ZUMBI

Alexander Meireles

Ao lado de outras criaturas ligadas ao Fantástico como o Fantasma, o Lobisomem e o Vampiro, o Zumbi é o ser sobrenatural que possui a trajetória de destaque mais recente no universo da Literatura, Cinema, Televisão, História em Quadrinhos e outras expressões da criatividade humana. Quatro fatores interligados estão por trás desta situação. Primeiro, falta ao Zumbi a universalidade cultural dos seres fantásticos supracitados. Ainda que em todas as culturas humanas ocorram relatos de criaturas que retornam dos mortos para assombrar ou atacar os vivos, sendo o Fantasma e o Vampiro os mais largamente conhecidos, o Zumbi possui especificidades vinculadas a manifestação do personagem na America Central, e em especial, no Haiti. Em um país onde a escravidão moldou a estrutura da sociedade e foi gatilho para a luta pela independência contra a França, o Zumbi é a incorporação do passado escravocrata e a ameaça de que, mesmo após a morte, a pessoa ainda pode se tornar escrava de um mestre (INGLIS, 2011, p. 43). O segundo fator, que explica a tardia popularização do Zumbi no século XX, está na esfera da Literatura. O Zumbi carece de uma obra literária maior que possa estabelecer ligação com uma tradição folclórica e com textos literários precursores ao mesmo tempo em que lance convenções para obras posteriores, caso de Drácula (1897), de Bram Stoker. Da mesma forma, faltou ao Zumbi literário um corpo consistente de obras que pudessem ser tomados como um subgênero do modo Fantástico, como ocorreu no caso do Conto de Fantasma. De fato, foi apenas na segunda metade do século XX, no Cinema, que surgiu a obra mais influente sobre o desenvolvimento do personagem: o filme A noite dos mortos vivos (1968), dirigido por George Romero. Estabelece-se neste filme a imagem conhecida do Zumbi na cultura pop como um corpo em decomposição, andando em estado sonambulístico, e braços esticados a procura de carne humana.

Como salienta June Pulliam (2007, p. 734-735), George Romero em A noite dos mortos vivos transformou o zumbi haitiano da mesma forma que James Whale e Tod Browning transformaram respectivamente os personagens literários da criatura de Frankenstein e Drácula nas duas produções de 1931, a ponto de levar cineastas subsequentes que lidam com a temática do Zumbi a direta ou indiretamente prestarem homenagem à obra de Romero. Tem-se a partir daí a ruptura do Zumbi com o sobrenatural haitiano para a sua abordagem atual regida sob a perspectiva da Ciência, criando a criatura canibal e contagiosa gerada a partir de vírus naturais, experiências diversas, radiação ou produtos químicos. O terceiro fator, e conectado ao anterior, a ligação natural do Zumbi com a cultura marginalizada do Caribe, afastada da influência artística europeia, fez a criatura demorar a capturar a imaginação de escritores e roteiristas que poderiam fazer deste personagem matéria prima de sua escrita. Neste sentido, o Oxford English Dictionary registra que o primeiro uso do termo “Zumbi” no ocidente aparece na obra História do Brasil (1819), de Robert Southey, fazendo referência ao lendário líder rebelde dos escravos do Brasil de fins do século XVII chamado Zumbi (RUSSELL, 2010, p. 23).

