MADAME D’AULNOY – ficcionista

Paulo César Ribeiro Filho

Marie-Catherine Le Jumel de Barneville, Madame d’Aulnoy (1652-1705), nasceu em Barneville-la-Bertran, comuna a noroeste da França, situada no atual departamento de Calvados, na região da Normandia. Casou-se em 8 de março de 1666, aos trezes anos, com François de la Motte, que adquirira o baronato da comuna de Aulnoy, em Brie, na região da Île-de-France, em 13 maio de 1654.

A primeira associação de um certo tipo de narrativa fantasista ao rótulo “conto de fadas” se deu no século XVII francês, procedimento empreendido por Marie-Catherine. Em 1697, Madame d’Aulnoy atribui o título Contos de Fadas (Contes des Fées) ao seu primeiro compêndio de histórias feéricas publicado em Paris. A escritora também responde pela autoria do primeiro conto de fadas literário de que se tem notícia, “A Ilha da Felicidade”, episódio de natureza fantasista presente em seu romance de estreia, História de Hipólito, Conde de Duglas, publicado em 1690.

Apenas quatro homens teriam contribuído com a cultura dos contos de fadas ao longo dos dez anos de voga do gênero: Charles Perrault (1628-1703), François Nodot (1650-1710), Jean de Préchac (1647-1720) e Louis de Mailly (1657?-1724). Sophie Raynard (1999) ressalta que esse era um gênero majoritariamente feminino e destaca os nomes de Marie-Catherine Le Jumel de Barneville, a Madame d’Aulnoy, Charlotte-Rose de Caumont de La Force (1654-1724), Marie-Jeanne L’Héritier de Villandon (1664-1734), Catherine Bernard (1662-1712) e Henriette-Julie de Castelnau de Murat (1670-1716); enfatiza, porém, que, dentre elas, a Madame d’Aulnoy “era, de longe, a mais prolixa do gênero” (RAYNARD, 1999, p. 58, tradução nossa). Ao todo, Marie-Catherine assinara 24 narrativas feéricas — 15 presentes em Contos de Fadas e mais 9 em Novos Contos ou A Moda das Fadas, segundo compêndio da autora, publicado em 1698. Marina Warner (1999, p. 13) apresenta a escritora como “uma das maiores entusiastas da nova moda literária”, enquanto Roger Chartier (2004, p. 267) destaca que Madame d’Aulnoy foi uma das autoras mais assediadas pelos impressores franceses na França pré-revolucionária.

À época do lançamento de sua “obra-prima”, os Contos de Fadas, de 1697, Madame d’Aulnoy teria sido a anfitriã de um seleto círculo social em sua casa, na rua Saint-Benôit (ROCHE-MAZON, 1930, p. 123). Sophie Raynard (2002, p. 61-62) corrobora a afirmação, adicionando que, uma vez instalada em Paris, Madame d’Aulnoy recebera figuras insignes em seu salão domiciliar, entre eles Marie-Anne de Bourbon (1666-1739), princesa de Conti, filha de Luís XIV, a quem muitos tomos de contos de fadas foram dedicados.

Ítalo Calvino atesta que Madame d’Aulnoy funda e cultiva uma tradição literária cujo “clima” é “totalmente diferente” daquela fundada por Perrault: em d’Aulnoy, “o ‘maravilhoso’ domina com grande pompa, à base de diamantes e esmeraldas, dragões e grifos, berlindas puxadas por macacos azuis e salas atapetadas com asas de borboleta” (CALVINO, 1999, p. 134).

A respeito da natureza e do público-alvo dos contos de fadas de d’Aulnoy, Michael Levy e Farah Mendlesohn (2016, p. 15, tradução nossa) postulam que suas narrativas são “tanto de sua própria criação quanto muito claramente destinadas a adultos”. Os estudiosos também sugerem que, ao contrário dos contos de Perrault, aparentemente destinados ao leitor infantil, as demais coleções de contos de fadas de autoria feminina eram consideradas “obras mais sérias”, endereçadas a adultos, das quais as crianças e pessoas de baixa patente eram excluídas e não se viram representadas. Marie-Agnès Thirard (1994, p. 165, tradução nossa) constata que “em Madame d’Aulnoy, o conto de fadas perde todo o seu apelo popular”, já que, segundo Jack Zipes, eles eram claramente “endereçados a leitores das classes altas” (ZIPES, 2021, p. xiii, tradução nossa). Zipes ainda enfatiza tal endereçamento ao verificar que, diferentemente dos contos de apelo mais popular de Perrault, os contos de Madame d’Aulnoy “concebiam mundos pagãos nos quais a majestade extraordinária das poderosas fadas ditava a palavra final” (ZIPES, 2021, p. xiii, tradução nossa). O pesquisador arremata suas constatações salientando que Marie-Catherine d’Aulnoy “estava exclusivamente interessada nas classes aristocráticas” (ZIPES, 2021, p. ix, tradução nossa).

