REALISMO ANIMISTA

Regina Silveira

S.m. do el. comp. antepositivo anim(i/o), do latim anima, ae, alma, cf. Houaiss (Dic. da L. P.) 1 Rubrica: filosofia − cada uma das doutrinas que afirmam a existência da alma humana, considerada como princípio e sustentação de todas as atividades orgânicas, esp. das percepções, sentimentos e pensamentos. 2 Rubrica: antropologia − primeiro estágio da evolução religiosa da humanidade, no qual o homem primitivo crê que todas as formas identificáveis da natureza possuem uma alma e agem intencionalmente. Com base no conceito tradicional de alma, o médico alemão Georg Ernst Stahl (1660-1734) formulou a doutrina do animismo para explicar o funcionamento do corpo humano. Influenciado por Anaxágora (500 a.C. – 428 a.C.), Aristóteles observa que a alma corresponde ao Nous (a inteligência, o pensamento, o espírito). A alma move; o Nous, ilimitado e autônomo, move os grãos da matéria; antes de Nous, era o período do Caos. O pensamento de Anaxágoras foi interpretado duplamente: o lado Nous (inteligência, pensamento) e o lado Natureza. Extramaterial. Recolocado na Natureza (matéria), o Nous é o animismo. E o Nous que existe sempre, existe seguramente agora também, lá onde se encontram todas as outras coisas, tanto no englobante múltiplo quanto nas coisas misturadas e nas coisas separadas. (Simplício, sobre a Física de Aristóteles). Ao analisar as definições de alma dos pensadores de sua época (entre eles Demócrito, Anaxágoras e Diógenes), Aristóteles, em De Anima 2006, texto original: o tratado Peri Psykhês de Aristóteles), concluiu: “Todos, com efeito, definem a alma por assim dizer por três atributos: o movimento, a percepção sensível [visão, audição, olfação, gustação e tato] e a natureza incorpórea” (p. 54). “Ainda que alguns pré-socráticos tenham definido a alma pela incorporeidade [asômaton], é preciso lembrar que incorpóreo não significa imaterial, mas uma matéria sutil e quase imperceptível ao olho.”  (p. 160, nota do tradutor). Aristóteles enfatiza o movimento: “a alma é o que fornece o movimento aos seres vivos” − ten psykhên einai to parekhon tois dzois ten kinêsis (p. 153, nota do tradutor). A alma para Aristóteles é, de forma geral, um movente ou um motor imóvel (p. 163), o que faz mover. Uma definição de alma é propriamente impossível… É o que está sugerido na frase “Está […] enunciado em geral o que é a alma”. (p. 208). A alma é princípio de movimento (to kinoun), mas não pode ser algo em movimento, ou seja, é um princípio parado que atua nos processos de mudança denotando vida (p. 24); além disso, não pode ser separada do corpo, pois é a “forma e a entelekheia do corpo todo” (p. 209), e “é como forma (e não recipiente ou substrato)” que dizemos que a alma é aquilo por meio de que temos ânimo ou somos animados para viver e pensar como seres de linguagem (p. 214).

ANIMISMO – (in. Animism; fr. Animisme, ai. Animismus; it. Animismó), em Nicola Abbagnano, (Dic. de Filosofia), termo usado por Tylor (Primitive Culture, I, 1934, p. 428-429) para indicar a crença difundida entre os povos primitivos de que as coisas naturais são todas animadas; daí a tendência a explicar os acontecimentos pela ação de forças ou princípios animados. Tylor vê no animismo a forma primitiva da metafísica e da religião. Essa doutrina partia do pressuposto de que a primeira e fundamental preocupação do homem primitivo era explicar, de algum modo, os fatos que o circundavam. Para a sociologia, esses interesses não estariam vinculados à magia (v.). A doutrina segundo a qual foi do comportamento mágico que nasceu a religião e é em torno dele que gira a cultura primitiva foi chamada pré-animismo. (Cf. MARRET, The Threshold of Religion, 1909; G. FRAZER, The Golden Bough, 1911-14; MALINOWSKI, Magic Science and Religion, 1925). Animismo (al animismes, do lat. anima: alma), segundo Hilton Japiassú e Danilo Marcondes (Dic. Bás. de Filosofia). 1. Doutrina segundo a qual a alma constitui o princípio da vida orgânica e do pensamento. 2. Concepção que consiste em atribuir alma às coisas. Em outras palavras, crença segundo a qual a natureza é regida por almas ou espíritos análogos à vontade humana. 3. Em seu sentido estrito, o animismo é uma teoria antropológica que tem por objetivo explicar as crenças religiosas dos povos primitivos através de uma personificação dos fenômenos naturais, sob a forma de vontades múltiplas e contraditórias. Contudo, os fenômenos animistas se verificam também no chamado “homem civilizado”, especialmente nos doentes mentais e nos que são dominados por um pensamento infantil. Elemento Físico.

