EÇA DE QUEIRÓS – ficcionista

Maria João Figueiredo Albuquerque Simões

Eça de Queirós (José Maria de Eça de Queiroz) 1845-1900. Romancista e diplomata português, Eça de Queirós foi uma figura de enorme relevo na cultura portuguesa do último quartel do século XIX, sendo conhecido sobretudo por ser o introdutor do Realismo em Portugal e ter escrito um conjunto de obras ficcionais das mais emblemáticas da cultura portuguesa. Porém, o seu elevado sentido crítico relativamente à sociedade coeva nunca deixou de estar aliado a uma perseverante busca de originalidade, a qual também encontrou expressão através do fantástico.

Na obra do escritor, a presença do fantástico surge, sobretudo, ou no início, ou mais para o final da sua produção literária, vislumbrando-se de forma mais indireta ou encapotada no período de prevalência da estética realista. Assim, o tratamento do fantástico ganha contornos e características diferentes ao longo dos vários momentos da obra do autor, dentro da qual uma figura surge como recorrente e se destaca: o Diabo. Os seus primeiros textos (publicados na revista Gazeta de Portugal, em 1867 e 1868) foram escritos na linha de um romantismo tardio, mesclando (ou intercalando) o romantismo social com o romantismo satânico e, mostram a influência sobretudo de Heinrich Heine (através das traduções de Gérard de Nerval), de E.T.A. Hoffmann e, mais difusamente, de Edgar A. Pöe. Juntamente com este último, Baudelaire é incluído pelo autor no conjunto dos “poetas do mal”, ou seja, escritores que trabalham temas como a podridão e o mal e se aproximam do macabro. Incluem-se nestes textos, a narrativa intitulada “O senhor diabo”, que esboça a história dos amores de juventude do diabo e também o texto “Mefistófeles”, que expõe as reflexões do narrador sobre a figura do diabo no Fausto de Goethe, na versão operática de Gounod, a qual tinha estado em cena no Teatro Real de São Carlos, no ano anterior.(A relação entre este texto e a performance da ópera, ocorrida em 1867 no S. Carlos, foi investigada por Mário Vieira de Carvalho que publicou diversos estudos sobre a presença da música na obra queirosiana).

Bem invulgares são os contos “O milhafre” e “Memórias de uma forca”: enquanto o primeiro se aproxima da fábula, na medida que exibe um milhafre falante, capaz de filosofar sobre o descaso dos homens relativamente ao espiritualismo de Cristo, no segundo, uma forca desenrola a sua triste história. No brevíssimo intróito deste conto, o narrador afirma ter tido acesso às “Memórias” desta forca “de forma sobrenatural”, para, logo a seguir, ceder a narração à própria forca, que assume a responsabilidade da narração, passando a ser uma narrativa autobiográfica. É assim sob a estratégia da personificação que a forca se lastima de ter sido separada da sua nobre origem arbórea, chora o seu afastamento da natureza e se queixa do cruel destino para si reservado pelos homens. Para além disso, a forca revela as injustiças que é obrigada a praticar, como, por exemplo, a de enforcar um ladrão que roubara por ter fome. O seu tormento só termina quando começa a apodrecer e à medida em que vai sentindo, de forma metempsicótica, a sua reintegração na natureza da sua alma e do seu corpo, sob a ideia mística da transmigração das almas — uma ideia que também está presente nos textos “Os Mortos” e “Misticismo Humorístico”.

Entretanto, o panteísmo patente no referido conto ganha em originalidade pela forma como a forca expressa o sentir da sua própria dissolução no húmus, através da qual os átomos reintegram a circulação material da natureza. Para além desta sobrenatural forca falante, nos primeiros textos queirosianos, ganha relevo a figura do diabo enquanto um componente fantástico principal, pois se em alguns destes textos iniciais é possível encontrar referências a seres mitológicos — tais como fadas, peris (da mitologia persa) nixes (da mitologia germânica), vilys (espécie de ninfas da mitologia eslava) — é sobretudo através da figura do diabo que se introduz a estranheza fantástica. Curiosamente, a figuração diabólica tinge-se de colorações cómicas num outro texto, do qual havia referências, mas de que não se conhecia nenhum exemplar: uma Opera-buffacom o título A morte do diabo, que Eça de Queirós começou a compor juntamente com Batalha Reis.

