GASTÃO CRULS – ficcionista

Alexander Meireles

(1888-1959) Filho do cientista belga Luís Cruls, Gastão Cruls nasceu em 1888 no antigo Observatório Astronômico do Morro do Castelo, hoje desaparecido, onde seu pai foi diretor por longos anos. Inicia-se assim, desde o nascimento e por meio da convivência com o pai, o primeiro contato do autor do romance A Amazônia misteriosa (1925) com o pensamento científico que marcaria a sua obra como um todo (CRULS, 1958, p. III). Essa influência paterna também esteve presente em 1905, quando Cruls ingressou na Faculdade de Medicina onde permaneceu até o término do curso cinco anos depois. Todavia, embora tivesse estudado Medicina por gosto próprio, Gastão Cruls nunca se adaptou ao exercício clínico da profissão, se afastando gradativamente do contato com pacientes para exercer outras atividades na área. A aplicação do conhecimento científico, porém, não seria esquecida por Cruls, se manifestando ao longo de toda a sua carreira literária como um elemento recorrente. Como atesta Afrânio Coutinho: “Deve ser assinalada a fidelidade do autor à sua formação científica, expressa na obra romanesca em uma temática de inspiração médica e numa preocupação com problemas de personalidade, todos abordados segundo a técnica realista, não obstante o cunho intelectualista e imaginativo dos casos apresentados” (COUTINHO, 1997, p. 283).

O início de sua carreira literária aconteceu por volta de 1914 ou 1915 quando começou a escrever os seus primeiros contos, alguns publicados em primeira mão pela Revista do Brasil (na primeira fase em que Monteiro Lobato era proprietário da publicação), sob o pseudônimo de Sérgio Espínola. Após esse começo, outros contos surgiriam, constituindo-se assim o seu volume de estreia Coivara (1920), obra que o crítico e ensaísta Agrippino Grieco considerou como “uma das mais formosas coletâneas de contos da língua portuguesa” (CRULS, 1957). Até então Gastão Cruls nunca havia frequentado os círculos literários do Rio, sendo seu único amigo o escritor Alberto Rangel, já famoso com o seu romance Inferno verde (1908), cujo enredo trata da Amazônia. Esta região do Brasil, de fato, exerceria um forte fascínio sobre Gastão Cruls ao longo de toda a sua vida, o que o levou em 1928 a acompanhar a expedição do General Cândido Mariano da Silva Rondon aos limites da região com a Guiana Holandesa com o intuito de conhecer a Amazônia que ele já havia descrito imaginariamente há três anos em Amazônia misteriosa. O resultado dessa expedição foi o livro A Amazônia que eu vi (1930), um documentário de viagem sob a forma de diário. Junto com Agrippino Grieco, Gastão Cruls também dirigiu entre 1931 a 1938 o Boletim de Ariel, revista bibliográfica cujo redator-chefe era Agrippino Grieco. Em fins de 1938 o escritor voltou mais uma vez ao Norte do Brasil para uma viagem que lhe rendeu material para uma nova obra: Hiléia Amazônica (1944), composta de suas observações sobre a flora, fauna e cultura da região. Neste aspecto, Amazônia misteriosa não apenas representou o início da carreira de Cruls como romancista, mas também marca a sua incursão pelo modo Fantástico a partir da utilização de temas científicos.

Refletindo a formação de Cruls, Amazônia misteriosa descreve a jornada de um médico, referido no romance apenas como “Doutor”, à selva amazônica. Este personagem-narrador é acompanhado de uma equipe de ajudantes dentre os quais apenas se destaca na trama o caboclo Pacatuba, atuando como companheiro do narrador. A equipe se perde na floresta e é encontrada por um grupo de índios que os levam à tribo de índias de grande estatura identificadas posteriormente como as lendárias Amazonas. Através do consumo de uma bebida feita pelos nativos, ele empreende uma viagem onírica até a época do império Asteca e descobre a origem das Amazonas. Neste lugar, o Doutor também encontra um cientista alemão de nome Jacob Hartmann acompanhado de sua esposa francesa, Rosina, e, de dois ajudantes também europeus. Gradativamente o protagonista descobre que o cientista está fazendo experiências com animais e com os meninos recém-nascidos rejeitados pelas índias. Eventualmente o médico brasileiro e Rosina se apaixonam e decidem fugir juntos da aldeia. Rosina, porém, sucumbe aos perigos da Amazônia e o romance termina com o narrador chorando a morte da amada. A abordagem do fantástico regida pelo científico prosseguiu nos dois romances seguintes: Elza e Helena (1927) e A criação e o criador (1928). No primeiro, o enredo é estruturado ao redor da questão da dupla personalidade, mostrando as complicadas situações criadas por uma mulher de vida dupla. Esta abordagem do dualismo da natureza humana também estava presente no segundo romance, que focaliza outro caso de dissociação da personalidade, através da mistura de planos e da superposição de histórias dentro do mesmo romance, além da fusão de personagens e autor, do personagem-romancista com os personagens-criatura do romancista (COUTINHO, 1997, p. 283).