Para Georg Ernst Stahl, químico e físico alemão, em 1708, anima seria um elemento físico que vitaliza corpos vivos assim como outro elemento, o flogisto, permitiria a queima ou a oxidação de alguns materiais. A matéria poderia conter mais ou menos do material de queima básico, o flogisto, e também poderia conter mais ou menos da anima, o material vivo elementar. De acordo com Harvey (2006), essa teoria serviu para ilustrar o entendimento, naquele momento, de que os objetos materiais eram, de alguma forma, animados. (HARVEY, 2006, p. 3-4). Tendência Natural. David Hume, autor de História Natural da Religião (1757, p. 17-18), escreveu sobre a tendência do ser humano de transferir suas qualidades para os objetos, embora não tenha utilizado o termo animismo. A atribuição de um poder invisível a elementos da natureza pode, de acordo com o filósofo britânico, influenciar pessoas desinformadas que os aceitariam como um credo e passariam a reconhecer sua dependência de poderes superiores ou de divindades que possuem sentimentos e inteligência, incorrendo em superstição. Os homens, nas eras bárbaras, desconheciam o único Criador, eram seres ignorantes sobre astronomia e anatomia de animais e plantas, pouco curiosos sobre a perfeita ordem do mundo e, por isso, afetos à superstição. Acreditavam que suas divindades, embora poderosas, seriam espécies de seres humanos os quais, incapazes de exercer seu poder em todos os lugares, precisavam ser multiplicados para atender à variedade de eventos em toda a Natureza, dando origem assim ao politeísmo. De acordo com Harvey (2006), Hume consideraria a atribuição de qualidades humanas para coisas materiais adequadas à poesia, mas como filosofia ou religião seria absurda, vulgar e ignorante (p. 4-5). A Doutrina das Almas: Para o antropólogo inglês Edward B. Tylor, em Primitive culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom (1891 e 1920) a doutrina do animismo faz um contraponto a alguns trabalhos de etnologistas que “equivocadamente descreveram os primitivos como seres desprovidos de religião” (TYLOR, 1891, p. 423-424). Tylor argumentava que o requisito indispensável ao estudo das religiões desses povos não seria um sistema religioso organizado (os etnologistas procuravam marcas do cristianismo ou adoração a ídolos, por exemplo), mas a crença em seres espirituais, uma forma de religião, antes de um estágio religioso da cultura. Por esse motivo, o autor abandonou a palavra espiritualismo, por ser empregada de forma generalizada e por estar associada a seitas modernas, e passou a utilizar a palavra animismo para designar a doutrina da alma e de outros seres espirituais em geral (TYLOR, 1891, p. 23), para a qual todos os elementos da natureza, as coisas, plantas e animais podem possuir alma e vida própria (p. 285); animismo, para esse estudioso, também se refere à crença na vida após a morte, na presença de divindades controladoras e espíritos subordinados, resultando em algum tipo de adoração (p. 427). O animismo fundamenta-se, no homem primitivo, numa filosofia da natureza que é consistente, real e com significado (p. 285) e é considerado pelo antropólogo como um estágio anterior à religião. Estágio da Religião.

