MARAVILHOSO-CIENTÍFICO

Bruno Anselmi Matangrano

Mais do que apenas um gênero literário nascido na virada do século XIX para o século XX, o maravilhoso-cientifico se estruturou em um movimento surgido na França na década de 1890 tendo perdurado até cerca de 1930, embora seus ecos ainda possam ser sentidos em produções contemporâneas. O nome foi pego emprestado dos escritos de Marcel Réja – pseudônimo do médico e poeta simbolista Paul Gaston Meunier (1873–1957) (ver COUET, 2016) – que o havia utilizado, sem o hífen, “para designar a conversão científica de práticas outrora maravilhosas ou sobrenaturais e seu estudo por cientistas reconhecidos” (HOPKINS, 2019b, tradução nossa). Os principais autores cujas obras foram classificadas, vendidas ou divulgadas como pertencentes a essa então nova categoria são: Maurice Leblanc (1864-1941), Guy de Téramond (1869-1957), J.-H. Rosny (aîné) (1856-1940), Jean de La Hire (1878-1956), Octave Béliard (1876-1951), Gustave le Rouge (1867-1938), Jacques Spitz (1896-1963), além de, é claro, Maurice Renard (1875-1939), responsável por defini-la e divulgá-la ao grande público.

Os fundamentos desse novo gênero foram sistematizados por Renard em um artigo intitulado “Du roman merveilleux-scientifique et de son action sur l’intelligence du progrès” [Do Romance maravilhoso-científico e de sua ação sobre a inteligência do progresso], publicado em outubro de 1909, no jornal Le Spectateur. No parágrafo final de seu texto-manifesto, Renard (2018) define o conceito da seguinte forma: “O romance maravilhoso-científico é uma ficção que tem por base um sofisma; por objeto, levar o leitor a uma contemplação do universo mais próxima da verdade; por meio, a aplicação de métodos científicos ao estudo compreensivo do desconhecido e do incerto” (tradução nossa). Ou seja, trata-se de uma narrativa baseada num princípio – científico, tecnológico ou mesmo antropológico – que seria extrapolado para muito além dos conhecimentos de então, numa tentativa de projetar literariamente possibilidades de futuros especulativos. Em outras palavras, o maravilhoso-científico, a rigor, em muito se aproxima ou mesmo se sobrepõe ao que hoje conhecemos sob o termo guarda-chuva de ficção científica (doravante grafada FC) e, nesse sentido, parece ter sido um momento inicial da FC – temporal e espacialmente bem definido – que, pouco a pouco, foi absorvido pela macrocategoria à medida que esta se multiplicou e se diversificou.

Não por acaso, no Brasil o termo “maravilhoso-científico” foi muitas vezes lido de forma um tanto enviesada como um sinônimo exato de FC. No entanto, na França, país onde surgiu, um distingue-se do outro, ao menos, no início do século XX. Claro que ambos possuem pontos de contato e é sobre estes que Tzvetan Todorov (1939-2017) comenta em sua Introdução à literatura fantástica ao identificar uma filiação entre os dois, definindo o primeiro como quando “o sobrenatural é explicado de uma maneira racional mas a partir de leis que a ciência contemporânea não reconhece […], são histórias [por exemplo] em que intervém o magnetismo que […] explica ‘cientificamente’ acontecimentos sobrenaturais, porém, o próprio magnetismo pertence ao sobrenatural” (2008, p. 63).

A FC, por um lado, teria um escopo bem mais amplo e, por outro, uma trajetória distinta. Se um autor como Maurice Renard pode ser visto hoje como vinculado a ambas as vertentes, na medida em que a FC incorporou o que hoje conhecemos como maravilhoso-científico, um nome como o de Jules Verne (1828-1905), não possibilita a ambivalência, como o próprio Renard explicita em seu artigo. Verne seria, assim, autor de obras associáveis à FC, mas não ao maravilhoso-científico, pois suas histórias trazem tecnologias semelhantes às que lhe eram contemporâneas, mesmo se extrapoladas um pouco, capazes de serem compreendidas pelos pressupostos lógicos de sua época, mesmo se ainda não disponíveis, tal como as descreve, no momento da publicação de seus romances, a exemplo do submarino de Vinte mil léguas submarinas. Grosso modo, toda obra de maravilhoso-científico é também uma FC, mas nem toda FC pode ser associada enquadrada nos pressupostos do movimento-gênero teorizado por Renard.