É interessante frisar a predileção de Cruls pelo tema do Duplo, presente em Elza e Helena e A criação e o criador. Além desses dois romances, o autor voltaria a lidar com o tema no conto “Meu sósia” (1938). Nesta história, um escritor fictício de nome Paulo de Alencastro descobre que outro artista, muito parecido com ele, está fazendo uma série de pesquisas para a elaboração de um romance cujo enredo se desenrola na Amazônia e envolve a lenda da tribo das amazonas. Percebe-se assim, em “Meu sósia”, conforme assinalado por Roberto de Sousa Causo (2003), a presença de um interessante elemento intertextual com Amazônia misteriosa. Essa temática possui uma longa tradição na literatura especulativa, tendo como exemplos representativos os contos “Transformations” (1831), de Mary Shelley; “William Wilson” (1840), de Edgar Allan Poe; “O Duplo”, de Coelho Neto e, principalmente, a novela O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde (1886), de Robert Louis Stevenson. Como já mencionado, este jogo de alter egos continuou presente em Amazônia misteriosa na forma do protagonista chamado simplesmente de “Doutor”. O Doppelgänger, todavia, não é apenas uma temática seguida por Cruls. Segundo Afrânio Coutinho, a dualidade é uma marca da inclinação literária do autor:

 A dualidade se surpreende, quando alia a fantasia em temas e enredos à observação da realidade local, na paisagem e nos costumes. Mas esse pendor à fixação do ambiente e motivos locais, sobretudo sertanejos, nele é temperado por uma inclinação ao universal, que lhe vem naturalmente de uma forte fidelidade à cultura ocidental, […] Daí que o romancista fugisse à sedução regionalista, cara a uma ala da ficção brasileira e reforçada pelo Modernismo, filiando-se à corrente psicológica, a que se adaptaria o seu senso do trágico, da ironia e do satírico. (1997, p. 282-283)

A análise da obra de Cruls à luz das palavras de Coutinho indica que, à primeira vista, a ambientação da narrativa fantástica e a utilização das lendas, dos costumes e do vocabulário local da Região Norte fazem com que Amazônia misteriosa seja um romance que alia a fantasia em temas e enredos à observação da realidade local, na paisagem e nos costumes. Chama a atenção neste ponto como a menção a elementos da escrita de Cruls apontados por Coutinho, e presentes em Amazônia misteriosa, também remetem a Macunaíma (1928), de Mário de Andrade. Nesta leitura Amazônia misteriosa poderia ser considerada uma antecipadora da segunda fase modernista (1930-1945), caracterizada pelo domínio da prosa a partir da publicação da rapsódia de Mario de Andrade. No entanto, diferentemente de Macunaíma, cuja estrutura é uma colagem de diversos componentes da cultura popular brasileira reunidas em torno do personagem central, o romance de Cruls é, remetendo às palavras de Afrânio Coutinho na citação acima, temperado por uma inclinação ao universal, que lhe vem naturalmente de uma forte fidelidade à cultura ocidental. Esta é uma observação que, quando aplicada à análise do enredo de Amazônia misteriosa, remete às diversas influências literárias européias do autor desde Utopia (1516), de Thomas More, até A ilha do Dr Moreau (1896), de H. G. Wells, passando por As minas do rei Salomão (1885), de H. Rider Haggard. Por esta razão, apesar de estar inserido no mesmo momento histórico-cultural de outros nomes do Modernismo que atuavam na corrente social e territorial da ficção brasileira, como Érico Veríssimo, Raquel de Queirós e Graciliano Ramos, Gastão Cruls deixou entrever em seu primeiro romance que não se apegaria às inovações e preocupações do movimento. Esta é a mesma conclusão a que chega Afrânio Coutinho: “Do ponto de vista técnico, a sua arte romanesca é tradicional, […] parecendo que não tiveram nele repercussão as modernas revoluções operadas na ficção no Século XX” (COUTINHO, 1997, p. 284). De fato, Amazônia misteriosa é uma obra marcada pelo cientificismo e o evolucionismo característicos de fins do século XIX, o que a vincula às técnicas realista-naturalistas do fantástico europeu (especialmente o fantástico desenvolvido nas ilhas britânicas) nas vertentes da Ficção Científica e do Romance de aventura. Estes mesmos elementos, reveladores da sua formação científica, marcariam a obra de Gastão Cruls de forma geral como representativa da corrente psicológica, herdeira do Simbolismo e do Impressionismo, na medida em que investigavam os problemas psicológicos e as paixões do coração humano sob o olhar clínico do médico que ele foi. Características que também estiveram presentes nos romances Vertigem (1934) e De pai a filho (1954). No campo da narrativa curta, História puxa história (1938) foi a última coletânea de contos.

REFERÊNCIAS

CAUSO, Roberto de Souza. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875-1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil: vol. V Modernismo. 4. ed. São Paulo: Global, 1997.
CRULS, Gastão. Contos reunidos. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1951
CRULS, Gastão. A Amazônia misteriosa. São Paulo: Edição Saraiva, 1957 (Coleção Saraiva; 115).
CRULS, Gastão. A Amazônia misteriosa. In: CRULS, Gastão. Quatro romances. Rio de Janeiro: José Olympio, p. 1-81, 1958.
CRULS, Gastão. Nota da editora. In: CRULS, Gastão. Quatro romances. Rio de Janeiro: José Olympio, p. III, 1958.  (Traços biográficos do autor).

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

GONZÁLEZ, Antonio Ballesteros. Doppelgänger. In: MULVEY-ROBERTS, Marie (Ed). The Handbook to Gothic Literature. New York: NY University Press, p. 264, 1998.
SILVA, Alexander Meireles da. O admirável mundo novo da República Velha: O nascimento da ficção científica brasileira no começo do século XX. Tese (Doutorado em Literatura Comparada). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: https://goo.gl/Au75GN. Acesso em 02 mar. 2019.