com aquilo que angustia. Entretanto, pode-se esperar que exista um determinado núcleo, que justifique a utilização de uma palavra-conceito específica. Gostaríamos de saber o que é esse núcleo comum, que permite diferenciar, no interior do angustiante, algo “infamiliar”. (FREUD, 2019, p. 29, grifo nosso)Ein solches ist das »Unheimliche«. Kein Zweifel, daß es zum Schreckhaften, Angst– und Grauenerregenden gehört, und ebenso sicher ist es, daß dies Wort nicht immer in einem scharf zu bestimmenden Sinne gebraucht wird, so daß es eben meist mit dem Angsterregenden überhaupt zusammenfällt. Aber man darf doch erwarten, daß ein besonderer Kern vorhanden ist, der die Verwendung eines besonderen Begriffswortes rechtfertigt. Man möchte wissen, was dieser gemeinsame Kern ist, der etwa gestattet, innerhalb des Ängstlichen ein »Unheimliches« zu unterscheiden. (FREUD, 1919, grifo nosso)

Convém ressaltar que, além da palavra que dá título ao artigo, Das Unheimliche, (O estranho/ O inquietante/ O infamiliar), a palavra Angst e seus derivados, se tornam de difícil tradução neste contexto, pois pode significar tanto medo (amedrontador) quanto angústia (angustiante).

Como a tradução de 2019 é a que mais se aproxima da palavra-título em alemão, tanto do ponto de vista semântico quanto morfológico, optou-se por ela para as próximas citações. Com isso, também procuramos separar o conceito freudiano, aqui chamado de “infamiliar”, do conceito do “estranho” todoroviano (TODOROV, 1992), evitando assim alguma confusão conceitual.

Freud justifica então o seu interesse pelo tema, segundo ele, negligenciado pela crítica especializada, e a necessidade de estudá-lo de forma mais detalhada, já que só teria encontrado um texto a respeito na literatura médico-psicológica, um artigo de 1906, do seu colega, médico psiquiatra alemão, Ernst Anton Jentsch (1867-1919). Freud menciona Jentsch algumas vezes em seu ensaio, seja para concordar com ele em alguns aspectos, ou refutá-lo em outros. Inclusive Jentsch teria usado o mesmo texto de Hoffmann como exemplo em seu artigo “Sobre a psicologia do infamiliar” (Zur Psychologie des Unheimlichen), publicado numa revista especializada, Psychiatrisch-neurologische Wochenschrift (FREUD, 2019, p. 31, nota de rodapé).

Assim, Freud começa concordando com Jentsch sobre a dificuldade do estudo do tema, e que o sentimento do infamiliar é percebido de diferentes formas e em diferentes graus de pessoa para pessoa, mas que também há casos nos quais o caráter em questão seja reconhecido sem contradições pela maioria delas.

Segundo ele, há dois caminhos para se encontrar exemplos de situações onde surge o sentimento do infamiliar. O primeiro seria descobrir quais significados vieram ligar-se à palavra no decorrer do tempo, e o segundo seria reunir impressões, vivências e situações que despertam em nós tal sentimento e, a partir daí inferir o que há de comum em todos os casos. Ele conclui, então, que ambos os caminhos conduzem ao mesmo resultado “de que o infamiliar é uma espécie do que é aterrorizante, que remete ao velho conhecido, há muito íntimo” (FREUD, 2019, p. 33).

Freud explica que, em sua investigação, coletou primeiro casos individuais, e somente depois partiu para um exame do uso linguístico para sua confirmação. Neste artigo, porém, procederá de forma inversa, optando por começar com o estudo linguístico, para depois apresentar seus estudos de casos.

Após fazer um estudo etimológico da palavra unheimlich, que em sua raiz contém a palavra Heim, que significa lar em alemão, o autor conclui que o adjetivo heimlich se refere a tudo o que é doméstico, familiar, conhecido. Mas acrescenta também um outro significado, pois tudo o que deve ficar no âmbito do lar e da família, deve ser/ficar secreto. Portanto com o prefixo un-, de negação, unheimlich é tudo o que não é familiar, não é conhecido, portanto, estranho, mas também tudo aquilo que não fica secreto, ou seja, que vem à tona. Todos esses usos são atestados no ensaio de Freud por inúmeros exemplos, literários e não literários, de uso na língua alemã. (SOARES, 2019, p. 15-16)

Depois do trabalho filológico, que fundamenta a investigação de Freud, além da comparação com a tradução da palavra para outras línguas, o que o autor credita e agradece a outro colega, Theodor Reik (1888-1969), e de inúmeros exemplos de uso da palavra unheimlich, ele chama a atenção para a ambiguidade da palavra:

O que há de mais interessante para nós, a partir dessa longa citação, é o fato de que a palavrinha “familiar” [heimlich], entre as diversas nuances no seu significado, também aponta coincidente com seu oposto “infamiliar” [un-heimlich]. O familiar se torna então infamiliar. (…) De todo modo, lembremos que essa palavra heimlich não é clara, pois diz respeito a dois círculos de representações, os quais, sem serem opostos, são, de fato, alheios um ao outro, ao do que é confiável, confortável e ao do que é encoberto, o que permanece oculto. Unheimlich seria usualmente oposto apenas do primeiro significado, mas não do segundo. (…) Ao contrário, chamamos a atenção para uma observação de Schelling, que diz algo absolutamente novo a respeito do conteúdo do conceito de infamiliar, para o qual, certamente, nossa expectativa não estava preparada. Infamiliar seria tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona. (FREUD, 2019, p. 45)

Freud encerra então a primeira parte do seu artigo chamando a atenção para a ambiguidade da palavra, já que seu significado coincide também com o seu oposto, e para a importância da ideia do filósofo romântico alemão Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (1775-1854) de que unheimlich é tudo o que permaneceu em segredo, mas que vem à tona. Tais ideias serão desenvolvidas por Freud na sequência de seu ensaio, com exemplos.

Na segunda parte de seu artigo, Freud recorre novamente ao trabalho de Jentsch para prosseguir com suas investigações sobre situações que geram esse sentimento de unheimlich, como, por exemplo, a dúvida quanto a saber se um ser, aparentemente animado, está realmente vivo, ou se um objeto sem vida poder estar animado, citando também o estranhamento causado por acessos epiléticos e manifestações de insanidade. Freud credita a Jentsch a lembrança de que o escritor E. T. A. Hoffmann teria empregado repetidas vezes, e com êxito, tal artifício psicológico em suas peças fantásticas, com o intuito de deixar o leitor na incerteza (FREUD, 2019, p. 51-53).

Contudo, Freud discorda de Jentsch de que no conto “O homem da areia”, de Hoffmann, somente a figura da boneca Olímpia traga esse efeito de incerteza. Segundo ele, é, sobretudo, a figura do próprio Homem da Areia, que confere título à obra e sempre retorna em momentos decisivos da história, que traz tal efeito à narrativa.

Essa correta observação visa sobretudo ao conto “O Homen da Areia”. (…) Mas devo dizer – esperando que a maioria dos leitores dessas histórias concordem comigo – que o tema de Olímpia, a boneca aparentemente viva, não é, de modo algum, nem o único nem o principal responsável pelo incomparável efeito infamiliar do conto. Também não se deve atribuí-lo ao fato de que o episódio de Olímpia tenha da parte do próprio escritor uma leve mudança para o satírico e é por ele utilizado como escárnio pela excessiva valorização do amor por parte do jovem rapaz. No centro do conto está, muito mais, um outro fator, a partir do qual ele se intitula e que sempre retorna em passagens decisivas: o tema do Homem da Areia, aquele que arranca os olhos das crianças. (FREUD, 2019, p. 51)

Freud faz, então, um resumo detalhado do conto de Hoffmann para poder falar do que é, para ele, o principal tema que confere ao texto o efeito infamiliar, que traz estranhamento e inquietude, a saber, a figura do Homem da Areia, que arranca os olhos das crianças, e que reaparece de várias formas ao longo do conto. Em seu percurso, com a análise do texto de Hoffmann, Freud chega à conclusão de que o medo, oriundo da perda dos olhos, nada mais é do que a angústia da castração, e que, por isso, o sentimento que toma o personagem Nathanael (grafado por ele Nathaniel), e os leitores, remete a algo já conhecido, vivenciado na infância. É interessante seguir o percurso de Freud em seu ensaio, pois juntamente com seu resumo do conto, ele já vai direcionando para sua própria compreensão do unheimlich: um sentimento já vivenciado na infância, desta forma familiar e secreto (heimlich), que foi recalcado no inconsciente, portanto, negado, tornado não familiar (unheimlich), mas que pode vir à tona, suscitado por alguma situação ao longo da vida.

Para Freud é, sem dúvida, a figura do Homem da Areia que suscita o sentimento infamiliar, pelo retorno da angústia da castração, medo infantil vivenciado por Nathanael. Essa figura do imaginário infantil reaparece no conto de Hoffmann também como Coppelius e Coppola, substituindo o “temido pai, de quem se espera a castração” (FREUD, 2019, p. 63).

Freud não descarta que a incerteza intelectual, advinda da dúvida quanto a se saber se a boneca Olímpia é ou não um ser vivo, também contribui para o sentimento infamiliar, mas isso não viria necessariamente de um medo infantil, talvez mais de uma crença infantil. Ele conclui o resumo do conto de Hoffmann e enfatiza ser este “o inigualável mestre do Infamiliar na literatura”, mencionando ainda o romance Os elixires do Diabo, de Hoffmann,como um texto que “reúne uma grande quantidade de temas nos quais se pode assinalar o efeito infamiliar da história” (FREUD, 2019, p. 67).

