Do grego οù-κρονóς, “não-tempo”, “tempo nenhum”. Neologismo criado em 1876 pelo filósofo francês neokantiano Charles Renouvier, a partir da palavra “utopia” (οù–τóπος), “lugar nenhum”. A associação entre os dois termos é evidente no próprio título da obra que introduziu o vocábulo no mundo, o romance Uchronie (L’Utopie dans l’histoire). A definição do termo também se evidencia no subtítulo: Esquisse historique apocryphe du développement de la civilisation européenne tel qu’il n’a pas été, tel qu’il aurait pu être. A ucronia, portanto, é a construção ou reconstrução daquilo “que não foi”, mas que “poderia ter sido”, uma recriação de um evento histórico tal como poderia ter acontecido e não como aconteceu realmente. Também chamado de “história alternativa”, é um experimento em prosa narrativa onde o autor imagina um ou mais pontos de divergência em determinado evento histórico e cria um enredo ambientado neste tempo passado alternativo, ou num tempo presente modificado pela alteração do passado, ou ainda num tempo futuro resultante desta modificação. A ucronia está para o romance histórico tradicional como o negativo está para a cópia fotográfica: é uma espécie de chapa ou película fotográfica com os claros e escuros invertidos.
As relações entre a literatura e a história surgem logo no nono capítulo da Poética de Aristóteles. Descartando diferenças superficiais no tocante à forma, tais como o uso da métrica, Aristóteles separa o ofício do historiador e do poeta por critérios temporais e ontológicos. O historiador, ao narrar os eventos que realmente ocorreram, refere-se ao particular. Assim, a narrativa de cunho histórico e historiográfico referir-se-ia ao particular, como, por exemplo, “o que fez Alcibíades ou o que lhe aconteceu” (ARISTÓTELES, 1979, p. 249). O poeta, por sua vez, deve narrar aquilo que “poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade” (1979, p. 249). Por isso, ao contrário do historiador, o poeta trataria do universal. A conclusão a que o Filósofo chega é que a narrativa poética, pelas razões expostas, seria superior à narrativa histórica, por ser mais filosófica. Diante do acima exposto, a tentação de conferir a Aristóteles a paternidade ou antevisão da ucronia é muito grande. Pois imaginar um tempo histórico alternativo que leve em consideração as variantes históricas possíveis no momento mesmo em que as decisões que levaram este ou aquele evento a tomar determinado rumo, não é outra coisa do que narrar aquilo que “poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade”. Assim como existem a história e o romance histórico, existe a ucronia e a historiografia ucrônica. Uma modalidade muito específica de metodologia histórica também especula sobre o que não aconteceu: a história contrafactual. Para o historiador, pode ser uma fascinante oportunidade de tentar reconstituir e entender, com o auxílio da documentação disponível, todas as possibilidades que se apresentavam no momento em que se deu determinado evento. Uma oportunidade de repetir teoricamente a experiência original, de reconstruir intelectualmente o momento em que o fato histórico poderia ter ocorrido de forma diversa da que, de fato, ocorreu.
A pergunta básica da história contrafactual e da ucronia é what if? (e se?). A partir desta pergunta inicial, os contrafactualistas e romancistas criam cenários hipotéticos, possibilidades alternativas a partir de um assim chamado “ponto de divergência”, às vezes um detalhe, que poderia desencadear tal mudança no rumo dos acontecimentos que suas consequências poderiam alterar o curso da história por décadas, talvez séculos. Ou por outro lado, uma determinada mudança no curso da história que não modifica, ou, pelo menos, não substancialmente, o resultado conhecido. Os primeiros historiadores não se furtaram em exercer algum tipo de contrafactualismo. Um exemplo clássico é Tito Lívio, que em sua História de Roma imagina uma possibilidade alternativa para as conquistas de Alexandre Magno: e se ele tivesse rumado para o ocidente e não para o oriente? Para a conquista de Roma e não para a conquista da Ásia? Tucídides, que em sua História da Guerra do Peloponeso, elabora mais de vinte alternativas para o resultado dos confrontos entre Atenas e Esparta. Edward Gibbon especula sobre a consequência de uma hipotética derrota de Carlos Martel na Batalha de Poitiers: a construção de minaretes por toda Oxford. Assim, a história contrafactual é definida de modo sucinto pelo historiador Richard J. Evans, um crítico do contrafactualismo, como a elaboração de “versões alternativas do passado em que uma alteração na linha do tempo leva a um resultado diferente daquele que sabemos que de fato ocorreu” (EVANS, 2014, p. 1).