A etimologia de “Zumbi”, por sua vez, é controversa. Especula-se que o termo se origine na Africa Ocidental no congolês “nzambi” (deus,  espírito) ou em “zumbi” (feitiço) (MOREMAN, RUSHTON, 2011, p. 3). Já no Dicionário Kimbundu-Português (193-?), o “Zumbi” deriva de “Nzûmbi”, (Espectro; fantasma, alma do outro mundo, espírito perturbado, atormentado, perseguido) (ASSIS JÚNIOR, 193-?, p. 379). Já o primeiro texto que apresentou a criatura não apenas aos Estados Unidos, mas também ao ocidente como um todo foi o artigo de 1889 publicado na Harper’s Magazine pelo jornalista e antropólogo amador Lafcadio Hearn, de título “The Country of the Comers-Back” (“A terra dos que voltam”). Em 1887 Hearn viajou para o Caribe para uma série de reportagens e acabou entrando em contato com as histórias sobre os corps cadavres (“mortos que caminham”). O jornalista não conseguiu obter maiores informações devido à relutância da população local para falar sobre o assunto, mas os poucos dados obtidos foram suficientes para a elaboração do artigo sobre sua viagem, que acabou por repercutir apenas entre o público leitor da revista. Por conta disso, o termo “Zumbi” permaneceu virtualmente desconhecido fora do Haiti até o fim da década de 1920 (KEE, 2011, p. 13). Esta situação começaria a mudar a partir de 1915, quando os Estados Unidos dominaram o Haiti levando soldados, banqueiros e empresários para o país (RUSSELL, 2010, p. 23). Logo, a chamada “República Negra” começou a atrair a curiosidade do público americano pelo seu exotismo e misticismo. Dentro deste contexto, foi outro relato investigativo, esse publicado em 1929, que capturou a imaginação da América para o Zumbi, atraindo a atenção de escritores e roteiristas do Teatro e do Cinema da época: A ilha da magia (1929), do jornalista William Seabrook (KEE, 2011, p. 13). Considerada a obra responsável por despertar o interesse do ocidente no Zumbi (PULLIAM, 2007, p. 725) o relato de viagem apresenta o período de convivência de Seabrook com uma família haitiana e sua coleta de histórias sobre zumbis e práticas de Vodu, incluindo o seu próprio testemunho da ressurreição de um homem. No capítulo intitulado, “… Homens mortos trabalhando nos campos de cana” William Seabrook descreve o Zumbi como um corpo humano sem alma que foi retirado da cova e imbuído de feitiçaria para aparentar vida. A criatura é um cadáver capaz de caminhar, e se movimentar como se estivesse vivo, sendo usado como escravo pela pessoa que o reanimou (KEE, 2011, p. 13-14).

O impacto de A ilha da magia pode ser percebido nos anos seguintes em diferentes campos artísticos. O Zumbi de base folclórica haitiana, representado como o morto sem vontade própria que caminha e serve a um mestre, fez sua estreia literária no ano seguinte a obra de William Seabrook com o conto “Jumbee” (1930), de Henry S. Whitehead (RUSSELL, 2010, p. 35). No teatro, a A ilha da magia serviu de inspiração para o roteiro que levaria a criatura aos palcos com a peça Zombie (1932). No mesmo ano, o Zumbi chegou ao Cinema pela primeira vez com o filme Zumbi branco (White Zombie,  1932), com a direção de Victor Halperin e trazendo Bela Lugosi como mestre dos mortos-vivos (KEE, 2011, p .15). Ainda nos anos trinta, o Zumbi haitiano também chegou nas revistas pulp norte-americanas em revistas como Weird Tales e Strange Tales (PULLIAM, 2007, p. 727). Ao se falar destas publicações, cabe destacar que o morto-vivo de aparência putrefata já marcava presença nas histórias de Horror desde os primeiros anos do século XX. Em “A pata do macaco” (1902), de W. W. Jacobs, por exemplo, o final do conto traz a ideia de que um morto-vivo bate na porta do casal que desejou que seu filho falecido retornasse. Já o escritor H. P. Lovecraft explorou o tema do morto-vivo sob diferentes abordagens nos contos “Herbert West: Reanimador” (1921-1922), “Na catacumba” (1925), “O intruso” (1926) e “Ar frio” (1928). Todavia, no caso específico do Zumbi haitiano, contribuiu para a sua disseminação na América o fato de sua chegada ter se alinhado com a quebra da bolsa de valores de 1929 e a Depressão econômica dos anos seguintes. Assim, semelhante ao observado no Haiti, onde o Zumbi representa o medo da escravidão e a consequente perda da liberdade individual, na América dos anos trinta a insegurança trazida pela Grande Depressão, reduziu igualmente trabalhadores e empresários a mendigos sem perspectivas para o futuro e condenados a trabalhar longos anos sem descanso (RUSSELL, 2010, p. 46). Esse cenário fez com que o personagem se tornasse um dos monstros mais significativos do período, criando o simbolismo recorrente do Zumbi como reflexo do consumismo e da alienação que marca o Capitalismo. Essa crítica fica evidente no filme O despertar dos mortos (1978), segundo filme do universo de Zumbis do diretor George Romero. Na obra, os sobreviventes da repentina reanimação dos mortos se refugiam em um Shopping Center e descobrem que, mesmo após estarem mortos, os Zumbis continuam a perpetuar o ciclo de consumismo e vão instintivamente ao local. Mas foi o filme anterior de George Romero – A noite dos mortos vivos – lançado nos Estados Unidos em dois de outubro de 1968 que estabeleceu novos parâmetros para o personagem e para o próprio gênero Horror no cinema. Se até então a ida ao cinema para assistir a um filme com zumbis era uma programa para toda a família, com criaturas andando de braços esticados e que estrangulavam sua vítima, a partir do filme de Romero o público foi apresentado a um novo ser que não apenas contaminava suas vítimas com sua monstruosidade, mas também abraçava um dos maiores tabus da humanidade até então inédito na representação do Zumbi: o canibalismo. Não foi à toa, portanto, que as primeiras reações da imprensa a este novo nível de medo resultaram em artigos e editorias publicadas, por exemplo, nas revistas Variety e Reader’s Digest, para alertar aos pais sobre o choque e trauma que o filme poderia causar sobre as crianças (RUSSELL, 2010, p. 110), alertas que resultaram em um interesse ainda maior do público para conferir o Zumbi reimaginado no filme.