Antropologista como Tylor, Sir James George Frazer, em The Golden Bough: a study of magic and religion (1922), associa animismo à magia e a um esquema de desenvolvimento intelectual de três estágios: o do pensamento e das práticas mágicas (entre elas os mitos); o da religião; e o da ciência. Tanto Tylor quanto Frazer foram influenciados por pelas ideias evolucionistas de Herbert Spencer (ROONEY, 2000, p. 8). Para Frazer, o “selvagem” considerava todo o mundo animado, e as árvores e plantas seriam os corpos onde habitavam espíritos, fato considerado pelo estudioso como um estágio da religião que se desenvolveu para o politeísmo (HARVEY, 2006, p. 5). Freud. Na direção apontada por Tylor e Frazer, Freud utiliza o termo animismo na área da psicanálise em Animismo, Magia e Onipotência das Ideias (2006). O animismo “em seu sentido mais estrito é a doutrina de almas e, no mais amplo, a doutrina de seres espirituais em geral”. Essa doutrina sustenta a ideia de que os objetos inanimados, os animais e os vegetais também são animados por espíritos ou por demônios (Ibidem, p. 87); os povos primitivos possuíam “uma visão da natureza e do universo altamente notável”, ou seja, eram capazes de perceber os fenômenos da natureza e a necessidade prática de dominá-los (FREUD, 2006, p.89). O homem primitivo reagiria aos fenômenos sobre os quais precisava refletir, e a partir dessa reflexão teria formado a ideia de almas, transferindo-a para os objetos ao seu redor. Para Wundt (1906, p. 154), citado por Freud, as ideias animistas “constituem produto psicológico necessário de uma consciência mitocriadora […] a expressão espiritual do estado natural do homem”, sendo então “perfeitamente natural que o homem primitivo tivesse reagido aos fenômenos que despertavam suas especulações através da formação da ideia da alma e, depois, de sua extensão aos objetos do mundo exterior” (FREUD, 2006, p. 88); o animismo é um sistema de pensamento, uma das três grandes representações do universo, a saber: a animista (ou mitológica), a religiosa e a científica. O animismo “contém os fundamentos sobre os quais as religiões posteriormente foram criadas”, mas não é uma religião; é um estágio anterior em que o homem podia “apreender todo o universo como uma unidade isolada de um ponto de vista único” (Ibidem, p. 89). A abordagem da psicanálise adota a ideia de evolução do modo de apreensão do mundo, assim como as etapas de Frazer, ou seja, o homem primitivo evoluiu de um estágio do pensamento anímico para as formas de religião organizada e posteriormente para o pensamento científico. Wilhelm Dilthey (1961), em Poética, “a lei do belo e as regras da poesia só podem ser derivadas da natureza humana […] A poética havia tido primeiro um ponto de apoio no clássico, de onde nasciam suas abstrações, depois em qualquer conceito metafísico do belo; agora deve buscá-lo na vida anímica.” (p. 48). Num primeiro momento, a vida anímica estaria relacionada à natureza humana, às características universais do ser humano no seu contexto histórico, o que faz Dilthey indagar sobre os processos que “condicionam a poesia” (p. 24): Assim chegamos ao mesmo problema básico, ainda que somente em sua forma histórica: podemos conhecer como estes processos fundados na natureza do homem, que agem por consequência em todas as partes, originam estes grupos de poesia que distinguem a povos e épocas? Tocamos com isso a mais profunda realidade das ciências do espirito: a historicidade da vida anímica que exterioriza em todo o sistema de cultura produzido pela humanidade.

Así llegamos al mismo problema básico, aunque sólo em su forma histórica: ¿Podemos conocer cómo estos processos fundados en la naturaleza del hombre, que obran por conseguiente en todas partes, originan estos grupos diversos de poesia que distinguen a pueblos y épocas? Tocamos con estol a más profunda realidad de las ciencias del espíritu: la historicidade de la vida anímica que se exterioriza en todo o sistema de cultura producido por la humanidad. (DILTHEY, 1961, p. 25)

“Elementos anímicos” (p. 53) presentificam-se na organização do poeta. O objeto da poesia é, segundo Aristóteles, o homem em ação. A base de toda verdadeira poesia é, por consequência a vivência, experiência vivida, elementos anímicos de toda espécie que entram em relação com ela.

