Steampunk, também conhecido no Brasil como Retrofuturismo, é um tipo de ficção científica ambientado entre o final do século XIX e o início do XX, comumente relacionada aos períodos vitoriano e eduardiano ingleses, mas não exclusiva a esses. Trata-se de um universo hipotético onde a tecnologia a vapor evoluiu sobremaneira, dando origem a uma infinidade de novas invenções que impactaram a sociedade e a cultura. Nele, zepelins e trens ultra velozes, carruagens mecanizadas, maquinários insuflados de magia e autômatos inteligentes, entre outros assombros tecnológicos, científicos e arcanos, convivem com elementos culturais comuns às narrativas do período, como crítica ao imperialismo, exploração comercial, conflito de classes, embate entre ciência e misticismo e alusão a novos movimentos estéticos.
Embora alguns autores associem o steampunk com o conceito de “ucronia”, de um ponto onde a linha temporal teria divergido de seu rumo conhecido, outros leem o gênero de uma forma mais fluída, podendo tanto estar diretamente conectado com seu desvio temporal como também utilizar de seus elementos de uma forma meramente secundária. Expandindo essas e outras possibilidades, os críticos franceses Jacques Girardot e Fabrice Méreste (2006) a definem como uma “literatura de reciclagem”, podendo utilizar tanto elementos do passado histórico e tecnológico como da bagagem literária e ficcional para criar seus enredos. Já o brasileiro Bruno Accioly (2016), um dos fundadores do Conselho Steampunk no Brasil, o define simplesmente como “Ficção Científica do século XXI ambientada no século XIX utilizando tecnologia criada, inventada ou imaginada no século XX.”
De sua origem, muito se pode falar de sua relação com outro subgênero de ficção científica. Surgido nos Estados Unidos no início da década de 1980 como ficção e no final dela como nomenclatura, o steampunk é um indissociável do cyberpunk, não coincidentemente outro subgênero criado no mesmo período e não raro produzido pelos mesmos autores. Numa objetiva fórmula, se os autores do cyberpunk imaginaram como o futuro poderia ser, os escritores steampunk exploraram as possibilidades de como o passado poderia ter sido a partir de tecnologia diferente.
O pano de fundo comum dos dois gêneros se dá pelo fato dos três autores associados ao surgimento do steampunk terem também produzidos obras consideradas cyberpunk. Falamos de K.W. Jeter (1950), Tim Powers (1952) e James Blaylock (1950), três autores que compartilhavam dos mesmos interesses e de um similar fascínio pelo mesmo guru literário, Phillip K. Dick (1928-1982).
No final da década de 1970, os três jovens californianos viviam de produzir histórias de ficção científica distópicas. Nos finais de dia, entre recusas de originais e procura por trabalho, o trio se reunia no O’Hara’s Old Towne Pub, em Orange (Califórnia) para beber, revisar manuscritos e trocar ideias. O pub ainda existe e fica a poucos quilômetros da Chapman University, onde Blaylock e Powers são hoje professores. Foi lá que os primeiros três romances steampunks nasceram: Morlock Night (1979), de Jeter, Anubis Gates (1983), de Powers, e Homunculus (1986), de Blaylock.
O primeiro deles situa seu enredo em 1892, quando Mr. Edwin Hocker ouve sobre uma misteriosa Máquina do Tempo do enigmático Dr. Ambrose. Este revela a Hocker que o inventor original deixou o portal aberto – continuando indiretamente o enredo de A Máquina do Tempo, de H. G. Wells, e que agora a Londres vitoriana está na iminência de um ataque dos demoníacos Morlocks. O romance de Powers inicia no presente e joga o leitor numa viagem ao passado, precisamente ao ano de 1810, quando o milionário J. Cochran Darrow e o acadêmico e classicista Brendan Doyle vão ao passado para assistir a uma conferência de Samuel Taylor Coleridge e um deles é raptado por uma seita de feiticeiros egípcios. Por fim, Blaylock cria uma Londres mágica povoada por personagens insólitos e marcantes como o explorador e aventureiro Lagdon St. Ives, o neoevangelista Shiloh, o cientista Ignatio Narbondo e o milionário inescrupuloso Kelso Drake, personagens que voltariam a aparecer em outras obras do autor.
