JAN POTOCKI – ficcionista

Maria Cristina Batalha

O conde polonês Jan Potocki (1761-1815), frequentador da alta sociedade cosmopolita europeia do final do século XVIII, foi um político iluminado, ligado ao meio jacobino, e, mais tarde, foi também conselheiro do Czar Alexandre I. Potocki foi um exímio estudioso da Antiguidade, engenheiro, historiador e um viajante incansável. Ou seja, foi um verdadeiro representante do iluminismo, sendo também autor de importantes obras de cunho etnográfico, bem como de vários livros de viagens. Ao cabo de 12 anos de trabalho, publica, na França, o longo romance Manuscrit trouvé à Saragosse (1805) (O manuscrito encontrado em Saragoça), escrito originalmente em francês, a apenas alguns anos de intervalo da publicação do Diable amoureux (1772) (O diabo enamorado), de Jacques Cazotte, marco inaugural do gênero fantástico, conforme reza a crítica especializada. Esta obra de Jan Potocki fica praticamente inédita, mas a tradução polonesa de 1847, por exemplo, é reeditada inúmeras vezes, tornando-se um clássico neste país. (CAILLOIS, 1958, p. 9).

Le manuscrit trouvé à Saragosse, que compreende um “Avertissement” (Advertência), 70 “jornadas” e uma conclusão, foi concebida à maneira do Decameron de Boccaccio – que enquadrava suas novelas de forma similar – e só foi publicada integralmente em 1958. Até então, ela permaneceu durante muito tempo praticamente esquecida do público leitor. Inspirado no conto oriental, imitado amplamente no século XVIII, no fantástico racionalista de Ann Radcliffe e no Diable amoureux, o romance rompe com o quadro tradicional dos modelos romanescos: vários fios narrativos, em tempos diferentes, relatos superpostos, duplos e jogo de espelhos se multiplicam através do texto. Le manuscrit trouvé à Saragosse mescla à arte do suspense a técnica da digressão levada aos últimos limites, nos moldes de Sterne e de Diderot. Assim como faz Jacques Cazotte, Jan Potocki não tenta dissimular o caráter ficcional da obra, onde o topos iniciático não esconde o mistério que o leitor é chamado a decifrar.

Trata-se da história do jovem oficial Van Worden através da Sierra Morena, região infestada de bandidos. No caminho, ele depara-se com uma forca onde estão pendurados os corpos de dois irmãos. Chegando a uma casa abandonada, resolve passar a noite, e à meia-noite, duas jovens irmãs aparecerem e o convidam a compartilhar de sua refeição. Emina e Zibeddé, vindas da Tunísia, dizem que devem desposar o mesmo homem – ao qual revelarão o segredo de seus ancestrais – e que o estão esperando nesta casa. Von Worden, apesar de seduzido por estas palavras, adormece e desperta no meio dos dois cadáveres dos irmãos enforcados. Prosseguindo seu caminho, encontra Pascheco que lhe afirma ter vivido a mesma aventura. E aí reside o núcleo central de uma narrativa que se desdobra em muitas outras, progressivamente, convidando o leitor a preencher os brancos de um relato descontínuo e fragmentário, cuja inconclusão se apresenta como o único fim lógico para a justaposição infinita das diferentes histórias. Seguindo uma tradição picaresca, assiste-se a uma profusão de personagens que, metamoforseados em outros ou não, desfilam pelas histórias que se entrelaçam umas nas outras. Duas encantadoras irmãs muçulmanas, encarnações de dois “insidiosos súcubos”, vampiros incestuosos, um ermitão, um possuído pelos demônios, dois enforcados apaixonados e outros tantos personagens que servem apenas de pretexto para contar cada um a “sua história”.

A arte e a habilidade do contista consiste em que o herói do relato, o jovem e valoroso oficial, se coloca sempre no lugar de um leitor ponderado, que busca incessantemente uma explicação racional e plausível para as histórias sobrenaturais que lhe são descritas. Após cada aventura, ele reflete sobre o que se passou e tenta encontrar uma solução que não venha contradizer as leis da natureza. E é no jogo da ambivalência do crer e o não crer que reside a estratégia da literatura fantástica presente nesse texto de Potocki.

