SALMAN RUSHDIE – ficcionista

Shirley Carreira

O primeiro livro de Salman Rushdie, intitulado Grimus (1975), não obteve sucesso, mas já continha a semente do que viria a se tornar sua marca registrada: a inusitada mistura entre o romance histórico e o realismo mágico (AMANUDDIN, 1989). O romance, que aborda de forma insólita questões cruciais como o hibridismo, o exílio e a transexualidade, tem como protagonista o ameríndio Flapping Eagle, que, expatriado, cai em “um buraco no mar” durante uma viagem de barco e é transportado a um outro universo no qual se encontra a ilha Calf, habitada por imortais.

Em Filhos da meia-noite, publicado em 1981, a história da Índia é revisitada a partir do entrelaçamento entre os fatos históricos e a vida pessoal do protagonista, Saleem Sinai, que, por ter nascido à meia-noite do dia da independência do país, foi agraciado com um poder sobrenatural, a telepatia, por meio do qual se comunica com todas as outras crianças nascidas em horário próximo e igualmente dotadas de dons insólitos.

O romance Shame (1983), que revisita a história do Paquistão, também contém elementos insólitos, dentre os quais o mais marcante é a condição da personagem Sufiya Zinobia, que simboliza o Paquistão após a Partição, conforme Newel sinaliza no seguinte excerto:

Rushdie tem domínio do grotesco. Sufiya Zinobia, uma versão fantástica de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, funciona como uma imagem metafórica para o Paquistão. […] Uma criação distorcida de sua mãe mulçumana sonhadora, Bilquis, e de seu pai, Raza, Suiya simboliza o milagre errado, que é o Paquistão moderno. Rushdie descreve o Paquistão como “um duelo entre duas camadas de tempo, o mundo obscurecido forçando seu caminho de volta através do que lhe fora imposto. O Paquistão, o palimpsesto que se descasca e fragmenta, cada vez mais em guerra consigo mesmo, pode ser descrito como um fracasso da mente sonhadora […] “um milagre que não deu certo” […]. Como Sufiya, cujas batalhas contra si mesma aumentam à medida que o livro avança, o Paquistão tem “um passado que se recusa a ser suprimido, que batalha diariamente com o presente”. (NEWEL, 1991, s.p., tradução nossa)

No romance, o corpo da personagem tem uma temperatura anormal desde a infância; é excessivamente quente e ruborizado. Na realidade, a personagem absorve a vergonha que outros deveriam sentir e, à medida que sua família vai se envolvendo em situações vergonhosas, sem demonstrar preocupação com o efeito de seus atos, um monstro começa a desenvolver-se dentro dela. Já adulta e casada, tenta matar o marido que frequentemente a traía e passa a ser mantida em cativeiro e em sedação. Quando, finalmente, consegue fugir, surge a lenda de uma pantera branca assassina. Ao final do romance, incapaz de conter a besta dentro da bela, seu corpo explode em combustão.

Em Versos satânicos (2008), dois atores indianos muçulmanos sobrevivem a um atentado à bomba em um avião, literalmente caindo do céu. Após a queda, na Inglaterra, um deles desenvolve chifres, cascos e um rabo, e o outro cria um halo e sonha em conhecer Maomé. O romance causou uma forte reação por parte de extremistas muçulmanos, culminando não apenas com a proibição de venda em diversos países, como também na publicação de uma fatwa (decreto religioso), por parte do Aiatolá Khomeini, líder religioso supremo do Irã, pedindo a execução do escritor, que foi obrigado a viver dez anos escondido e sob proteção policial.

A metamorfose em obras literárias, bastante presente nos romances de Rushdie, remonta à literatura latina, tendo como marco as Metamorfoses, de Ovídio, que, ao longo dos séculos, foram frequentemente retomadas com diferentes propósitos.

Segundo Peter Brigg (2008), por meio dos elementos insólitos, Rushdie passa de uma desordem do mundo real para uma “ordem” que se concretiza no âmbito do fantástico. Essa dinâmica de trânsito entre mundos, ordenações e esferas faz com que a obra do autor continue a ser exaustivamente estudada quatro décadas após o lançamento de seu primeiro best-seller.


REFÊRENCIAS

AMANUDDIN, Syed. The Novels of Salman Rushdie: Mediated Reality as Fantasy. World Literature Today. 63: 1, p. 42-45, 1989.
BRIGG, Peter. Salman Rushdie’s novels: The disorder in fantastic order. World literature written in English. v. 27, p. 119-130, 1987.
NEWEL, Josh. The Grotesque and Post-Colonialism in Shame. 1991. Disponível em: http://www. postcolonialweb.org/pakistan/literature/rushdie/srgrotesq.html. Acesso em 20 jun. 2016.
RUSHDIE, Salman. Grimus, New York, Toronto: Modern Books Library, 2003, [1975].
RUSHDIE, Salman. Shame. NY: Picador USA, 1983.
RUSHDIE, Salman. Versos satânicos. Tradução de Misael H. Dursan. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

CARREIRA, Shirley de S. G. Entre humanos e bestas: o insólito ficcional em The great god pan e Shame. Ilha do Desterro. Florianópolis, v. 70, n. 1, p. 091-101, 2017.
CARREIRA, Shirley. O insólito em Shame, de Salman Rushdie. In: GARCIA, Flávio, MICHELLI, Regina; PINTO, Marcello O. Poéticas do Insólito. Conferências e Palestras do I-II Painel “Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional”: o insólito na literatura e no cinema. Rio de Janeiro: Dialogarts. p. 58-63, 2008.
CARREIRA, Shirley. Questões pós-coloniais em Grimus, de Salman Rushdie. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades, Duque de Caxias, v. 4, n. 15, p. 1-11, 2008.
GOONETILLEKE, D.C.R.A. Salman Rushdie. London: Macmillan, 1998.
KLUWICK, Ursula. Exploring Magic Realism in Salman Rushdie’s Fiction. New York: Routledge, 2011.