Pertine enfatizar que o tipo de narrativa à qual Marie-Catherine d’Aulnoy atribui título de “conto de fadas” deve ser compreendido literalmente como “conto sobre fadas”, ou seja, um conto de fadas stricto sensu, visto que suas composições são histórias a respeito de fadas, tramas protagonizadas por tais personagens ou com algum grau de interferência feérica. Madame d’Aulnoy atribuiu um rótulo ao gênero com base em uma poética própria que privilegiava o maravilhoso feérico e a onipotência das fadas. Uma vez popularizado por intermédio das reedições e traduções dos livros de Madame d’Aulnoy, o termo “conto de fadas” passou a ser considerado sinônimo de um determinado modo de narrar, ou, por assim dizer, de toda uma literatura marcada pela presença do elemento maravilhoso, com ou sem fadas.

Constata-se que alguns dos princípios composicionais mais caros à poética de Madame d’Aulnoy estão em consonância direta com o seu lugar de fala: o de uma dama letrada em pleno século XVII, época em que a organização de um sistema educacional formal e laico para mulheres encontrava-se em processo de estabilização. Partilhando de ideais sociais, econômicos e políticos caros à doutrina absolutista, Madame d’Aulnoy reentroniza seus protagonistas da realeza em tramas de restauração (aquelas que narram a retomada de poder de uma figura da realeza), com clara interdição a episódios de ascensão social. O protagonismo feminino aliado à defesa do casamento por amor evidencia o alinhamento de Madame d’Aulnoy a pautas progressistas que são admitidas pelos demais personagens masculinos sem grande resistência. Nesse sentido, entende-se que a autora transita nas margens dos contratos sociais vigentes, apegando-se à virtuosidade e à inteligência das mulheres como pilares que embasam o questionamento e a superação de entraves sociais e emocionais pressupostos pelos casamentos arranjados e pela ideia da total submissão da esposa ao marido.

No outono de 1704, Luís XIV enviou a Madame d’Aulnoy uma gratificação no valor de mil e quinhentas libras, montante que a autora talvez não tenha recebido, dado seu falecimento em 13 de janeiro de 1705, aos 52 anos (SCHRÖDER, 2020). Com uma reputação literária solidificada, Marie-Catherine pôde desfrutar de reconhecimento e prestígio advindos da exitosa carreira como escritora (JASMIN, 2008, p. 11). Não há informações sobre a causa de sua morte.

REFERÊNCIAS

CALVINO, Ítalo. Sobre o Conto de Fadas. Tradução de José Colaço Barreiros. Lisboa: Teorema, 1999.
CHARTIER, Roger. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora Unesp, 2004.
JASMIN, Nadine. Naissance du conte fémenin: Madame d’Aulnoy. In: AULNOY, Marie-Catherine Le Jumel de Barneville. Contes de fées. Édition critique établie par Nadine Jasmin. Paris: Honoré Champion, 2008.
LEVY, Michael; MENDLESOHN, Farah. Children’s Fantasy Literature: An Introduction. United Kingdom: Cambridge University Press, 2016.
RAYNARD, Sophie. La seconde Préciosité: floraison des conteuses de 1690 à 1756. Tübingen: Gunter Narr Verlag, 2002.
RAYNARD, Sophie. Preciosity and representations of the feminine in fairy tales from Charles Perrault to Mme Leprince de Beaumont. Nova York: Columbia University Press: 1999.
ROCHE-MAZON, Jeanne. En marge de “l’Oiseau bleu”. L’Artisan du livre: Paris, 1930.
SCHRÖDER, Volker. Madame d’Aulnoy’s productive confinement. In: Anecdota – Rare texts and images from early modern France. Postado em 2 de maio de 2020.
THIRARD, Marie-Agnès. Les contes de fées de Madame d’Aulnoy, une écriture de subversion. Lille: Atelier National de Reproduction des Thèses, 1994.
WARNER, Marina. Da Fera à Loira: sobre contos de fadas e seus narradores. Tradução de Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ZIPES, Jack. Introduction. In: AULNOY, Madame d’ (Marie-Catharine). The Island of Happiness: Tales of Madame d’Aulnoy. Tradução de Jack Zipes. Ilustrações de Natalie Frank. Princeton: Princeton University Press, 2021.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

BARCHILON, Jacques. Le conte merveilleux Français de 1690 à 1790: Cent ans de féerie et de poésie ignorées de l’histoire littéraire. Genève: Slaktine Reprints, 2014.
BOTTIGHEIMER, Ruth B. Fairy Godfather: Straparola, Venice and the Fairy Tale Tradition. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2002.
COELHO, Nelly Novaes. O Conto de Fadas: Símbolos – Mitos – Arquétipos. 4ª.ed. São Paulo: Paulinas, 2012.
DEFRANCE, Anne. Les contes de fées et les nouvelles de Madame d’Aulnoy (1690-1698) – L’imaginaire féminin à rebours de la tradition. Genève: Librairie Droz S. A., 1998.
GONTIER, Fernande. Histoire de la Comtesse d’Aulnoy. Paris: Perrin, 2005.
HANNON, Patricia. Fabulous Identities: women’s fairy tales in Seventeenth-century France. Amsterdam/Atlanta: Rodoni, 1998.
JYL, Laurence. Madame d’Aulnoy ou la fée des contes. Paris: Éditions Robert Laffont, 1989.