Destaque-se que em nenhum momento o roteiro de George Romero e John A. Russo, inspirado no romance Eu sou a lenda (1954), de Richard Matheson, identifica o morto-vivo canibal da película como Zumbi. Ainda que os personagens chamem as criaturas de ghouls, em alusão aos morto-vivos canibais do folclore árabe, a ligação com o Zumbi foi imediata. Chamou a atenção também o fato da película não localizar a reanimação dos mortos como produto do sobrenatural de base mística ou religiosa. Ao invés disso, o roteiro sugere que a radiação emanada da explosão de uma sonda que retornava de Vênus sobre o nosso planeta pode ter sido a causa do surgimento dos mortos-vivos. Com isso, A noite dos mortos vivos também promoveu o deslocamento do Zumbi do terreno do Horror para as fronteiras da Ficção Científica, de onde ele nunca mais saiu. A noite dos mortos vivos estabeleceu novos olhares sobre o Zumbi, trazendo uma realidade niilista em que noções de autoridade, heroísmo e estrutura social se esvaziam diante do caos trazido pelo personagem. O Zumbi se torna um espelho para a podridão do ser humano quando colocado em situações extremas, fazendo com que tanto as criaturas quanto os humanos que buscam sobreviver a qualquer custo se tornem ameaças igualmente perigosas. A morte do protagonista negro, único sobrevivente da casa sitiada pelos mortos-vivos, foi acidental ou seria ele apenas enxergado como uma variação do mesmo tipo de monstro no contexto de fim dos anos sessenta? Localizando o corpo humano como o maior objeto do Horror, a obra de George Romero sobre os mortos-vivos, seguida por outros filmes no período de 1968 até 2009, ampliou o simbolismo do Zumbi e exerceu influência em todos os filmes a partir de então.

Por fim, o quarto fator que explica a popularização tardia do Zumbi no território do Fantástico está na falta de consciência e vontade própria do Zumbi, o que limitou o potencial narrativo da criatura até a primeira metade do século XX. Conforme expresso em filmes como Zumbi branco, a criatura foi entendida como uma manifestação de medo do branco em relação ao negro no início do século XX (RUSHTON, MOREMAN, 2011, p. 1) e também como a incorporação dos efeitos da Depressão sobre o trabalhador norte-americano. Foi apenas a partir de 1968, com A noite dos mortos vivos, que o simbolismo do Zumbi começou a se ampliar, processo que se mantém até hoje. Assim, em 1972, quatro anos após A noite dos mortos vivos, Gilles Deleuze e Félix Guattari anunciam em O anti-Édipo (2010), ao analisarem a relação entre o capitalismo e o instinto de morte, que “O único mito moderno é o dos zumbis — esquizos mortificados, bons para o trabalho, reconduzidos à razão” (p. 445). Já para o crítico Peter Dendle em “Zombie Movies and the “Millenial Generation” (2011), o Zumbi é a representação artística do corpo humano e pode ser interpretado como um reflexo de noções alteradas de identidade na era da Internet: “Ele é o corpo animado na ausência (na maioria das vezes) de pensamento, paixão, intelecto, filosofia, história e cultura.” (p. 177). Da mesma forma, a representação tradicional do personagem pós-George Romero tem sido subvertida em diferentes áreas. No campo do Realismo Mágico, o romance Incidente em Antares (1971), de Érico Verissimo explora o lugar do Zumbi enquanto criatura capaz de denunciar a corrupção de sua sociedade estando além das normas que regem os vivos. Mais recentemente, a ficção slipstream tem proposto narrativas em que o Zumbi articula discursos que contestam valores e convenções sociais, algo observado em contos como “A case of the stubborns” (1984) de Robert Bloch e “Sea Oak” (1997) de George Saunders (DIAS, 2017). Na televisão, séries como iZombie (2015-2019), baseada na História em Quadrinhos homônima criada por Chris Roberson e Mike Allred e Santa Clarita Diet (2017-2019) exploram as convenções estabelecidas ao longo do século XX sobre o Zumbi em narrativas que abordam temas como identidade e o estilo de vida da classe média norte-americana.