A comprovar a veracidade das alusões à peça, recentemente foram encontrados por Irene Fialho (A morte do diabo: fragmentos de uma opereta inédito / Eça de Queirós com Jaime Batalha Reis, Augusto Machado; ed. Irene Fialho, Mário Vieira de Carvalho, José Brandão, Alfragide: Caminho, 2013), no espólio musical da Biblioteca Nacional de Portugal, fragmentos do libreto desta obra, escrita em 1868, a qual coloca em cena o diabo sob diferentes figurações: Satanás, Méfisto, Diabos Velhos e Diabos Novos. Entediado com a eternidade dos Infernos, o diabo anseia pelos “prazeres da Baixa”, que Lisboa lhe teria proporcionado, sendo secundado pelo coro dos Diabos Velhos e Novos. Numa aliança rara e difícil de conseguir, os versos fazem emergir, desde o seu fundo fantástico, o burlesco e o cómico com rimas fáceis e muitas repetições encarriladas para facilitar o canto. Também a sátira marca presença, porque estes diabos querem regalar-se “nos prazeres da Baixa” de Lisboa. Com clara influência de Offenbach, parte desta ópera burlesca foi executada no Teatro Trindade, em 1870. Em 2013, foi apresentada a publicação deste achado num volume que contém a partitura e as diversas letras, antecedidas por um prefácio contextualizador da referida investigadora. No evento de apresentação, que decorreu na Biblioteca Nacional, foram reinterpretados excertos por vários cantores líricos, estando disponível uma gravação na plataforma YouTube. Como o próprio escritor narra no In memoriam dedicado a Antero de Quental, quando o poeta-filósofo chega a Lisboa, vindo de Paris, junta-se aos jovens do Cenáculo que se reuniam sobretudo em casa de Jaime Batalha Reis, propiciando que a “turbulência” romântica dos jovens frequentadores do Cenáculo infletisse para temas mais profundos e de maior preocupação social. Embora este texto queirosiano tenha alguma dose de ficcionalidade, não é de descurar o sentido de viragem que aí o autor expõe, dado o facto de ele afirmar que Batalha Reis e ele abandonaram essa “obra de escandaloso delírio” que era a ópera-bufa, para começar à noite a estudar Proudhon.

Durante o período de prevalência da estética realista na obra do escritor, o fantástico ainda se revela, mas com uma amplitude muito menor e sob outros registos. O recurso ao registo onírico é uma das estratégias mais recorrentes: no romance O crime do padre Amaro, o protagonista sonha ser perseguido pelo diabo, que, embora com as feições do rival de Amaro, mantém alguns dos mais recorrentes atributos, tais como os cornos, as garras e a cauda. Já n’O primo Basílio, para além das criaturas infernais que aparecem nos sonhos de Luísa, destaca-se a figura de Mefistófeles, trabalhada cenicamente numa representação do Fausto de Goethe, musicada por Guonod, que Luísa vai ver ao Teatro Real de São Carlos. Emerge assim a ficção dentro da ficção num procedimento de mise en abîme, que instiga o leitor a tecer uma série de comparações entre as duas ficções, seguindo para tal a perspectiva de Luísa que também as realiza. Por seu turno, Mefistófeles reaparece n’Os Maias, novamente num duplo jogo representacional, pela mão de Ega, que escolhe este disfarce para a festa de Carnaval em casa dos Cohen.

O fantástico deixa de ter um papel acessório, em 1880, com a publicação de O Mandarim. Logo no Prólogo, o autor reconhece que esta novela segue os trilhos da fantasia e do Sonho, “onde se ergue a torre abandonada do Sobrenatural”. Nesta obra, a figura do “Tentador” (como o narrador lhe chama) aparece, de forma inexplicável, no quarto de Teodoro, um funcionário de repartição pública, aparentando ser um típico homem de classe média, com chapéu alto e luvas pretas. É ele que incita o protagonista a optar pela possibilidade, lida num in-fólio, de tocar uma campainha que fará morrer um mandarim chinês, tendo a capacidade sobrenatural de tornar o decisor de tal escolha no herdeiro da enorme fortuna do mandarim. A intriga gira, pois, em torno desta parábola ética designada por “paradoxo do mandarim que Eça provavelmente recordava da leitura do romance Le Père Goriot de Balzac, o qual por sua vez, a terá bebido em Chateaubrian que expõe a questão ética em Le Génie du Christianisme. Em contraste com o velho Diabo da mitologia cristã, este “tentador” é figurado como um prosaico burguês. Aliás, Teodoro, com o intuito de se autodesculpabilizar, descarta a hipótese deste indivíduo insólito ser o rival de Deus, “enfarruscado e manhoso, ornado de cornos” (QUEIRÓS, 1992, p. 89), em quem nunca acreditou e só no final, quando pretende reverter a situação, virá a reconhecer a força do Mal e do diabo seu representante. Com o acionamento do processo de banalização(Sobre o processo da banalização do espaço e do corpo no espaço, veja-se GARCÍA, 2015: 59) desta criatura diabólica, a figura afasta-se do sobrenatural maravilhoso cristão e aproxima-se do fantástico imiscuído no banal que florescerá no século XX.

