No início da carreira, em 1970, a escritora inglesa Angela Carter (1940-1992) publicou dois livros infantis: Miss Z, The Dark Young Lady e The Donkey Prince. Jack Zipes define essas obras como contos de fadas feministas para jovens (e velhos) leitores (ZIPES, 1986, p. 37). Esses livros têm sido praticamente esquecidos por seus críticos. Zipes, rara exceção entre eles, afirma que as duas histórias têm sido negligenciadas pelos críticos, mas são muito significativas porque lançaram as bases para a obra futura de Carter e revelam alguns de seus conceitos básicos a respeito da tradição revisionista dos contos de fadas (ZIPES, 2001, p. 159).
Zipes (2001) enfatiza ainda que Carter apela para a sabedoria e o humor dos jovens leitores nessas duas histórias escritas especificamente para crianças. Zipes afirma que Carter demonstra respeito pelas crianças ao brincar com os enredos tradicionais dos contos de fadas e com uma linguagem que chama atenção cuidadosa aos detalhes. Segundo o pesquisador, Carter criticava o modo como os contos de fadas são simplificados para as crianças: ela exorta os jovens leitores a se libertarem da bagagem tradicional de contos de fadas ultrapassados, dos motivos gastos de princesas passivas e príncipe ousado, para que vejam o mundo de modo diferente.
De fato, o enredo de The Donkey Prince mostra a veia revisionista de Carter. Uma rainha recebe do pai uma maçã mágica como presente de casamento. A maçã deve ser mantida em segurança para que a rainha nunca perca sua beleza ou adoeça. Um dia, ela encontra um asno, que lhe pede a maçã, mas ela a nega. O asno fica triste pela resposta e explica à rainha que ele e seus companheiros em forma de asno são de fato “Brown Men of the Hills” (“Homens Marrons das Colinas”) que haviam sido transformados em asnos pelo pai da rainha por um encantamento cruel depois que o filho do agora asno o ferira acidentalmente com uma flecha enquanto caçava. Se a rainha tivesse lhe dado a maçã do pai por vontade própria porque ele necessitava, os asnos teriam voltado à sua forma natural quando ele desse a primeira mordida.
A rainha, arrependida, fica sabendo que o único jeito de ajudar os Homens Marrons é adotar um potrinho chamado Bruno e criá-lo como seu filho. Bruno é adotado e criado como príncipe. Um dia, a rainha perde a maçã mágica e fica gravemente doente. Um “Wild Man from the Savage Mountain” (“Homem Selvagem da Montanha Selvagem”) havia encontrado a maçã e a levado consigo. Bruno corajosamente decide sair sozinho para reaver a maçã mágica a fim de que sua mãe se restabeleça de saúde.
No caminho, Bruno encontra Daisy, uma “garota trabalhadora”, que conhece um ou dois truques e passa a ser a protagonista da história. Ela guia o asno para a Montanha Selvagem onde encontram um Homem Selvagem enorme chamado Hlajki que fica amigo deles e lhes diz que a maçã mágica está em posse de Terror, o líder dos Homens Selvagens, que os mataria, mas não devolveria a maçã a Bruno. É então que Daisy passa a exercer seu protagonismo, dizendo que vão conseguir a maçã usando a astúcia: “uma garota trabalhadora sabe usar sua perspicácia” (ZIPES, 1986, p. 68). Ela então usa o manto dourado do arreio de Bruno parar se arrumar como uma bela princesa. Chegam à aldeia dos Homens Selvagens e Daisy diz a Terror que é mágica.
No início, Terror não fica impressionado com seus truques e diz a ela que não lhe dará nada se ela não conseguir surpreendê-lo. Então Daisy os encanta com a música de uma flauta de madeira. Terror lhe dá a maçã, mas depois tenta matá-los quando descem a montanha. Eles atravessam fogo e água para salvar uns aos outros e também a maçã. São resgatados pelo Rei do Oeste, que começara toda a história e os deixa ver o futuro num espelho mágico.
Bruno volta a ser príncipe e ele e Daisy se casam. Os Homens Marrons, também transformados, voltam para suas montanhas onde se dedicam à horticultura em vez de caçar. Daí em diante, sempre tratam os animais de carga como iguais. Há uma revolução na Montanha Selvagem e Terror é banido. Hlajki torna-se o novo líder e sob sua influência eles se tornam mais gentis, construindo casas de madeira e palha e usando garfo e faca. O texto termina dizendo que tudo aconteceu há muito tempo, em outro país, e nada é igual agora, naturalmente.
Dessa forma, Daisy é quem toma as iniciativas, pensa, arma os planos, enfim, representa o senso prático. É ela quem desencanta o príncipe, fazendo com que volte à forma humana. Para Zipes, Daisy é uma representante da diferença, uma garota astuta, que comanda uma busca e chega a um final bem sucedido (ZIPES, 2001, p. 163). Zipes observa que Carter recupera a tradição dos contos folclóricos com o motivo do noivo-animal, remetendo a Apuleio (O asno de ouro) e Perrault (Pele de asno). Zipes também vê em Daisy uma Cinderela rebelde e independente. Para Zipes, em The Donkey Prince, Carter enfatiza o respeito mútuo, a cooperação e a coragem: transforma o conto tradicional do noivo-animal (que enfoca o casamento e o restabelecimento do poder masculino) em uma narrativa que celebra a diferença e a coexistência harmônica da diferença.
REFERÊNCIAS
ZIPES, J. Crossing Boundaries with Wise Girls: Angela Carter’s Fairy Tales for Children. In: ROEMER, D. M., BACCHILEGA, C. (Ed.). Angela Carter and the Fairy Tale. Detroit: Wayne State UP, 2001. p. 159-166.
ZIPES, J. Don’t Bet on the Prince: Contemporary Feminist Fairy Tales in North America and England. Aldershot: Gower, 1986.