DUPLO – origem e constituição

Aurora Gedra Ruiz Alvarez

Há muito a temática do duplo está presente nas manifestações culturais tanto do Ocidente quanto do Oriente. No entanto, somente nos meados do século XX, ela recebe maior atenção de estudiosos de distintas áreas do saber (Psicanálise, Mitologia, Filosofia, Antropologia, Teoria da Literatura etc.), interessados em conhecer a sua origem, natureza e modos de relação entre os pares.O duplo resulta do desdobramento do próprio ser ou da sua projeção em outra entidade. Esse evento pode estar ou não associado ao insólito, questão que norteia este verbete.As incidências de duplicidade estão geralmente relacionadas à percepção que cada cultura (e cada época de uma cultura) tem desse fenômeno; daí a exigência de uma pesquisa que apreenda algumas das modalidades mais comuns e um tratamento que atenda às especificidades de cada uma delas. Sendo assim, este verbete abriga vários links que procuram dar uma visão um pouco mais ampliada acerca desse assunto.A percepção dos povos primitivos se ancora no arcabouço mítico-folclórico, que acolhe a temática do duplo nas cosmogonias. Com a evolução das sociedades antigas, comparece um elemento novo no duplo – o insólito –, que vai complexificar, por vezes, temporariamente a existência dos seres que se sentem duplicados. Essa relação bipartite, entretanto, conhece, em outros casos, articulações de contínuo conflito em alguns textos já na tragédia clássica (Édipo Rei, por exemplo) e prolifera especialmente a partir do final do século XIX e começo do XX, quando ocorre um grande desenvolvimento sociocultural e surgem os primeiros estudiosos interessados em pesquisar o duplo nesse período. Intelectuais de formações distintas discutem esse fenômeno, analisando personagens tanto do Folclore, da Mitologia, quanto da Literatura de seu tempo. Sob o enfoque desses teóricos, quase sempre, o desdobramento do “eu” passa a ser compreendido como oriundo da psique do indivíduo; portanto, diz respeito à percepção particular de um sujeito acerca de acontecimentos da sua vida. 

Os diferentes entendimentos do duplo conduzem à compreensão da natureza dos vários gêneros textuais, os quais dão forma aos temas da duplicação. Por essa perspectiva, grosso modo, perfilam-se narrativas de três naturezas: mítica e/ou religiosa, filosófica e literária. Essa compreensão é antes guiada pelo didatismo que classifica as ocorrências pela sua frequência, que pelo seu conjunto, situação que reúne fenômenos cujas naturezas escapam dessa taxionomia por abrigarem a ideia de duplicidade em outras chaves interpretativas, como a que considera o desdobramento do ser enquanto instância da criação poética ou dramática, a exemplo do conceito de outridade de Octavio Paz, em O arco e a lira (1956, 1982), que diz respeito ao eu que se instala no discurso poético, ou do estudo da relação do duplo no teatro, presente em O teatro e seu duplo (1938, 2006) de Antonin Artaud, dentre outras tantas concepções de duplo.

Tomando como parâmetro a origem do desdobramento do indivíduo, Carla Cunha (2009, 2021) apresenta duas categorias de bipartição do eu: o duplo endógeno e o duplo exógeno. A primeira nasce na própria interioridade do ser e configura-se como “sombra”, “fantasma”. A segunda surge do reconhecimento de uma individualidade externa ao “eu”, autônoma, que atua como projeção dele. Nas duas formas de duplicação, o “eu” passa a individualizar o seu duplo, o qual “adquir[e] existência própria”. Nesse estágio, o eu encontra no duplicado certos traços com os quais se identifica e outros dos quais se diferencia. Sobretudo as dessemelhanças podem gerar conflitos na relação entre os pares e, por conseguinte, produzir tanto a rejeição ao duplo, quanto um desejo de complementaridade, na medida que o outro porta aquilo que lhe falta

Para avançar a reflexão acerca desses desdobramentos do sujeito inscritos no arcabouço cultural, convém conhecer primeiro a figuração do duplo em algumas narrativas primordiais – conjuntura em que o estatuto mítico lhes é intrínseco – e em diferentes registros ao longo dos tempos até atingir as discussões do duplo na contemporaneidade, com o fito de conhecer os modos de inscrição ou não do insólito nesses discursos.

REFERÊNCIAS

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo (1938). Tradução de Teixeira Coelho. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. (Coleção Tópicos).
CUNHA, Carla. Duplo. In: CEIA, Carlos (Org.). Dicionário de termos literários. 2009. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/duplo/. Acesso em 20 mar.2021.
PAZ, Octavio. O arco e a lira (1956). Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

DERRIDA, Jacques. Dissemination. Translated, with introduction and additional notes, by Barbara Johnson, Chicago: University of Chicago Press, 1981.
GARCÍA, Flavio. Quando a manifestação do insólito importa para a crítica literária. In: GARCÍA, Flavio; BATALHA, Maria Cristina. Vertentes teóricas e ficcionais do insólito. Rio de Janeiro: Caetés, 2012.
JAVIER, Francisco. O tema do duplo no teatro: Defilippis Novoa, Artaud, Genet. Urdimento: Revista de estudos em artes cênicas, v. 1, n. 3, p. 48-57, 2000.
JOURDE, Pierre; TORTONESE, Paolo. Visages du doubles. Un thème littéraire. s.l.: Éditions Nathan, 1996.
LAMAS, Berenice Sica. Lygia Fagundes Telles: imaginário e a escritura do duplo. Porto Alegre: 2002. Tese (Doutorado em Literatura) 275 fls. Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002.
MIELIETINSKI, E. M. A poética do mito (1976). Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
TYMMS, Ralph. Doubles in Literary Psychology. Cambridge: Bowes and Bowes, 1949.