Nos termos de Bros, “Jules Verne e Maurice Renard se encontram então em um mesmo objetivo: oferecer ao leitor o desconhecido, o além, seja ele puramente fictício (Renard) ou perfeitamente possível, mas inacreditável (Verne), para fazer o leitor sonhar, seja com a viagem circunterreste de um, seja com a psiquê, a alma, o maravilhoso do outro” (2019). Ou seja, no caso do maravilhoso-científico, não há uma preocupação estrita com a verossimilhança, embora o componente científico esteja presente para de alguma forma embasar e/ou explicar os acontecimentos maravilhosos da trama. Nesse sentido, talvez se aproxime da vertente que viria a ficar conhecida como “soft science fiction”, baseada em teorias das ciências humanas e sociais (em oposição, portanto, à hard science fiction que se dedicaria unicamente às ciências exatas e biológicas), onde vemos com frequência uma exploração de elementos hoje mais associados à fantasia, como outros mundos e outras raças.

Vale lembrar, no entanto, que o maravilhoso-científico, tal como definido e defendido por Maurice Renard, é um gênero essencialmente francês e circunscrito a um período de tempo bem delimitado: o início do século XX, apesar de se inspirar em vários autores de língua inglesa, considerados pelo escritor como os pioneiros ou os precursores do gênero, como Edgar Allan Poe (1809-1849), Robert Louis Stevenson (1850-1894) e H. G. Wells (1866-1946). Dentre seus principais precursores francófonos, são citados nomes como os de Albert Robida (1848-1926) e Paul d’Ivoi (1856-1915), cujos trabalhos retomam as Viagens Extraordinárias de Verne, acrescentando, no entanto, uma gama de máquinas e invenções muito mais fantasiosas e absurdas. Renard cita ainda nomes como Camille Flammarion (1842-1925), ainda hoje conhecido como um dos precursores da FC à francesa, mesmo se sua obra incorpora grandes traços de misticismo e ocultismo, Villiers de L’Isle-Adam (1838-1889), mais associado às poéticas simbolista e decadente a despeito da importância do maravilhoso, do fantástico e da antecipação na maioria de suas obras, ou ainda autores hoje praticamente esquecidos, como Edmond About (1828-1885) e Charles Derennes (1882-1930) (cf. MUSNIK, 2019). No entanto, a despeito dessa demarcação geográfica tão estabelecida, Fleur Hopkins recorda o impacto do gênero ainda no início do século XX, nas literaturas de outros países europeus, nomeadamente, em Itália, Reino Unido, República Checa, Rússia e Espanha, onde muitos dos romances franceses foram traduzidos e imitados. “O periódico italiano Il Romanzo Mensile”, por exemplo, “traduziu mais de 26 narrativas de maravilhoso-científico, entre 1908 e 1933” (2019a, tradução nossa).

É importante mencionar ainda que na França do final do século XIX, muitos nomes concorriam para tentar dar conta do fenômeno literário que hoje chamaríamos sem grande hesitação de FC. Um dos termos mais correntes, por exemplo, era a antecipação, que por sentido lógico pretendia abarcar as histórias com elementos futuristas, não necessariamente tecnológicos. Entravam nessa categoria obras associadas às utopias, às distopias, às ucronias, nas quais um componente científico ou tecnológico nem sempre se fazia presente. Outro termo corrente era o das viagens extraordinárias, muito associadas a Jules Verne. Assim eram chamadas narrativas de viagens fabulosas, de mundos perdidos e/ou ainda desconhecidos que, novamente, podiam ou não incorporar elementos científicos ou tecnológicos de seu tempo ou projetados de forma especulativa. Por fim, havia os próprios conceitos de FC e de maravilhoso-cientifico (então ainda escrito sem o hífen, que só seria acrescentado por Renard em 1909). Ambos se sustentavam na ideia de uma extrapolação da ciência ou da tecnologia existentes, mas com abordagens então ligeiramente distintas, como se viu. O foco da primeira era a especulação daquele saber em si, em todas as suas possibilidades, privilegiando aquilo que poderia vir a existir ou acontecer, enquanto o segundo não buscava o rigor científico, mas um mote para uma história que se sabia maravilhosa, ou seja, que abraçava o elemento irreal, mesmo se sustentado por um pensamento a rigor racional. A Ilha do Dr. Moreau, de Wells, é constantemente aludido para exemplificar isso: embora tenha um princípio biológico estruturante, os acontecimentos descritos são inverossímeis e mesmo impossíveis pelas próprias leis da genética e, por isso, a obra serie classificada como maravilhoso-científico. Por esse viés, segundo o pensamento da época, bastaria uma hipótese “não realista para deixar o domínio da ficção científica”, como explica Jean-Baptiste Baronian (2007, p. 153). Em resumo, na França do fim do século e do começo do XX, cada faceta do que hoje chamamos de FC recebia um nome diferente.