O que caracteriza esses três romances fundadores é uma revisão fantástica do passado permeada de críticas sociais e reflexões políticas sobre seus próprios dias. Como em outros casos célebres de ficção especulativa, os autores situarem suas histórias cem anos no passado para ficcionalmente tratarem de assuntos pertinentes aos seus próprios dias: o abuso de poder, a segregação de classes, os direitos das mulheres e dos marginalizados, os desafios/perigos da utilização irresponsável da tecnologia, sempre com um revisionismo histórico feito de baixo, a partir da perspectiva de classes que raramente foram os protagonistas da história tradicional.
No ano seguinte à publicação da última dessas obras, Jeter publicou Infernal Devices (1987), livro que consolidaria o novo estilo, apesar deste não ter ainda um título que comportasse sua produção. Esta ausência foi resolvida na seção de cartas da revista de ficção científica Locus, em abril de 1987, quando Jeter, respondendo à resenha de Faren Miller para Infernal Devices escreveu: “Pessoalmente, eu penso que fantasias vitorianas serão o próprio sucesso do momento, desde que tenhamos um termo adequado para o que eu, Powers e Blaylock fazemos. Algo que seja apropriado à tecnologia daquela época, algo como ‘steampunks’, talvez…”
O termo não só foi abraçado como veio a denominar obras tão diversas quanto The Difference Engine (1990) de Bruce Sterling e William Gibson – este também o autor do clássico do cyberpunk Neuromancer (1984) –, The League of Extraordinary Gentlemen (1999), de Alan Moore e Kevin O’Neill, Mortal Engines (2001), de Phillip Reeve, e Leviathan (2009) de Scott Westerfeld, entre tantas outras.
Sobre suas principais característica, podemos dizer que o steampunk literário apresenta uma dimensão social e crítica, de resistência às nobrezas ou às elites. Se eles partiriam do fascínio vitoriano pelo “steam”, uma postura “punk” ou de rebeldia social perpassa a produção do gênero. Tal postura de saída o afastaria da costumeira acusação que a literatura insólita recebe como mera fantasia “infanto-juvenil” ou “entretenimento escapista”. Mesmo compreendendo essas dimensões – e as abraçando abertamente – o steampunk propõe uma revisão crítica do passado a partir de preocupações sociais e posicionamentos ideológicos do presente, algo que implicitamente pode ser percebido e estudado em qualquer obra de arte. Mas no caso do steampunk, essa dimensão é explicitada, muitas vezes no próprio enredo.
Mesmo que seus personagens sejam nobres, burgueses ou intelectuais, estes serão confrontados à luta de classes, à percepção da alteridade desprivilegiada, e também a um novo papel exercido por personagens femininos, que não mais serão reduzidos a elementos depreciativos, idealizados ou vitimizados. A obra de historiadores sociais do século XIX, como Henry Meyhew e o seu London Labour and The London Poor (1840), deu aos autores californianos, e a boa parte daqueles que produziram obras retrofuturistas posteriores, uma visão pouco otimista da idealização vitoriana, hoje profundamente desgastada, demarcando assim as bases do que seria um gênero dedicado a um passado, mas a um passado repleto de fuligem irritante, prostitutas sifilíticas, gangues infantis famintas e violentas e variados párias sociais.
