FRANZ KAFKA – ficcionista

Deise Quintiliano

Franz Kafka (1883-1924) é um escritor judeu de língua alemã nascido na cidade de Praga (pertencente, então, ao Império Austro-húngaro e atualmente à República Tcheca). Detentor de saúde frágil, acabou acometido por uma tuberculose que lhe ceifa a vida com apenas 40 anos. Seu amigo mais próximo, o também escritor Max Brod, teria sido instruído pelo próprio Kafka a destruir todos os seus manuscritos não publicados e a evitar que os já divulgados ganhassem nova edição. O desrespeito a essa orientação, todavia, é que lhe garantiria o enorme sucesso póstumo, pois se A Metamorfose (1916) já era conhecida do público, a posteridade ainda seria brindada com as publicações de O Processo (1925) e O Castelo (1926).

Até então apreciados por um número limitado de leitores, os romances, contos e novelas de Kafka começaram a ganhar notoriedade durante a Segunda Guerra Mundial, primeiro entre os franceses e ingleses e depois nos países de língua alemã. A partir da década de 1960, sua literatura se tornaria mundialmente aclamada, inclusive no Brasil e na terra natal do autor.

As narrativas viscerais kafkianas denotam forte atração pelo realismo e uma inclinação à metafísica, alinhavadas pela ironia e pela crueza com que detalham situações inusitadas. Do confronto entre os personagens e o poder das instituições emerge toda a fragilidade e impotência humanas, a exemplo de K, protagonista de O Processo, preso, julgado e executado por um crime que desconhece por inteiro.

Em A Metamorfose, Gregor Samsa, caixeiro viajante que trabalha ininterruptamente porque não tem amigos, abandona seus sonhos e projetos para sustentar a família e pagar a dívida dos pais. Numa certa manhã, acorda metamorfoseado num inseto monstruoso semelhante a uma barata gigante.

N’O Castelo, um agrimensor contratado por um conde para lhe prestar serviços descobre-se envolto numa burocracia aterradora, onde nada funciona como deveria. Por ser estrangeiro, fica claro que sua posição ocupará sempre uma escala hierárquica inferior aos personagens locais. O mote da narrativa é dado pelo protagonista que tenta chegar ao castelo enquanto os demais personagens se esforçam para barrar-lhe o propósito.

O reincidente apelo à temática do absurdo, à ingerência do insólito e o recurso ao inabitual levaria um emblemático ícone da literatura contemporânea, o escritor norte-americano Kurt Vonnegut, a sugerir, numa palestra em que elencava clássicos que carregam “boas notícias” e aqueles portadores de “más notícias”, que “na obra de Kafka o que começa mal tende a ficar infinitamente pior”.

“K ON SUN”, MONUMENTO CINEMÁTICO DA CABEÇA DE KAFKA INSTALADO EM PRAGA. (FOTO: DZOANA08/WIKIMEDIA COMMONS).

Situando-o no cerne do alto modernismo de Praga, Frederick R. Karl, autor de uma exaustiva biografia crítica de Kafka, afirma que o autor tcheco é a figura literária do século XX cujo nome penetrou na língua inglesa de maneira jamais alcançada por qualquer outro escritor. Referindo-se ao adjetivo que lhe é correlato, arremata:

O que é kafkiano, [disse em entrevista em seu apartamento em Manhattan], é quando você entra num mundo surreal em que todos os seus padrões de controle, todos os seus planos, todo o modo como você configurou seu próprio comportamento começa a cair aos pedaços, quando você se confronta a uma força que não se conforma à maneira como você percebe o mundo. Você não desiste, não se deita e morre. O que você faz é lutar contra isso com todas as suas armas, com tudo o que tem. Mas é claro que você não tem a menor chance. Isso é kafkiano (EDWARDS, Ivana, 1991).

A biografia incursionaria, outrossim, sobre o aspecto poliédrico das metamorfoses kafkianas: escritor obsessivo, depressivo episódico, agente de seguros, escritor de cartas, membro de família, vítima de doença, hipocondríaco contumaz, frequentador de prostitutas, homem que pertencia a uma minoria de língua alemã desprezada dentro de uma minoria judaica e que carecia de uma língua nativa para falar de seus sentimentos mais profundos.

As múltiplas possibilidades de abordagem do prodigioso universo de Kafka já haviam sido habilmente escrutinadas por Deleuze, devido ao seu caráter de experimentação. Melhor, à sua ancoragem em “protocolos de experiência”:

Acreditamos apenas numa política de Kafka que não é nem imaginária nem simbólica. Acreditamos apenas em uma ou em algumas máquinas de Kafka que não são nem estrutura nem fantasma. Acreditamos apenas em uma experimentação de Kafka, sem interpretação nem significância, mas apenas de protocolos de experiência […]. Um escritor não é um homem político, é um homem máquina, é um homem experimental (que cessa, assim, de ser homem para se tornar macaco ou coleóptero, ou cachorro ou camundongo, devir-animal, devir-inumano, pois, em verdade, é pela voz, é pelo som, é por um estilo que a gente se torna animal, e seguramente por força de sobriedade). Uma máquina de Kafka é então constituída por conteúdos e expressões formalizados em graus distintos como por matérias não formadas que nela entram, dela saem e passam por todos os seus estados. Entrar, sair da máquina, estar na máquina, percorrê-la, aproximar-se dela ainda faz parte da máquina: são os estados do desejo independentemente de toda interpretação (Deleuze, 1975, p. 14-15).

O vetor convergente de todas as análises repousa, porém, na originalidade radical, no componente insólito, na configuração inextricável, na absurdidade do mundo, na desterritorialização da humanidade e na claustrofobia da liberdade, pedras angulares na edificação da corrosiva e atrevida genialidade de Kafka, projetada nos seus jogos imaginativo-ficcionais para além de seu tempo histórico, para muito além de suas pretensões.

REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka. Pour une littérature mineure. Paris: Minuit, 1975
EDWARDS, Ivana. The Essence of Kafkaesque. In: The New York Times, 1991. Disponível em: https://www.nytimes.com/1991/12/29/nyregion/the-essence-of-kafkaesque.html. Acesso em 03 jun. 2019.
KAFKA, FRANZ. A Metamorfose. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Cia das Letras, 1997.
KAFKA, FRANZ. O Castelo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
KAFKA, FRANZ. O Processo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Cia de Bolso, 2015.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

KARL, F.R. Franz Kafka: Representative Man. Boston, Massachusetts: Houghton Mifflin Publisher, 1991.
POPOVA, Maria. Kurt Vonnegut on the Shapes of Stories and Good News vs. Bad News. In: Brain Pickings. Disponível em: https://www.brainpickings.org/index.php/2012/11/26/kurt-vonnegut-on-the-shapes-of-stories/. Acesso em 09 jun.2019.