Por outro lado, os objetos ganham dimensão insólita, pois o in-fólio exala “magia”, as vírgulas apresentam-se com o “retorcido petulante de rabos de diabinhos” e até o ponto de interrogação parece “o pavoroso gancho” (QUEIRÓS, 1992, p. 85) do Tentador (Eça acrescentou fantasticidade aos elementos gráficos, aduzindo estes elementos (inexistentes na publicação em folhetins) na versão em volume, no final do ano de 1880. (cf. Queirós, 1992: 84-85)). O atrevimento do protagonista, incapaz de resistir à ganância, desencadeia a morte do mandarim Ti Chin-Fu — situação que apenas se pode explicar pela intervenção de forças sobrenaturais. Deste modo o metaempírico sobreleva e comanda todas as outras situações que têm explicação natural e normal. Quer isto dizer que, embora a obra tenha descrições realistas (sobretudo no concernente à realidade burguesa lisboeta) e apresente situações plausíveis (quando Teodoro enfrenta uma série de peripécias na China, onde vai tentar compensar os familiares do mandarim morto), efetivamente, todos os elementos realistas estão atingidos pela força sobrenatural que rege a intriga. Embora o “Personagem” vestido de preto surja brevemente, ele deixa um rasto indelével, para o qual não há volta atrás. Lida na totalidade, a obra avança um desafio moral, apontando a falibilidade da coragem e da ética de todo o ser humano, sobretudo quando as consequências de uma má atuação não sem mostram de forma imediata e evidente. Mais tarde, na obra A relíquia, a estratégia do sonho é novamente utilizada para fazer reaparecer um Diabo ligado à religiosidade cristã que se adequa à recriação da história de Jesus, realizada no capítulo terceiro da obra. Este é um diabo que “escarra” ante a cruz preparada para Jesus. Aqui a figuração aproxima-se das visões do maravilhoso cristão; porém, há algo de excessivo na sua caracterização: “um homem nu, colossal, tisnado, de cornos; os seus olhos reluziam, vermelhos como vidros redondos de lanternas; e, com o rabo infindável, ia fazendo no chão o rumor de uma cobra irritada que roja por folhas secas” (QUEIRÓS, 2021, p. 141). O acentuar da grotesca mescla homem/animal parece extrair religiosidade à figura, o que é corroborado pela desvalorização do religioso que o Diabo faz quando diz: “Mais outra Religião! Esta vai espalhar um inenarrável tédio” (QUEIRÓS, 2021, p., 142).

Durante a década de 1890, Eça de Queirós revela interesse por temas medievais sobretudo para construir o romance A ilustre casa de Ramires, planeada desde 1890 (Este romance foi inicialmente projetado como um conto destinado a ser publicado na Revista de Portugal (dirigida por Eça), anunciado em 1890 Cf. Da Cal, G). Gonçalo Mendes Ramires, protagonista desta ficção, para ganhar notoriedade, recria e escreve as histórias dos seus antepassados medievais. Dentro dessas histórias destaca-se a de Lopo de Ramires “que, morto, se erguera da sua campa no Mosteiro de Craquede, montara um ginete morto, e toda a noite galopara através da Espanha para se bater nas Navas de Tolosa!” (QUEIRÓS, 1999, p. 119). A narrativa tem como referente histórico a célebre batalha da Reconquista Cristã contra o Cafilado Almoáda, ocorrida em 1212, e ganha destaque por retomar a lenda medieval do Cavaleiro sem cabeça, com versões na Irlanda, nas lendas arturianas e no folclore germânico. A história do “Descabeçado” surge, em verso, no fado-choradinho de Videirinha, glorificando a bravura dos antigos e viris Ramires e é recontada, para impressionar as senhoras, pelo protagonista, de quem se diz não gostar da lenda que o chega mesmo a assombrar num pesadelo.