Seguindo sua investigação se outros fatores que provocam o efeito infamiliar também partem de fontes infantis, Freud menciona ainda o tema do duplo, seja por repetição de aparência, caráter, destino ou nome (FREUD, 2019, p. 69). Neste contexto, ele cita o trabalho de outro psicanalista austríaco, Otto Rank (1884-1939), que publicara anteriormente, em 1914, um livro sobre o mesmo tema (RANK, 2013). A duplicidade viria como uma garantia contra o declínio do Eu ou como defesa contra a destruição do ego, mas “de uma segurança quanto à continuidade da vida ele [o duplo] se torna o infamiliar mensageiro da morte” (FREUD, 2019, p. 71). Segundo Freud, um alto grau de infamiliaridade é próprio ao duplo, cuja formação é da mesma família de processos anímicos de tempos primevos, há muito superados, ligados a um “narcisismo dos primórdios” (FREUD, 2019, p. 71)

Freud afirma ainda que outras perturbações do Eu, usadas por Hoffmann, são análogas ao modelo do duplo, ou seja, remetem a fases nas quais o Eu ainda não havia se separado do mundo exterior ou dos outros, como, por exemplo, o fator da repetição, ou a compulsão à repetição. Para o psicanalista vienense, este fator também gera o sentimento infamiliar, embora não seja reconhecido por todos como tal (FREUD, 2019, p. 75).

Após dar alguns exemplos de repetição, oriundos de outros contextos e obras, Freud explica:

Como o infamiliar referente ao retorno do mesmo pode derivar da vida anímica infantil trata-se de algo que aqui posso apenas mencionar, remetendo a uma exposição minuciosa, a ser preparada em outro contexto. No inconsciente anímico, é possível, de fato, reconhecer-se o domínio de uma incessante compulsão à repetição das moções pulsionais, a qual, provavelmente, depende da mais íntima natureza das pulsões, e que é suficientemente forte para se impor ao princípio de prazer, conferindo um caráter demoníaco a certos aspectos da vida anímica, algo que ainda se expressa claramente nas aspirações da criança e que domina uma parte do decurso da psicanálise dos neuróticos. (FREUD, 2019, p. 79)

Assim como tema do duplo é abordado relacionado ao medo da morte, juntamente com o tema da repetição, ligado a temores infantis, outros temas são ainda mencionados por Freud, como superstições, magias e crenças primitivas reprimidas do ser humano, segundo ele, ligadas à onipotência de pensamentos e à concepção animista do universo. Outros temas ligados ao sentimento do infamiliar, ainda mencionados por ele, são a loucura, a bruxaria, espíritos e cadáveres, entre outros.

Concluindo a segunda parte de seu texto, Freud fala sobre as fronteiras entre fantasia e realidade e o efeito infamiliar, temática que ele irá ampliar na terceira parte:

 Acrescentemos ainda algo de cunho geral, que já está rigorosamente contido em nossas afirmações feitas até aqui sobre o animismo e o já superado modo de trabalhar do aparelho psíquico, mas que parece ser digno de uma ênfase especial: propriamente, algo que tem um efeito de infamiliar frequente e facilmente alcançado quando as fronteiras entre fantasia e realidade são apagadas, quando algo real, considerado como fantástico, surge diante de nós, quando um símbolo assume a plena realização e o significado do simbolizado e coisas semelhantes. Aqui se baseia também boa parte da infamiliaridade inerente às práticas mágicas. Nesse caso, o que há de infantil, que também domina a vida anímica do neurótico, é a ênfase exagerada na realidade psíquica em comparação com a realidade material, um traço que se vincula à onipotência de pensamentos. (FREUD, 2019, p. 93)

Na terceira e última parte do seu ensaio, Freud afirma que o infamiliar é o familiar doméstico que sofreu um recalcamento e que retornou, e que todo infamiliar preenche essa condição, mas que a recíproca não é verdadeira. Ou seja, nem todas as moções recalcadas do desejo e modos de pensar superados trazem o efeito infamiliar. Ele explica também que os contos maravilhosos (Märchen) se apresentam muito abertos em relação ao ponto de vista animista da onipotência de pensamentos e desejos, tendo, muitas vezes, objetos inanimados que ganham vida, ou mortos que voltam à vida, como Branca de Neve, mas nem por isso apresentam o efeito infamiliar.