Alphonse Van Worden é levado a ultrapassar uma série de provas iniciáticas, em uma terra estrangeira, de geografia inóspita. Todas essas provas haviam sido arranjadas pelo sheik Gomelez, mestre de uma sociedade secreta que se preparava há séculos para mostrar-se à luz do dia, fazendo então triunfar aquilo que julga ser a verdadeira religião. Sem o talento, nem a vontade, de tornar-se um novo Messias no momento em que sua descendência parecia assegurada, o tesouro que permitiria a realização futura se esgota, e o subterrâneo onde as tradições se perpetuavam é destruído por uma explosão, aniquilando para sempre o projeto da linhagem dos Gomelez. Assim, o objeto da busca permanece fugidio e as explicações sugeridas se apresentam como insuficientes e contraditórias. A incrível acumulação de fatos diabólicos deixará em aberto uma explicação coerente e o relato sugere que tudo pode não ter passado de uma estratégia do pai das jovens para testar a coragem do rapaz antes de desposá-las. A possibilidade de uma explicação pelo ilusionismo, pela alucinação ou pelo sonho aparece no início da “10ª Jornada” e no final da “14ª Jornada”.

Na ausência de um narrador, a aventura vivida por Alphonse Van Worden, e relatada por ele, permanece sem explicação; tampouco os outros personagens, ao narrarem os fatos sob a ótica do sobrenatural, conseguem trazer um desfecho coerente à narrativa, cujas histórias se cruzam à medida em que as aventuras os colocam em presença uns dos outros. O estranho deste texto repousa então na descontinuidade, na ruptura e nas contradições dos diferentes pontos de vista a respeito de um mesmo acontecimento que se reduplica sem que seja possível restabelecer o elo da causalidade. Assim como no Diable amoureux que lhe antecedeu de pouco, a laicização do demônio, que é colocado fora do campo religioso, torna-se um meio de situar a questão da liberdade do indivíduo, que tenta apoderar-se de si próprio, diante de tabus que permanecem vivos no imaginário popular, como todos os símbolos da demonologia.

O paralelismo sobre o qual o romance se estrutura nos leva a cotejar o passado de Alphonse von Worden e o de Zotto, chefe da malta de bandidos que andavam por Sierra Morena. A educação de ambos é confiada a um mestre gabaritado – um cavalheiro belga e um bandido de Messina (p. 108), respectivamente. E, enquanto Alphonse se torna capitão do Exército valão, o jovem Zotto é nomeado tenente do bando de Testa Lunga. Por isso, observa Alphonse, desconsolado e confuso diante da relatividade absoluta de valores tomados em sua forma substantiva, e que permeavam todos os discursos contraditórios que ouvia à sua volta, que estes “embaraçavam suas ideias”.

No Manuscrito, não se trata simplesmente de apresentar opiniões sobre educação, religião, amor, ou ainda demonologia, mas sim de expor a tensão ideológica presente nas contradições que perpassam esses conceitos, e que estão agindo, não apenas em um indivíduo singular, mas também no ser cultural, depositário de tradições e inúmeras determinações coletivas. Daí a temática recorrente, no final do século, do indivíduo diante da problemática do acreditar/não acreditar no sobrenatural, que se impõe como a representação simbólica de um fato social. Potocki, egresso de uma tradicional família aristocrata polonesa, frequentou os salões parisienses mais avançados e alinhou-se, posteriormente aos Jacobinos, mantendo contudo uma relação ambígua com os desdobramentos dos episódios revolucionários. Como sintetiza seu biógrafo: “dans la mentalité de cet homme sensible et sincère, comme dans un sismographe, s´inscrivirent les secousses de son temps. Il fut non seulement l´observateur des symptômes de la crise, mais cette crise se répercuta dans sa tête” (ROSTWOROWSKI, 1972, p. 25). “(…) na mentalidade desse homem sensível e sincero, como num sismógrafo, inscreveram-se os abalos de seu tempo. Ele foi não apenas o observador dos sintomas da crise, mas esta crise repercutiu em sua cabeça” (ROSTWOROWSKI, 1972, p. 25, tradução nossa).

Oscilando entre um erotismo galante e uma inspiração macabra e cruel, o romance de Potocki, ao lado do Diable amoureux, apesar da novidade narrativa que inaugura o gênero fantástico, se inscreve como uma obra característica do final do século XVIII, durante o qual o gosto pelo ocultismo, pela magia branca ou negra associava-se à libertinagem dos sentidos. Assim, pela fascinação do horror e do macabro, exacerbados no Manuscrit, este romance marca uma etapa importante na evolução do gênero, situando-o entre o século XVIII e uma nova sensibilidade romântica que se anuncia.


REFERÊNCIAS

CAILLOIS, Roger. Prefácio a POTOCKI, Jean. Manuscrit trouvé à Saragosse. Paris: Gallimard, 1958.
POTOCKI, Jean. Le manuscrit trouvé à Saragosse. Préface de Roger CAILLOIS. Paris: Gallimard, 1958.
ROSTWOROWSKI, E. Jean Potocki témoin de la crise de l´Ancien Régime en Europe et en Pologne. Cahiers de Varsovie, n. 3, 1972.