 El objeto de la poesia es, según Aristóteles, el hombre em acción. Y aunque esta fórmula sea demasiado estrecha, puede afirmarse que um elemento psíquico o una combinación de tales elementos puede ser parte integrante de la poesia sólo em la medida em que está em relación com una vivencia e representación. La base de toda verdadeira poesia es, por conseguiente, la vivencia, experiência vivida, elementos anímicos de toda espécie que entran em relación com ella. (p. 53)

Esses “elementos anímicos” parecem estar relacionados com as imagens da vida, o solo de que a poesia se alimenta (p. 54). Nesse sentido, “elementos anímicos” poderiam ser entendidos como as imagens do mundo real que são “processadas” pela alma do poeta, que lhes imprime a sua visão e as suas impressões, já que o poeta possui uma “enérgica animação das imagens” (p. 62). Do mundo exterior procederia o jogo dos estímulos que se projeta na vida anímica.

Todo el complejo anímico adquirido actúa sobre los processos de formación. Modifica e configura las percepciones, representaciones y estados que se hallan justamente en el foco de la atención, y que por conseguinte cuentan com la mayor excitación de la consciência. Este complejo adquirido de nuestra vida anímica abarca no sólo nuestras representaciones sino también las determinaciones estimativas originadas em nuestros sentimentos y las ideas teleológicas nacidas de nuestros actos voluntarios, y hasta de los hábitos de nuestro sentimiento y de nuestra voluntad. No sólo consiste em los contenidos, sino también em las combinaciones que se establecen entre ellos y que son tan reales como los contenidos. […] Del mundo exterior procede el juego de los estímulos que se proyecta en la vida anímica. (DILTHEY, 1961. p. 70)

A criação poética ocorreria a partir da imaginação e sentimento. Vida anímica, elementos anímicos e processos anímicos estariam relacionados à Anima (alma), como um todo de percepção e reelaboração do real a partir das vivências do poeta. Além da fundamentação psicológica sobre o animismo, Dilthey alicerça na antropologia os fundamentos de sua teoria da poética, afirmando que é preciso buscar as criações elementares na experiência dos povos primitivos, por meio do método de “empirismo histórico-literário” (p. 139). Suas fontes de pesquisa incluem, por exemplo, Anthropologie der Naturvölker, de Theodor Waitz (DILTHEY, 1945, p. 147) e Anfänge der Kultur (Primitive Culture) de Tylor (p. 149). As grandes emoções da alma, segundo o autor, “sempre que não levem a ações voluntárias”, manifestam-se em sons, em gestos e na combinação de canto e poesia, o caso das manifestações entre os griots negros e índios norte-americanos, exemplos que o autor de Poética da obra de Theodor Waitz (DILTHEY, 1961, p. 147).

Jean Piaget (1990) utiliza o termo animismo em seus estudos de epistemologia genética para nomear a atribuição que as crianças fazem, por analogia, a características de subjetividade que correspondam a seus próprios movimentos ou atividades direcionadas a objetos materiais. (PIAGET, 1990, p. 321). O animismo refere-se a uma fase do desenvolvimento do pensamento da criança, na qual ela age sobre a sua realidade com certa fantasia, mobilizando imagens mentais (os símbolos), construindo sua subjetividade, processos sobre os quais novos esquemas serão consolidados no período operatório concreto, em que o desenvolvimento da objetividade e da coerência se diferencia dos dados subjetivos; o animismo é visto como a atitude de atribuir às coisas uma alma análoga à alma humana; doutrina segundo a qual a alma é o princípio das funções vegetativas das funções mentais; crença das crianças de que todo objeto que se move ou age é dotado de vida no mundo insólito do faz-de-conta. Antigo Animismo e Novo Animismo: A palavra animismo, de forma geral e nas diferentes áreas, está relacionada à ideia de algo que faz um ser estar vivo – seja um elemento, seja um espírito, seja uma ideia ou filosofia. Também está relacionada à origem e/ou natureza da religião nos estudos de antropólogos europeus. Essa perspectiva, de acordo com Harvey (2006), é considerada como o antigo animismo. Já o chamado novo animismo é fundamentado nos estudos do antropólogo norte-americano Irving Hallowell, cuja abordagem defende que o animismo é mais do que uma visão “encantada” do mundo: é uma interação cultivada com o mundo, no qual existem melhores ou piores maneiras para o relacionar-se e o agir (HARVEY, 2006).