Outro ponto levantado por Freud na última parte é o fato dele ter trazido em seu ensaio mais exemplos literários do que vivenciados. Ele explica então que o infamiliar vivenciado compreende poucos casos e remete aos complexos infantis recalcados no inconsciente, ao recalcado que um dia foi conhecido e retorna à consciência. O infamiliar que remete à onipotência do pensamento, ou seja, de crenças, segundo ele, superadas, ou que já deveríamos ter superado, como magias, medo dos mortos ou crenças animistas, não resiste à prova da realidade. Segundo Freud, quem já superou definitivamente essas crenças não experimenta o infamiliar. Assim ele conclui:

No infamiliar que surge dos complexos infantis não se leva em consideração a questão da realidade material, a realidade psíquica toma seu lugar. Trata-se do recalcamento efetivo de um conteúdo e do retorno do recalcado, mas não da superação da crença na realidade. Poder-se-ia dizer que, num caso, trata-se de determinado conteúdo representativo, em outro, da crença na sua realidade (material) recalcada. (…) Nossa conclusão é a seguinte: o infamiliar da vivência existe quando complexos infantis recalcados são revividos por meio de uma impressão ou quando crenças primitivas superadas parecem novamente confirmadas. (FREUD, 2019, p. 105)

Já o infamiliar ficcional seria muito mais rico do que o infamiliar vivenciado, pois, segundo Freud, aquele, além de abranger este, o extrapolaria, já que seu conteúdo dispensa a prova da realidade. Assim, paradoxalmente, “na criação literária não é infamiliar muito daquilo que o seria se ocorresse na vida e que na criação literária existem muitas possibilidades de atingir efeitos do infamiliar que não se aplicam à vida” (FREUD, 2019, p. 107).

Freud afirma, ainda, que o escritor pode se dar a liberdade de escolher seu modo de figurar o mundo, seja fazendo-o concordar com a realidade conhecida por nós, seja afastando-se dela, como no mundo dos contos maravilhosos (Märchen), que abandona o fundamento da realidade, mas pode não expressar o efeito do infamiliar, pois “para o surgimento de tal sentimento (…) é exigido um conflito de julgamento” (p. 107), que pode não ocorrer. Há ainda textos que incorporam seres espiritualmente superiores, demônios ou fantasmas, como no Inferno de Dante ou em Hamlet de Shakespeare, mas que também não suscitam o sentimento do infamiliar. Segundo Freud:

Tudo de infamiliar que essas figuras poderiam suscitar desaparece, tão logo atingimos os pressupostos dessa realidade poética. (…) Nós ajustamos nosso juízo às condições dessa realidade fingida pelo escritor e tratamos as almas, os espíritos e os fantasmas como se tivessem uma existência justificada, tal como a nossa na realidade material, Também nesse caso a infamiliaridade está ausente. (FREUD, 2019, p. 109)

Mas há também textos que apresentam essas mesmas temáticas ligadas às crenças que deveriam estar superadas, nos quais o efeito do infamiliar se faz presente, exatamente como nas vivências, ou até de maneira mais forte. Neste caso, Freud afirma que o escritor nos “ilude”, nos aproximando da realidade comum, e assim “reagimos às suas ficções tal como reagiríamos às nossas próprias vivências”, ou até indo além, já que “a ficção cria novas possibilidades para a sensação do infamiliar, que não se dão nas vivências” (FREUD, 2019, p. 111).

Segundo Freud, há na ficção toda uma diversidade de possibilidades em relação ao infamiliar oriundo do que fora superado, ou seja, das crenças já superadas ou a superar, indo até além das nossas próprias vivências. Já em relação ao infamiliar que surge a partir dos complexos recalcados, por ser mais resistente, ele permanece tão infamiliar na criação literária quanto nas próprias vivências. Ele conclui que no mundo da ficção, o efeito dos sentimentos pode ser independente da escolha do enredo e que no mundo dos contos maravilhosos (Märchen) não devem ser despertados os sentimentos de angústia, tampouco os de ordem infamiliar em geral (FREUD, 2019, p. 115).

Vale ressaltar que Freud escreveu seu texto há mais de um século, sob as perspectivas psicanalítica, histórica e cultural de seu tempo, de um homem branco, europeu. E aquilo que ele chama de crenças arcaicas, primitivas e superadas, ou a superar, estão inseridas nesse contexto, e que os estudos antropológicos e psicanalíticos hoje abordam esse tema de uma outra forma.

Outro fator a ser ressaltado é a relevância do caráter transdisciplinar deste ensaio de Freud, que não só inaugurou, como ainda é a base para muitos debates e estudos importantes, não só no âmbito psicanalítico, como também antropológico, literário e estético. Para a sua investigação, ele se distancia da visão tradicional de seu tempo, que associava a estética simplesmente às teorias do belo, indo procurar as causas do efeito infamiliar no plano do inconsciente humano, abordando aspectos psicológicos e culturais, e se valendo, preponderantemente, de obras literárias como exemplos.

REFERÊNCIAS

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