Brian J. Robb, refletindo sobre a flexibilidade do gênero steampunk, reforça justamente o caráter múltiplo e instigante de suas aventuras, que não compreendem mais limitações de gênero, tempo ou espaço. Aludindo a Mary Shelley, esta comumente citada, ao lado de Júlio Verne e H.G. Wells como antepassados do gênero, Robb afirma:
A construção frankensteiniana da própria palavra steampunk reflete a grande quantidade de obras que podem ser alocadas sob o mesmo conceito: é um mash-up, um pastiche do cyberpunk que pode ser usado dos mais variados modos, mas que sempre leva o leitor a uma ideia mais genérica do que irá encontrar. Trata-se de uma única palavra que compreende diferentes graus do que a audiência perceberá como algo aplicado a várias coisas, não apenas a literatura, mas a filmes, quadrinhos, jogos, moda, arte e até música. (2012, p. 49)
É como se o steampunk como estética funcionasse como um caleidoscópio ficcional, histórico e crítico, não apenas filtrando a realidade do mundo, da tecnologia e da cultura ou as realidades dos textos, como também distorcendo, alterando e recriando esses elementos, produzindo assim, diante da vista do observador, uma imagem igualmente revisionista e futurista, no sentido de alteração do presente e da percepção do passado, para nos levar a outra construção do futuro. Bruce Sterling, no ensaio “The User’s Guide to Steampunk”, afirma: “As lições mais importantes do steampunk não são a respeito do passado. Antes, são sobre a instabilidade e a impermanência do nosso próprio tempo” (Ibiden WanderMeer, 2011, p. 13).
Em inglês, livros críticos de referência sobre o tema são Steampunk: An illustrated history of fantastical ficcion, fancivul film and other victorian visions (2012), de B. J. Robb, Steampunk – The art of victorian futurism (2011), de Jay Strongman, e a Steampunk Magazine, publicada entre 2011 e 2016 e disponível on-line. Além desses, há o obrigatório Steampunk Bible – An illustrated guide to the world of imaginary airships, corsets and goggles, mad scientists, and strange literature (2011), de Jeff VanderMeer e S. J. Chambers. VanderMeer retornou ao tema com Desirina Boscovich, para produzir também Steampunk User’s Manual – An illustrated practical and Whimsical guide to creating retro-futurist dreams (2014). Em francês, destacamos o artigo de Girardot e Méreste “Le steampunk: une machine littéraire à recycler le passé”, publicado na revista Cycnos.
Em nosso país, o steampunk também tem recebido atenção crítica. Há o livro de Everly Pegoraro, No compasso do tempo steampunk: A visualidade de uma cultura urbana retrofuturista (Paco Editorial, 2015), entre outros artigos de sua autoria, e a coletânea de textos organizada por Mônica Rebecca Ferrari Nunes Cosplay, steampunk e medievalismo: memória e consumo nas teatralidades juvenis (Editora Sulina, 2017). Esses dois livros são importantes por analisarem o steampunk em outros âmbitos além do literário, com especial ênfase para a formação de clubes e associações dedicados ao tema, como o Conselho Steampunk e eventos de fãs, como é o caso da Steam Con de Paranapiaca, que vai pra sua 6ª edição em 2019 e a Steampunk Santos. Sobre o romance steampunk A Lição de Anatomia do temível dr. Louison (Leya, 2014) há dois artigos de autoria de Bruno Anselmi Matangrano e de Anderson Amaral de Oliveira e Lizandro Carlos Calegari, o primeiro publicado no periódico Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea 48 e o segundo no periódico Abusões 7. Por fim, destacamos o capítulo “Viagem a um passado futurista: o steampunk”, presente em Fantástico Brasileiro: O Insólito Literário do Romantismo ao Fantasismo, de Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares (Arte & Letra, 2018).