Philippe Descola: Antropólogo francês (1949), discípulo de Lévy-Strauss, para a construção do conceito de animismo toma como ponto de partida a humanização do mundo animal e vegetal pelos povos autóctones e desemboca numa espécie de extensão e de ampliação da própria natureza, um “continuum” que integra os homens, os animais, as plantas, muito distante de nossas concepções mais comuns (por exemplo, a da natureza como exterioridade ou como espaço virgem). Interessou-se o autor pela teoria sociológica do totemismo de Radcliffe-Brown, ao tentar entender a relação que os aborígenes australianos estabelecem com objetos e fenômenos naturais, a interação da ordem natural e da ordem social, graças à similaridade que estabelecem entre eles mesmos. Investigando esse tipo de fenômeno na Amazônia, observa que lá o totemismo sociológico não é muito comum, apresentando-se “combinado com formas individuais de relações em que os animais são tratados como pessoas” e constrói um conceito híbrido a que chamou de “animismo”. Descola leva em conta a ideia de Husserl, segundo a qual se o homem abandonasse a representação do mundo instituído e tudo que ele representa, o único recurso para autoavaliação que teriam disponíveis então seriam seus corpos e sua intencionalidade, o que o autor francês denomina fisicalidade e interioridade, dualidade que julga inata e específica à espécie humana. Essa dualidade lembraria, com efeito, o corpo e a anima aristotélica? perguntamo-nos. A interioridade e o Nous do pré-socrático Anaxágoras? Descola observa quatro modos de identificação: o Totemismo (semelhança entre fisicalidade e interioridade); o Analogismo (interioridade e fisicalidade inteiramente distintas); o Animismo (interioridade similar e fisicalidade diferente); e Naturalismo (objeto desprovido de interioridade, mas um tipo similar de fisicalidade). Por identificação, o autor refere-se ao mecanismo por meio do qual o sujeito irá detectar diferenças e similaridades entre si mesmo e os objetos do mundo, por inferência de analogias e distinções de aparência e comportamento entre o que ele experimenta como característico dele mesmo e os atributos a entidades que o rodeiam. Como uma descontinuidade de corpos e uma continuidade de almas, Animismo “é muito comum no norte e no sul das Américas, na Sibéria e em algumas partes do sudoeste asiático, onde pessoas dotam plantas, animais e outros elementos de seus ambientes físicos de subjetividade estabelecem com essas entidades todo tipo de relação pessoal, seja de amizade, troca, sedução ou hostilidade. Nestes sistemas animistas, humanos e muitos seres não-humanos são concebidos como dotados do mesmo tipo de interioridade, e por esta subjetividade comum é dito que animais e espíritos possuem características sociais: vivem em aldeias, seguem regras de parentesco e códigos éticos, desempenham atividades rituais e trocam objetos.” Mesmo que muitas espécies compartilhem uma interioridade idêntica ou similar, cada uma possui sua própria fisicalidade. A metamorfose desempenha importante papel nos sistemas animistas uma vez que é o que permite a interação, num mesmo patamar, entre entidades com corpos totalmente diferentes.

