ANDRÉ PIEYRE DE MANDIARGUES – ficcionista

Isabelle Godinho Weber

André Pieyre de Mandiargues (1909-1991) nasceu em Paris, na França, onde teceu laços de amizade com figuras prestigiosas do cenário artístico francês, como André Breton e Jean Paulhan, e alinhou-se às premissas do movimento surrealista – sobretudo no que diz respeito ao interesse pelo regime do inconsciente e por suas formações oníricas. Ao longo de sua extensa e diversificada carreira, dedicou-se à escrita de contos, romances, poemas, peças de teatro e ensaios críticos, consagrados principalmente a pinturas e esculturas de artistas surrealistas, tais como Leonor Fini, Hans Bellmer e Bona de Mandiargues, com quem fora casado. Recebeu importantes prêmios literários, tais como o Goncourt em 1967 por seu romance La Marge, o prêmio de poesia da Academia Francesa em 1979 e o Grande Prêmio Nacional de Letras em 1985.

O autor francês afirmava viver “no sonho assim como na realidade, esperando que a realidade se apague diante do sonho” (MANDIARGUES, 1975, p. 189). Interessando-se desde o início de sua trajetória literária pela escrita dos sonhos, concentrou-se em registrá-los minuciosamente, com o intuito de revisitar suas experiências oníricas e superar a fronteira que as delimitavam de sua existência de vigília. Determinado a criar narrativas que ultrapassassem os limites entre “real” e “irreal”, o autor empenhou-se na composição de imagens insólitas, que introduzissem o “impossível na arte” (MANDIARGUES, 1975, p. 168). Tal proposta estética se traduziu em uma nova escrita do corpo, que o caracteriza como figura saída de um sonho e o dota de múltiplas formas.

Dentre a extensa gama de produções literárias do autor, o insólito ficcional manifesta-se sobretudo em seus contos, publicados em coletâneas como Le Musée Noir (1946), Soleil des Loups (1951) e Feu de Braise (1959). Em geral, suas narrativas situam a caracterização física das figuras de ficção no limiar entre sonho e realidade, a partir da metamorfose, experiência que dá vivacidade à existência dos personagens, despertando sua sexualidade e abrindo novos caminhos de voluptuosidade. Um exemplo que ilustra tal característica é o conto Le Pain Rouge, publicado em Soleil des Loups, no qual o protagonista encolhe progressivamente até adquirir as proporções de um inseto, experiência insólita que irá lhe proporcionar um acesso inusitado a prazeres nunca antes experimentados. De modo análogo, o conto Le Diamant, publicado em Feu de Braise, narra a miniaturização de uma mulher que adentra um diamante, especialidade insólita na qual mantém relações sexuais com um homem-leão. Já no conto L’homme du parc Monceau, publicado em Musée Noir, a maleabilidade do personagem central permite que supere as limitações de sua condição biológica e modifique a qualquer instante as formas de seu corpo, em busca da satisfação erótica.

Neste rico acervo de narrativas insólitas, do qual mencionamos apenas alguns exemplos, o escritor concebeu figuras de ficção cujos corpos metamórficos ligam-se à temática da sexualidade. O autor afirma ter buscado colocar em prática “a nobreza do erotismo” (1975, p. 81), no qual o efeito de leitura não seria aprazível, mas cuja gravidade e potência introduziriam o leitor em um ambiente desconcertante. Seu interesse pelo tema evidencia-se também pelo fato de ter sido um grande colecionador de objetos eróticos.

Nos contos de Mandiargues, a iconografia insólita do corpo integra harmoniosamente a realidade ficcional, o que a coloca em consonância com o interesse surrealista em criar imagens que diluíssem as fronteiras do admitido. As produções surrealistas exerceram um papel importante no terreno do insólito ficcional. Fundamentando sua definição de imagem poética na transfiguração da identidade original de seres e objetos e na correspondência analógica de elementos heterogêneos, o surrealismo visou projetar imagens insólitas, que desfamiliarizassem o olhar do espectador e abolissem as relações antitéticas que organizam sua concepção de realidade. Tal princípio faz-se presente nas narrativas do autor aqui tratado, em que as figurações insólitas são naturalizadas como parte integrante do universo ficcional, a partir da supressão do paradigma de realidade que estabelece uma oposição entre os planos do “real” e do “irreal”.

REFERÊNCIAS

MANDIARGUES, André Pieyre de. Musée Noir. Paris: Robert Laffont, 1946
MANDIARGUES, André Pieyre de. Soleil des Loups. Paris: Robert Laffont, 1951.
MANDIARGUES, André Pieyre de. Le Désordre de la Mémoire. Paris: Gallimard, 1975
MANDIARGUES, André Pieyre de. Fogo de Brasa. Tradução de Mônica Cristina Corrêa. São Paulo: Iluminuras, 2003.