Mergulham também neste ambiente gótico ou negro o conto “O tesouro” (1894) e “O defunto” (1895). Enquanto no primeiro, para além dos elementos negros, o elemento fantástico se plasma essencialmente no modo misterioso e inexplicável como surge a arca com o tesouro que desencadeará a narrativa, no segundo, o elemento horrífico e sobrenatural é bem mais extenso e ostentatório. De facto, fazendo jus ao tipo de fantástico que se mostra (MELLIER,, 1999, p. 18), este conto costura toda uma série de elementos “negros” ou macabros. Os componemas fantásticos advêm, por um lado, do tratamento horrífico do espaço: os solares medievais e as casas acasteladas com galerias de abobada alta, com janelas gradeadas e torre (ex.: o “gradeado solar de granito negro” do Senhor de Lara, no século XV), mas também o Cerro dos enforcados (sinistro ermo), a velha ponte romana com o seu Calvário e a lagoa das Donas de “brilho lívido”. Por outro lado, é dado relevo a certos topoi e a alguns objetos recorrentes no fantástico: a Lua, nichos religiosos, adagas, punhais, espadas, capas, mas também a forca. Porém, o que concorre com mais força para a instauração do fantástico, é a personagem do enforcado, sobretudo pela descrição da sua cadavérica e horrífica figura.

Assim, embora no conto haja intervenções miraculosas e diversos laços estabelecidos com o Maravilhoso Cristão — uma vez que o protagonista D. Rui de Cardenas é um devoto afilhado e protegido da Virgem do Pilar e esta, enquanto força do Bem, envie, como adjuvantes a velha e o enforcado para o livrar de perigos — efetivamente a tematização do morto-vivo e o efeito de densificar a sua presença através das impossibilidades da fala, do andar e do agir criam um efeito de irreal que sobreleva a causalidade milagrosa. Ao entrar em choque com a ordem normal dos sentidos e a lógica, esta opacidade da figura horrífica e “monstruosa” provoca essa “fissura fantástica” característica do sentido subversivo do fantástico capaz de por em causa convenções e as ideologias da época, como acontece com a crítica ao ciumento, possessivo, conservador e aprisionador Senhor de Lara, emblema de um poderoso que abusa do seu poder. Ao invés da ideia de um fantástico de pura evasão, como sobressai neste último exemplo, Eça de Queirós cultivou o lado subversivo e questionador do fantástico. Inegavelmente o escritor português explorou as potencialidades ideológicas desta categoria estética que é o fantástico, colocando-a ao serviço das suas ideias.

REFERÊNCIAS

FIALHO, Irene.“A Morte do Diabo” e as “Visões” de Carlos Fradique Mendes. Criações coletivas no Cenáculo. In: QUEIRÓS, Eça de; REIS, Batalha; MACHADO, Augusto. A Morte do Diabo. Fragmentos de uma opereta. Lisboa, Caminho, 2013.
MELLIER, Denis. L’écriturede l’excès. Fiction fantastique et poétique de la terreur. Editions Champion, Paris, 1999.
QUEIRÓS, Eça de.A Ilustre Casa de Ramires. Elena Losada Soler (Ed). Carlos Reis (Coord). Lisboa: INCM, 1999. [Edição crítica das obras de Eça de Queirós].
QUEIRÓS, Eça de. A Relíquia. Carlos Reis e Maria Eduarda Borges dos Santos (Ed). Lisboa: INCM, 1921.
QUEIRÓS, Eça de. O Mandarim. Beatriz Berrini (Ed). Lisboa: INCM, 1992.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

CARVALHO, Mario Vieira de. A cultura músico-teatral na crônica e na ficção queirosianas:  pistas para a definição de um perfil estético. In: Camões. p. 112-126. 2000.
COLAÇO, Pedro. Natureza Fantástica: representações do outro mundo na obra de Eça de Queirós e Terrence Malick. Dissertação (Mestrado em Letras) – FLUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2018. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/37303/1/ulfl257360_tm.pdf. Acesso em 06 mar. 2022.
GARCÍA, Patricia. Space and the Postmodern Fantastic in Contemporary Literature, London, Routledge, 2015.
QUEIRÓS, Eça de; REIS, Jaime Batalha; MACHADO, Augusto. A morte do diabo: fragmentos de uma opereta. FIALHO, Irene; CARVALHO, Mario Vieira de; BRANDÃO, José (Ed). Alfragide: Caminho. 2013.
SEQUEIRA, Maria do Carmo Castelo Branco. A dimensão fantástica na obra de Eça de Queirós. Porto: Campo das Letras, 2002.
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Eça d’Amor, Escárnio e Maldizer: “O Defunto”. Revista de estudos Literários. As Palavras (In)visíveis. Estudos para Carlos Reis, n. 10, p. 499-518, 2020. Disponível em: https://impactum-journals.uc.pt/rel/article/view/2183-847X_10_26. Acesso em 06 mar. 2022.