Eduardo Viveiros de Castro. Na concepção do perspectivismo, “comum a muitos povos do continente, o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos.” Abdicando da herança dicotômica, o dualismo Natureza e Cultura, gerador das oposições objetivo e subjetivo, físico e moral, fato e valor, dado e construído, necessidade e espontaneidade, imanência e transcendência, corpo e espírito, animalidade e humanidade, entre outros, o autor propõe o termo “multinaturalismo”: “Outrora, era preciso contestar a assimilação do pensamento selvagem ao animismo narcísico, estágio infantil do naturalismo, de acordo com o totemismo com a distinção cognitiva entre o homem e a natureza. Hoje, o animismo é de novo imputado aos selvagens, mas desta vez ele é largamente proclamado como reconhecimento da mestiçagem universal entre sujeitos e objetos, humanos e não-humanos, a quem nós modernos sempre estivemos cegos, por conta de nosso hábito tolo, para não dizer perverso, de pensar por dicotomias. Da húbris moderna, salvem-nos os híbridos primitivos e pós-modernos.” (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 235). É sujeito quem tem alma e tem alma quem é capaz de um ponto de vista. Segundo o perspectivismo ameríndio, o ponto de vista cria o sujeito; ter ponto de vista é ter posição de sujeito, e será sujeito o que se encontrar ativado ou agenciado a um ponto de vista: “Deixemos claro: os animais e outros entes dotados de alma não são sujeitos porque são humanos, mas o contrário – eles são humanos porque são sujeitos. […] O animismo indígena não é uma projeção figurada das qualidades humanas substantivas sobre os não-humanos; o que ele exprime é uma equivalência real entre as relações que humanos e não-humanos mantêm consigo mesmos: os lobos veem os lobos como os humanos veem os humanos – como humanos. O homem pode bem ser um “lobo para o homem”, mas em outro sentido, o lobo é um homem para o lobo. […] a condição comum aos humanos e animais é a humanidade, não a animalidade é porque a humanidade é o nome da forma geral do Sujeito.” (Idem, p. 237). Por xamanismo entende-se o modo de agir que implica um modo de conhecer, ou antes, um certo ideal de conhecimento, o oposto polar da epistemologia objetivista favorecida pela modernidade ocidental. Para a modernidade ocidental, conhecer é objetivar, distinguir no objeto o que lhe é intrínseco do que pertence ao sujeito cognoscente. A objetivação é o jogo epistemológico, o que não é objetificado permanece irreal e abstrato. A forma do Outro é a coisa. Ao contrário, o xamanismo ameríndio visa algo que é um alguém, um outro sujeito ou agente. A forma do Outro é a pessoa, de tal modo que a personificação ou subjetivação xamânicas refletem uma propensão para a intencionalidade, uma “arte política”. Caroline Rooney (1957), nascida no Zimbabwe, professora de literatura pós-colonial na Universidade de Kent, no Reino Unido, propõe em African literature, animism and politics (a manutenção do termo animismo como uma forma de contrapor o discurso etnocêntrico aplicado ao pensamento africano, 2006). Há ainda uma similaridade entre os conceitos de chama, espírito, sopro ou hálito nas culturas gregas, judaicas e africanas. O animismo possui a capacidade de interligar o literário e o filosófico, sendo apto para a interpretação de autores como Birago Diop, Thomas Mofolo, Bessie Head, Amos Tutuola e Ben Okri. Rooney (2006) observa um princípio animista geral no que ela denomina “uma teoria do trauma”, “uma teoria da possessão dos espíritos” e “uma teorização da criatividade”, definível por uma introjeção, uma identificação mimética e uma recepção subjetiva de outros seres ou de outras forças.

What I have been trying to do is patch together a theory of trauma with a theory of spirit possession, together with a theorisation of creativity, in order to indicate that there is something of a general animistic principle in these states, definable by introjection, mimetic identification, and a subjective reception of other beings or forces. (ROONEY, 2006, p. 146)

No animismo proposto por Rooney, seguindo a orientação teórica de Robin Horton, consideram-se as forças impessoais tratadas pela ciência ocidental como forças pessoais. Tais forças pessoais manifestam-se como espíritos ou criaturas não-humanas. Particular interesse é dado a obra de Amos Tutuola, na qual ocorre.

