DUPLO – cosmogonias

Aurora Gedra Ruiz Alvarez

Dentre as antigas expressões do duplo se encontram os mitos cosmogônicos presentes em muitas culturas, como na judaico-cristã, de viés criacionista (BÍBLIA, 1995). Eva, nascida da costela de Adão, é fruto da disjunção e, ao mesmo tempo, atua como complementaridade daquele que lhe deu origem, quer por ser a sua companheira no paraíso, quer por despertar nele o desejo de conhecimento, e, em consequência da transgressão dos limites impostos, sofrerem juntos a punição. A Idade Média, entretanto, interpreta essa sanção com um discurso demeritório à contraparte de Adão e atribui à Eva a pecha de perdição do homem. Esse discurso antifeminista foi alimentado por muito tempo e, em algumas sociedades, ainda hoje se sustenta, mesmo com a evolução das Ciências Humanas que tem trazido cada vez mais luz a essa questão; em outras, ao rejeitar a ideia de culpabilização do duplo de Adão pela suposta “queda” – ideia questionada na modernidade – relaciona a desobediência à necessidade de o homem se libertar de coerções que o impedem de fazer escolhas, que o privam de conhecer o que está oculto. Por este olhar, Eva deixa de ser um elemento negativo em relação a Adão e conhece o sentido de companheira.

Em Hesíodo, o mito do duplo se faz presente no proêmio (p. 2-21) da Teogonia: a origem dos deuses (VIII a.C./1995), quando o eu poético anuncia que, do canto das Musas, da sua força numinosa, nascem os deuses e o cosmos, isto é, do reino das trevas (do caos), da potência do Não-ser, do Nada, gera-se o Ser. As Musas têm na Noite o seu princípio e o poder de, com a palavra (en)cantada, criar o que nela está ausente, ou seja, trazer à luz as forças originárias: “a Terra, o Oceano, a Noite Negra”, os deuses de cada fase cósmica e a ordem cósmica que eles determinam e os constituem.

Ao mesmo tempo em que as duplicidades Noite/Luz, Caos/Cosmos, Não-ser/Ser marcam relações antinômicas na Teogonia, elas implicam também a ideia de união, porque é da carência dos primeiros que surgem os últimos e juntos geram a vida. Fenômeno semelhante se dá com o mito do androgynos. Ele aparece em O banquete (circa 380 a.C./1972) de Platão pela voz do poeta Aristófanes, que relata que, no princípio, havia três sexos: o masculino, descendente do sol; o feminino, da terra e o terceiro, o andrógino, da lua, pois esta tem elementos comuns àqueles dois sexos. Segundo a leitura mítica dos povos primitivos, esses seres eram muito fortes e, dominados pela soberba, rebelaram-se contra os deuses. Como resposta a essa insubordinação, Zeus decidiu puni-los dividindo-os em dois: “Cada um de nós, portanto, é uma téssera complementar de um homem, porque cortado como os linguados, de um só em dois; e procura então cada um o seu próprio complemento.” (circa 380 a.C./1972, p. 191 d-e). A comparação caminha na esteira do pensamento de que, por conseguinte à divisão do ser, as metades, por sua vez, anseiam pela unidade primordial perdida.

Não muito distante da ideia de duplicidade que regula as concepções já apresentadas, o taoísmo (VI a.C.), uma das cinco religiões reconhecidas na República Popular da China, nas suas várias escolas, valoriza, em geral, a simplicidade, a temperança, a serenidade, a contemplação da natureza. A Escola dos Naturalistas, por exemplo, baseia-se na teoria yinyang a qual postula que, desde o surgimento do universo, todos os seres são constituídos dessas duas energias que se opõem e ao mesmo tempo se combinam. O yin representa o feminino, a lua (sombra), o passivo e a quietude. O yang, o masculino, o sol (o fogo), o ativo e o movimento. Essas energias estão em tensão, embora uma possua a essência da outra. Elas se interdependem na dualidade e, ao mesmo tempo se constituem na unidade do ser que está em harmonia com o universo (BIZERRIL, 2010, p. 296).