REFERÊNCIAS

ASSIS JÚNIOR, A. de. Dicionário kimbundu-português: linguístico, botânico, histórico e corográfico: seguido de um índice alfabético dos nomes próprios. Luanda: Argente, Santos, 1923.
CHRISTIE, Deborah (2011). A Dead New World: Richard Mathesonand the Modern Zombie.. In: CHRISTIE, Deborah; LAURO, Sarah Juliet. (Eds). Better Off Dead: The evolution of the zombie as post-human. New York: Fordham University Press, p. 67-80, 2011.
CHRISTIE, Deborah; LAURO, Sarah Juliet (Eds.). Better Off Dead: The evolution of the zombie as post-human. New York: Fordham University Press, 2011.
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia, 1. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: 34, 2010. (Coleção TRANS).
DENDLE, Peter (2011). Zombie Movies and the “Millenial Generation. In: CHRISTIE, Deborah, LAURO, Sarah Juliet. (Eds). Better Off Dead: The evolution of the zombie as post-human. New York: Fordham University Press, p. 175-186, 2011.
INGLIS, David. Putting the Undead to Work: Wade Davis, Haitian Vodou, and the Social Uses of the Zombie. In: MOREMAN, Christopher M; RUSHTON, Cory James. (Eds.). Race, Oppression and the Zombie: Essays on Cross-Cultural Appropriations of the Caribbean Tradition. North Carolina: McFarland & Company, Inc, Publishers, p. 42-59, 2011.
KEE, Chera (2011). ‘They are not men… they are dead bodies’: From Cannibal to Zombie and Back Again. In: CHRISTIE, Deborah; LAURO, Sarah Juliet. (Eds). Better Off Dead: The evolution of the zombie as post-human. New York: Fordham University Press, p. 9-23, 2011.
MOREMAN, Christopher M; RUSHTON, Cory James. Introduction. In: MOREMAN, Christopher M; RUSHTON, Cory James (Eds). Race, Oppression and the Zombie: Essays on Cross-Cultural Appropriations of the Caribbean Tradition. North Carolina: McFarland & Company, Inc, Publishers, p. 1-12, 2011.
PIMENTA, Raul Dias. Entre Fronteiras: Gótico, Realismo Mágico e Slipstream. O zumbi que se alimenta de gêneros. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem)Universidade Federal de Goiás. Regional Catalão, Catalão, 2017. Disponível em: http://bit.ly/2W4qpmp. Acesso em 23 maio. 2019.
PULLIAM, June. Zombie. In: JOSHI, S. T (Ed). Icons of Horror and the Supernatural: An Encyclopedia of Our Worst Nightmares. Connecticut: Greenwood Press, p. 723-752, 2007.
RUSSELL, Jamie. Zumbis: O livro dos mortos. Tradução de Érico Assis e Marcelo Andreani de Almeida. São Paulo: Leya Cult, 2010.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

SEABROOK, William Buehler. A Ilha da magia: fatos e ficção. 2.ed. Tradução de Lauro S. Blandy. São Paulo: Hemus, 2010.
SKIPP, John, SPECTOR, Craig (1989). Introduction. In: SKIPP, John, SPECTOR, Craig (Eds). Book of the Dead. New York: A Bantam Book, p. 5-14, 1989.
SOUTHEY, Robert. História do Brasil, v. 3. São Paulo: Itatiaia, 1981.