Uma série de encontros assustadores ou cativantes com seres ou forças estranhas, às vezes espíritos, às vezes pessoas vivas, às vezes “mortos”, às vezes seres animais, e assim por diante. (ROONEY, 2006, p. 146, tradução nossa)

A series of frightening or compelling encounters with strange beings or forces, sometimes spirits, sometimes living people sometimes ‘deads’, sometimes animal beings, and so on. (ROONEY, 2006, p. 146)

Aqui o ponto central da interação animista se explicita no encontro insólito entre os humanos e os não-humanos. Nesse sentido, o animismo africano representa mais do que uma doutrina das almas, como considerou a antropologia: os seres ou acontecimentos considerados insólitos, pelo leitor não africano, atuam numa demonstração de unidade. Harry Garuba (1958), poeta nigeriano e professor no Centre for African Studies (CAS), na Universidade da Cidade do Cabo, teoriza sobre o realismo animista a partir de observações acerca da figura de Xangô na cultura nigeriana contemporânea, que aparece como a entidade protetora dos eletricistas na Nigéria contemporânea, assim como Ogun é tomado como guardião dos mecânicos e das rodovias. Garuba propõe um inconsciente animista orientado pela expressão “reencantamento do mundo”, alusão a Frederich Schiller (“desencantamento do mundo”), esta lembrada por Max Weber ao tratar das mudanças e práticas decorrentes da racionalização secular da modernidade e da ascensão do capitalismo. Ao tratar do realismo animista, Garuba aponta elementos animistas nas obras de Wole Soyinka, Salman Rushdie, Gabriel García Márquez e Toni Morrison. Ilustra o argumento com a passagem de Cem Anos de Solidão em que o personagem Melquíades explica a ação de um ímã como capaz de animar os metais. Comparando o animismo e as metafísicas monoteístas, Garuba afirma que em vez de “erigir imagens esculpidas para simbolizar o ser espiritual, o pensamento animista espiritualiza o mundo do objeto, dando assim ao espírito uma habitação local.” (GARUBA, 2012, p. 239-40). A importante conclusão acerca do realismo animista está na influência que ele exerce através de um “inconsciente animista” nas formas culturais materiais das sociedades contemporâneas. Desse modo, não é adequado restringir o animismo à esfera do religioso. O pensamento animista reorganizaria os discursos científico e moderno, afetando o comportamento social, a produção econômica e a criação artística.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
ARISTÓTELES. De Anima. Livros I, II e III. Apresentação, tradução e notas de Maria Cecília Gomes dos Reis. 2.ed. São Paulo: 34, 2012.
DESCOLA, Philippe. Além de natureza e cultura. Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia. Pelotas, v. 3, n. 1, p. 7-40, 2015.
DILTHEY, Wilhelm. Poética. La imaginación del poeta. Las tres épocas de la estética moderna y su problema actual. Buenos Aires: Editorial Losada, 1961.
GARUBA, Harry. Explorações no realismo animista: notas sobre a leitura e a escrita da literatura, cultura e sociedade africana. Tradução de  Elisângela da Silva Tarouco. Nonada Letras em Revista. Porto Alegre. ano 15, n. 19, p. 235-256, 2012.
HARVEY, Graham. Animism: respecting the living world. New York: Columbia, 2006.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3.ed. Revista e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
HUME, David. A Natural History of Religion (1757). Edition created and published by Global Grey, 2015. Disponível em: http://www.globalgreyebooks.com/Pages/the-natural-history-of-religion.html. Acesso em 24 ago. 2016.
OS PENSADORES. Os pré-socráticos. Seleção de textos e supervisão José Cavalcante de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
ROONEY, Caroline. African literature, animism and politics. London: Routledge, 2006.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: O que nos faz pensar. Rio de Janeiro: PUCRJ, p. 225-254, 2004.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. 5.ed. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

TYLOR, Edward B; D.C.L., LL.D., F.R.S. The science of culture. In: Primitive culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom I. 3.ed. London: John Murray, Albemarle Street, p. 23, 1891. Disponível em: http://www.archive.org/stream/primitiveculture1891tylo#page/n3/mode/2up. Acesso em 02. set. 2013.
WAITZ, Theodor. Anthropologie der Naturvölker, 1864. Disponível em: https://archive.org/details/anthropologieder04waituoft. Acesso em 13 maio. 2014.