Relatos do duplo encontram-se também no hinduísmo, uma das religiões mais antigas da cultura oriental (circa segundo milênio a.C.), cujas origens procedem do Bramanismo, que sobreviveu até o início da era cristã, quando ganhou novo entendimento e o nome de hinduísmo desde então. Seus ensinamentos não estão guardados em um único livro, mas em um amplo corpo de escrituras, fundadas no princípio de que a criação se centra em um espírito supremo cósmico, o qual forma com outros deuses uma trindade: Brama (ou Brahma) – o criador; Shiva – o deus da destruição; Vishnu – o deus da preservação. Na origem dessa concepção reside um elemento mediador que dá existência aos seres e outras duas entidades que se defrontam: um deus que defende o que foi criado e outro que age contra a criação. Nesse constante embate os seres criados não prescindem do ser que regula as forças dessas entidades antagônicas para atingir o equilíbrio (DONIGER et al., 2020, on-line).

Pode-se concluir que nas narrativas cosmogônicas de natureza mítica e/ou religiosa, a cissiparidade origina-se da endogenia e a duplicidade aparece como fenômeno dado, que atua como oposição e como complementaridade. Nessas relações não se sondam as tensões a que esses seres estão submetidos. Eles estão cristalizados em taxionomias fixas, obedecendo à natureza do gênero de narrativa de exemplaridade a que se vinculam. Por essa razão, o insólito não comparece nos momentos de confrontação.

Mesmo inserido em um texto de filosofia, o relato do mito do andrógino, configurado como uma alegoria – gênero muito presente em Platão – é considerado como “verdade” apodítica, verdade preconcebida nas raízes da cultura helênica, em que cada mythos representa uma explicação de como foi na revelação primordial, in illo tempore, para se valer das palavras de Mircea Eliade (1949, 1997, p. 489). No entanto, registra-se que, no contexto dos diálogos entre Sócrates e seus discípulos na obra de Platão, o mito surge para esses debatedores como valor que precisa ser revisto.

Por outro olhar, compreende-se que nesses conteúdos míticos selecionados dentre as culturas antigas, acontece a congruência das oposições, uma espécie de coincidentia oppositorum, expressão cunhada pelo filósofo do humanismo renascentista alemão Nicolau de Cusa (1401-1464), da qual se apropria nesta reflexão para compreender o movimento de identificação e de rejeição do “eu” em relação ao seu dúplice. Situação bem distinta sobrevirá quando o duplo e o insólito convergirem na mesma obra.


REFERÊNCIAS

BÍBLIA DE JERUSALÉM. Tradução de Gilberto da Silva Gorgulho, Ivo Storniolo, Ana Flora Anderson (Org.). São Paulo: Sociedade Bíblica: Paulus, 1995.
BIZERRIL, José. O caminho do retorno: envelhecer à maneira taoísta. Horizontes antropológicos. Porto Alegre, ano 16, n. 34, p. 287-313, 2010.
CUSA, Nicolau de. A douta ignorância (1440). Tradução de João Maria André. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.
DONIGER, Wendy; BASHAM, Arthur Llewellyn et al. InEncyclopedia Britannica, 2022. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Hinduism. Acesso em 04 Out.2022.
ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões (1949). Prefácio de George Dumézil, tradução de Fernando Tomaz e Natália Nunes. 3. ed. Porto: Edições Asa, 1997.
HESÍODO. Teogonia: origem dos deuses (séc. VIII-VII a.C.). Tradução de Jaa Torrano. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 1995.
PLATÃO. O banquete (circa 380 a.C.). In: Diálogos. Tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

AUGRAS, Monique Rose Aimée. O duplo e a metamorfose – a identidade mítica em comunidades nagô. Petrópolis: Vozes, 2008.
BÍBLIA SAGRADA. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
CARRATÉ, Juan Bargalló (Org.). Hacia una tipología del doble: el doble por fisión y por metamorfosis. In: Identidad y alteridad: aproximación al tema del double. Sevilha: Ediciones Alfar, 1994. (Colección Alfar Universidad, 80. Série investigación y ensayo).
ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o andrógino (1957). Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GONÇALVES NETO, Nefatalin. No princípio… era o duplo. In: LOPONDO, Lílian; ALVAREZ, Aurora Gedra Ruiz (Org.). Leituras do duplo. São Paulo: Editora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, p. 13-42, 2011.
KRAUT, Richard. Introduction to the study of Plato. In: KRAUT, R. (Ed.). The Cambridge Companion to Plato. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
MIGUET, Marie. Andróginos. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de mitos literários. Tradução de Carlos Sussekind et al. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, p. 26-39, 2000.