Segundo Fleur Hopkins, grande pesquisadora do gênero e curadora da exposição Le Merveilleux-scientifique. Une Science-fiction à la française [O Maravilhoso-científico. Uma ficção científica à francesa] que ficou em exibição na Biblioteca Nacional Francesa, em Paris, entre 23 de abril e 26 de agosto de 2019, “Maurice Renard preconiza a utilização da ciência, não mais como um cenário, mas como um elemento perturbador: a história se passa no mundo racional do leitor, à exceção de uma lei física, química, psíquica ou biológica que é modificada, ou descoberta. A narrativa toma a forma de um sofismo: sob uma aparência verdadeira, o raciocínio científico, no entanto, é falso. Assim, o herói pode ver, de repente, a eletricidade”, por exemplo, “enquanto um cientista ambicioso penetra os segredos da criação da vida, cria super-homens com a ajuda do rádio, ou experimenta a imortalidade. Logo não é mais o chapéu do príncipe duende o que permite se tornar invisível, mas o estudo da mimese dos insetos” (2019b, tradução nossa). Para ela, portanto, o gênero propõe uma forma moderna e atualizada dos contos maravilhosos quando então a magia explicava qualquer acontecimento extraordinário. Ao mesmo tempo, depreende-se do comentário de Hopkins, alguns dos temas mais caros ao gênero, utilizados por ela para estruturar sua exposição na BNF: o cientista-louco, o transumanismo ainda embrionário e os humanos artificiais, a busca por novos mundos, a vida microscópica, a invisibilidade, criaturas de outros mundos, a viagem no tempo e o fim do mundo. Ou seja, tratam-se de temas amplamente presentes na FC e, nomeadamente, naquela de gosto popular, como na tradição pulp norte-americana e no imaginário dos super-heróis das histórias em quadrinhos.

De certa forma, ecos do maravilhoso-científico, tal qual definido por Renard, ainda se fazem sentir em obras contemporâneas, tanto literárias, quanto cinematográficas ou gráficas. Para além das histórias pulp e de super-heróis, outros subgêneros associados à FC como o space opera e o steampunk, por exemplo, podem ser lidos sob à luz de seus preceitos, à medida que se afastam de uma preocupação cientificista para extrapolar os limites da realidade, mesmo se ancorando-se em alguns conceitos tecnológicos. Da parte da fantasia, categorias híbridas, como a steamfantasy (uma fusão de fantasia e steampunk) ou a sciencefantasy (também conhecida como “fantasia científica”, em português) derivam diretamente deste filão, unindo o mágico ao tecnológico. Os livros de Stephen Hunt, como A Corte do Ar e suas continuações, ou a duologia O Peculiar (2014), de Stefan Bachmann, para citar apenas alguns exemplos, bem demonstram as potencialidades dos herdeiros dessa categoria narrativa na contemporaneidade.