Quanto à produção ficcional, o Brasil também se destaca pela grande quantidade de romances e coletâneas dedicadas ao gênero. A primeira obra nacional associada a este modo narrativo foi a coletânea Steampunk: Histórias de um Passado Extraordinário (Tarja Editorial, 2009), livro citado no Steampunk Bible de VanderMeer e Chambers. Esta foi seguida por outras coletâneas, como VaporPunk: Relatos Steampunk Publicados sob as Ordens de Suas Majestades (Draco, 2010), SteamPink (Editora Estronho, 2011), Retrofuturismo (Tarja, 2013), coletânea que também contempla outras modalidades do gênero, como o stonepunk, o clockpunk e o dieselpunk, entre outras vertentes. A essas foram seguidas Deus Ex Machina: Anjos e Demônios na Era do Vapor (Editora Estronho, 2013), Erótica Steampunk: Por Trás da Cortina de Vapor (Editora Ornitorrinco, 2013) e VaporPunk: Novos Documentos de uma Pitoresca Época Steampunk (Draco, 2014). Ainda se destaca as noveletas da série Crônicas Póstumas e Charlotte Ventura, produzidas por Bruno Accioly.
De narrativas longas, há O Baronato de Shoah: A Canção do Silêncio (Draco, 2011), de José Roberto Vieira, e sua continuação, A Máquina do Mundo (Draco, 2014), Homens e Monstros: A Guerra Fria Vitoriana (Draco, 2013), de Flavio Medeiros Jr., e Le Chevalier e a Exposição Universal (AVEC, 2015), de A. Z. Cordenonsi. Em 2014, o steampunk chegou a grandes editoras com A lição de anatomia do temível dr. Louison, de Enéias Tavares, obra prometida como primeiro volume da série Brasiliana Steampunk, projeto transmídia que desde então lançou quadrinhos, jogos, portal digital e que tem uma série audiovisual em produção. Por fim, foi lançado Guanabara Real: A Alcova da Morte (Avec, 2107), de Tavares, A. Z. Cordenonsi e Nikelen Witter, romance que deve receber continuação em breve.
Hoje, se discute se, ao falarmos de steampunk, falamos de um subgênero literário ou de uma estética ou movimento cultural. Essa dúvida se dá pelo inegável impacto que o retrofuturismo exerceu e exerce sobre grupos de fãs, artistas e produtores culturais, não necessariamente envolvidos com produção literária. Presente em filmes, séries de televisão, quadrinhos, desfiles e designs de moda e jogos analógicos e digitais, o steampunk continua a reciclar o passado e o futuro, aglutinando-os numa forma narrativa e ficcional que tem despertado a atenção de consumidores e produtores.
REFERÊNCIAS
JETER, K. W. Morlock Night. Oxford: Angry Robot, 2011.
ROBB, Brian. J. Steampunk: An illustrated history of fantastical ficcion, fancivul film and other victorian visions. Voyageur Press, 2012.
VANDERMEER, Jeff; CHAMBERS, S.J. Steampunk Bible: An illustrated guide to the world of imaginary airships, corsets and goggles, mad scientists, and strange literature. New York: Abrams Image, 2011.
VANDERMEER, Jeff; BOSKOVICH, Desirina. Steampunk User’s Manual: An illustrated practical and Whimsical guide to creating retro-futurist dreams. New York: Abrams Image, 2014.
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
CALEGARI, Lizandro Carlos; OLIVEIRA, Anderson Amaral. Um personagem, dois mundos: Isaías Caminha em 1909 e em 2014. Revista Abusões, v. 7, p. 230-252, 2018.
GIRARDOT, Jean-Jacques; MÉRESTE, Fabrice. Le steampunk: une machine littéraire à recycler le passé. Nice: Cynos, v. 22, n. 1, p. 1-11, 2006.
MATANGRANO, Bruno Anselmi. O olhar contemporâneo na releitura do moderno: A lição de anatomia do temível Dr. Louison. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, v. 48, p. 247-280, 2016.
PEGORARO, Éverly. No compasso do tempo steampunk: A visualidade de uma cultura urbana retrofuturista. São Paulo: Paco Editorial, 2015.
POWERS, Tim. Introduction. In: JETER, K. W. Morlock Night. Oxford: Angry Robot, 2011.
ROBERTS, A. K. W. Jeter Morlock Night. In: JETER, K. W. Morlock Night. Oxford: Angry Robot, 2011.
STRONGMAN, Jay. Steampunk: The Art of Victorian Futurism. London: Korero, 2011.