Love é o quinto romance de Angela Carter (1940-1992) e encerra a chamada “Trilogia de Bristol”, classificação proposta por Marc O´Day (1994), devido às muitas características formais e temáticas comuns nas três obras: Shadow Dance (1966), Several Perceptions (1968) e Love (1971), cuja ação se passaria em Bristol, ainda que a cidade não seja diretamente mencionada. Estaria clara a ligação autobiográfica, já que nesta primeira fase de sua produção, Angela Carter estava casada com Paul Carter, professor de Química na Bristol Technical College, tendo, de 1962 a 1965, estudado Inglês na Bristol University, concentrando-se em Literatura Medieval. Nessa época, começou a se interessar por folclore, passando a conhecer a música folk e o jazz dos anos 60. As três obras refletem a vida boêmia dos anos 60, principalmente a vida dos jovens naquele momento histórico e cultural.
O romance apresenta uma estrutura tripartida, ou, como a própria Angela Carter a descreve no posfácio de 1987, “triplamente destilada” (Carter, 1988, p 113). O romance gira em torno do que se convencionou chamar de “triângulo amoroso”, mas esse próprio rótulo parece não dar conta do que acontece aqui. O´Day fala do “triângulo sexual” envolvendo Annabel, Lee e Buzz (O´Day, 1994, p. 47), enquanto Sage o classifica como um “triângulo letal de amor e ódio” (Sage, 1994, p. 20) e Punter prefere chamá-lo de “triângulo distorcido de relações” (Punter, 1991 , p.148).
Muito mais do que um triângulo, ocorre em Love um desdobramento de personagens. Escrito em 1969, o romance só foi publicado em 1971, tendo recebido um posfácio na edição revisada de 1987, em que Angela Carter faz uma avaliação do romance e diz o que aconteceu a cada um dos personagens. Os nomes da heroína, Annabel, e de seu marido Lee ecoam o título do último poema de Edgar Allan Poe, “Annabel Lee”. Como diz o eu lírico do poema, “I was a child and she was a child” , e embora nem os anjos nem os demônios possam separar sua alma da alma da amada, tudo o que lhe resta é deitar-se ao lado do sepulcro de Annabel Lee na praia.
De certo modo, Love mantém o tom do poema. O texto é, como afirma a própria autora, o caixão de Annabel (Carter, 1988, p.114). A personagem feminina aqui se perde, porque, como o eu lírico em “Annabel Lee”, não consegue distinguir os limites que a separam do outro; tampouco vê fronteiras entre o fora e o dentro, entre o real e a fantasia. Já o início da narrativa nos traz Annabel no reino da ambiguidade: “she had no instinct for self-preservation if she was confronted by ambiguities”( Carter, 1988, p.1). A personagem vive alienada num mundo próprio e se comunica através de seus desenhos e pinturas, o que combina com a atmosfera surrealista da obra. Em certa passagem, ao marcar seu espaço com tinta, Annabel não percebe que muito de seu sangue está misturado nessas cores. O texto, porém, faz uma pintura surrealista dos corpos dos dois, manchados de tinta e sangue:
They rolled all over the pastel crayon scattered on the sheets so her back was variegated with patches and blotches all the colours of the rainbow and Lee was also marked everywhere with brilliant dusts, both here and there also darkly spotted with blood, each a canvas involuntarily patterned by those workings of random chance so much prized by the surrealists. (Carter, 1988, p.34)
Quase ao final do romance, apenas por um momento Annabel parece conseguir romper com o papel de vítima e se tornar agente, rápido vislumbre das futuras heroínas carterianas: após fazer sexo com Buzz, ela vai para casa e decide seduzir Lee, agindo de tal modo que ele não a reconhece, como se vê na referência ao folclore haitiano:
In the folklore of Haiti, there exist female demons named diablesses who are so avid for pleasure they seduce the living only to abandon them at the end of the lascivious night among the white graves of a cemetery (Carter, 1988, p. 96).
Desse modo, Love discute questões de gênero, sexualidade, autoconhecimento, trabalhadas de forma entrelaçada com a linguagem da pintura e outros conhecimentos.
REFERÊNCIAS
CARTER, A. Love. London: Picador, 1988.
O’DAY, M. ‘Mutability is Having a Field Day’: the Sixties Aura of Angela Carter’s Bristol Trilogy. In: SAGE, L. (Ed.) Flesh and the Mirror: Essays on the Art of Angela Carter. London: Virago, p. 24-59, 1994.
POE, E. A. Annabel Lee. New York Daily Tribune, New York, 9 out. 1849. Disponível em https://www.poetryfoundation.org/poems/44885/annabel-lee. Acesso em 18 de janeiro de 2025.
PUNTER, D. Essential Imaginings: The Novels of Angela Carter and Russell Hoban.
In: ACHESON, J. (Ed.) The British Novel since 1960. New York: St. Martin’s, 1991.
SAGE, L. Angela Carter. Plymouth: Northcote House, The British Council, 1994 (Writers and their Work).