REFERÊNCIAS

BARONIAN, Jean-Baptiste. Panorama de la littérature fantastique de langue française. Paris: La Table Ronde, 2007.
BROS, Sophie. Jules Verne: l’extraordinaire plutôt que le merveilleux (cycle merveilleux-scientifique). Le Blog Gallica: La Bibliothèque numérique de la BnF et de ses partenaires, 2019. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/blog/11062019/jules-verne-lextraordinaire-plutot-que-le-merveilleux?mode=desktop. Acesso em 25 out. 2020.
COUET, Lydia. Marcel Réja: médecin, poète symboliste et historien de l’art asilaire. Sociétés & Représentations, n. 41 p. 229-246, 2016. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-societes-et-representations-2016-1-page-229.htm. Acesso em 25 out. 2020.
HOPKINS, Fleur. Le merveilleux-scientifique dans le paysage littéraire français (cycle merveilleux-scientifique). Le Blog Gallica: La Bibliothèque numérique de la BnF et de ses partenaires, 2019a. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/blog/21052019/le-merveilleux-scientifique-dans-le-paysage-litteraire-francais?mode=desktop. Acesso em 22 out. 2020.
HOPKINS, Fleur. Le merveilleux-scientifique: une Atlantide littéraire (cycle merveilleux-scientifique). Le Blog Gallica: La Bibliothèque numérique de la BnF et de ses partenaires, 2019b. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/blog/30042019/le-merveilleux-scientifique-une-atlantide-litteraire?mode=desktop. Acesso em 22 out. 2020.
MUSNIK, Roger. De Jules Verne à Maurice Renard: les précurseurs (cycle merveilleux-scientifique). Le Blog Gallica: La Bibliothèque numérique de la BnF et de ses partenaires, 2019. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/blog/04062019/de-jules-verne-maurice-renard-les-precurseurs?mode=desktop. Acesso em 20.Out.2020.
RENARD, Maurice. Du roman merveilleux-scientifique et de son action sur l’intelligence du progres. ReS Futurae – Revue d’études sur la sciencefiction, n. 11, 2018. Disponível em: http://journals.openedition.org/resf/1201. Acesso em 25.10.2020.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2008.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

Bibliographie sélective – Exposition à la BNF: Le Merveilleux-scientifique. Une science-fiction à la française, 2019. Disponível em: https://www.bnf.fr/sites/default/files/2019-04/biblio_merveilleux_scientifique.pdf. Acesso em 22 out. 2020.
BOUTEL, Jean-Luc. Merveilleux scientifique. Bordeaux: Les Moutons électriques, 2020.
BOUTEL, Jean-Luc. Sur l’autre face du monde: le site des passionnés de Merveilleux Scientifique (portal), s/d. Disponível em: http://www.merveilleuxscientifique.fr/. Acesso em 22 out. 2020.
DEHERLY, Françoise. De la physiognomonie à la phrénologie (cycle merveilleux-scientifique). Le Blog Gallica: La Bibliothèque numérique de la BnF et de ses partenaires, 2019. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/blog/19062019/de-la-physiognomonie-la-phrenologie?mode=desktop. Acesso em 25 out. 2020.
HOPKINS, Fleur. Un miroir déformé du temps présent : optogrammes et rétrovision dans l’imaginaire merveilleux-scientifique français. Revue d’histoire culturelle, 2020. Disponível em: http://revues.mshparisnord.fr/rhc/index.php?id=413. Acesso em 22 out. 2020.
LEHMAN, Serge. Chasseurs de chimères, l’âge d’or de la science-fiction française. Paris: Omnibus, 2006.
LE PAPE, Isabelle. Scientific romances: les précurseurs anglophones du merveilleux scientifique (cycle merveilleux-scientifique). Le Blog Gallica: La Bibliothèque numérique de la BnF et de ses partenaires, 2019. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/blog/14052019/scientific-romances-les-precurseurs-anglophones-du-merveilleux-scientifique?mode=desktop. Acesso em 22 out. 2020.
PÉZARD, Émilie; CHABOT, Hugues (dir). Res.Futurae – Revue d’études sur la sciencefiction, 2018, n. 11. dossier Maurice Renard. Disponível em: https://journals.openedition.org/resf/792. Acesso em 22 out. 2020.
VAS-DEYRES, Natacha. Ces Français qui ont écrit demain. Utopie, anticipation et science-fiction au XXe siècle. Paris: Champion, 2012.