Os diferentes entendimentos do duplo conduzem à compreensão da natureza dos vários gêneros textuais, os quais dão forma aos temas da duplicação. Por essa perspectiva, grosso modo, perfilam-se narrativas de três naturezas: mítica e/ou religiosa, filosófica e literária. Essa compreensão é antes guiada pelo didatismo que classifica as ocorrências pela sua frequência, que pelo seu conjunto, situação que reúne fenômenos cujas naturezas escapam dessa taxionomia por abrigarem a ideia de duplicidade em outras chaves interpretativas, como a que considera o desdobramento do ser enquanto instância da criação poética ou dramática, a exemplo do conceito de outridade de Octavio Paz, em O arco e a lira (1956, 1982), que diz respeito ao eu que se instala no discurso poético, ou do estudo da relação do duplo no teatro, presente em O teatro e seu duplo (1938, 2006) de Antonin Artaud, dentre outras tantas concepções de duplo.
Tomando como parâmetro a origem do desdobramento do indivíduo, Carla Cunha (2009, 2021) apresenta duas categorias de bipartição do eu: o duplo endógeno e o duplo exógeno. A primeira nasce na própria interioridade do ser e configura-se como “sombra”, “fantasma”. A segunda surge do reconhecimento de uma individualidade externa ao “eu”, autônoma, que atua como projeção dele. Nas duas formas de duplicação, o “eu” passa a individualizar o seu duplo, o qual “adquir[e] existência própria”. Nesse estágio, o eu encontra no duplicado certos traços com os quais se identifica e outros dos quais se diferencia. Sobretudo as dessemelhanças podem gerar conflitos na relação entre os pares e, por conseguinte, produzir tanto a rejeição ao duplo, quanto um desejo de complementaridade, na medida que o outro porta aquilo que lhe falta
Para avançar a reflexão acerca desses desdobramentos do sujeito inscritos no arcabouço cultural, convém conhecer primeiro a figuração do duplo em algumas narrativas primordiais – conjuntura em que o estatuto mítico lhes é intrínseco – e em diferentes registros ao longo dos tempos até atingir as discussões do duplo na contemporaneidade, com o fito de conhecer os modos de inscrição ou não do insólito nesses discursos.
REFERÊNCIAS
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo (1938). Tradução de Teixeira Coelho. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Coleção Tópicos).
CUNHA, Carla. Duplo. In: CEIA, Carlos (Org.). Dicionário de termos literários. 2009. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/duplo/. Acesso em 20 mar.2021.
PAZ, Octavio. O arco e a lira (1956). Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
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JAVIER, Francisco. O tema do duplo no teatro: Defilippis Novoa, Artaud, Genet. Urdimento: Revista de estudos em artes cênicas, v. 1, n. 3, p. 48-57, 2000.
JOURDE, Pierre; TORTONESE, Paolo. Visages du doubles. Un thème littéraire. s.l.: Éditions Nathan, 1996.
LAMAS, Berenice Sica. Lygia Fagundes Telles: imaginário e a escritura do duplo. Porto Alegre: 2002. Tese (Doutorado em Literatura) 275 fls. Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002.
MIELIETINSKI, E. M. A poética do mito (1976). Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
TYMMS, Ralph. Doubles in Literary Psychology. Cambridge: Bowes and Bowes, 1949.