Ferguson defende a história contrafactual nos seguintes termos: para ele, é uma necessidade lógica imaginar o que poderia ter acontecido se a suposta causa para determinado acontecimento estivesse ausente; e também é uma necessidade histórica tentar entender o passado como ele “realmente foi”, ou seja, “atribuir igual importância a todas as possibilidades que os contemporâneos contemplaram antes do fato, e ainda maior importância a estes do que a um resultado que eles não anteciparam” (FERGUSON, p. 87). O ponto de vista de Ferguson é não determinista. Para ele, não há inevitabilidade em História. Ao atribuir às múltiplas possibilidades de ação uma realidade mais verdadeira do que a dos fatos tais como efetivamente se deram, Ferguson, em uma engenhosa e elegante jogada conceitual, inverte a proposição aristotélica e alça a tarefa do historiador a um patamar filosófico que antes era privilégio do poeta. De fato, ao historiador caberá agora a tarefa de discorrer sobre o que poderia ter acontecido.
Ao contrário de Ferguson, Richard J. Evans vê uma convergência entre a história contrafactual e a literatura de ficção, particularmente a ficção científica que se dedica a tais especulações, afirmando que “Reescrever o passado tem sido apreciado pelos autores de romances de ficção científica e de filmes que envolvem viagens no tempo” e que,
O pós-modernismo encorajou uma indefinição das fronteiras entre passado e presente, entre verdade e ficção; ele enfraqueceu conceitos lineares de tempo e introduziu uma forte ênfase na subjetividade do historiador… A história contrafactual pertence essencialmente a este novo mundo de realidades alternativas, mesmo que seus proponentes possam rejeitar abordagens pós-modernas do passado. (EVANS, 2014, p. 30)
Quando a ficção científica se apropria do contrafactualismo para construir um passado que nunca houve, a tese de Fredric Jameson sobre a relação entre o romance histórico no século XIX e a ficção científica na pós-modernidade, encontra um novo desafio. Para Jameson, a FC “pode ser considerada uma forma historicamente nova e original que nos oferece uma analogia com a emergência do romance histórico no começo do século XIX” (1997, p. 289). Partindo da interpretação de Lukács, que vinculava o surgimento do romance histórico com a necessidade da nova classe burguesa de narrar o seu passado, sua história, de modo distinto da aristocracia feudal, Jameson afirma que tanto o romance histórico quanto outras manifestações correlatas, como o filme de época, caíram em desgraça e se tornaram raros “não apenas porque na era pós-moderna não contamos mais nossa história dessa maneira, mas também porque não mais a experimentamos assim, ou talvez não mais a experimentemos de modo algum” (JAMESON, 1997, p. 289). A ficção científica, portanto, ao encenar o futuro, manteria uma relação estrutural e dialética com o romance histórico, que reencena o passado.
Mas quando é a ficção científica que reencena o passado, como no caso das ucronias, temos um caso diferente, daí a dificuldade não apenas de definir o que são ucronias específicas como, por exemplo, o steampunk.
Por fim, podemos também considerar a ucronia como algo distinto tanto da história alternativa quanto da história contrafactual, pois, se nos remetermos à etimologia da palavra ucronia, que significa “tempo nenhum”, ela melhor designaria um período hipotético na história do mundo, mas não claramente definido. Nesse sentido, a Terra Média de Tolkien seria uma ucronia, uma vez que ela está situada em uma hipotética pré-história da Inglaterra. Assim como utopia é o “lugar nenhum”, ucronia é o “tempo nenhum”, expressão que serve para conceituar as mais variadas formas de narrativa fantástica.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Poética. In: Os Pensadores: Aristóteles II. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
EVANS, Richard J. Altered Pasts: counterfactuals in history (The Menahen Stern Jerusalem Lectures). Lebanon: Brandeis University Press, 2014.
EVANS, Richard J. O passado que não aconteceu. In: BBC HISTORY Brasil, v. 2. São Paulo: Alto Astral, 2014.
FERGUSON, Niall. Virtual history: towards a ‘chaotic’ theory of the past. In: FERGUSON, Niall. Virtual history: alternatives and counterfactuals. New York: Basic Books, 1999.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, p. 289, 1997.