LEWIS CARROLL – ficcionista

Ana Carla Vieira Bellon

Pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson (Daresbury, 27 de janeiro de 1832 — Guildford, 14 de Janeiro de 1898), Lewis Carroll marca a autoria da produção literária do autor inglês cujo efeito insólito ficcional é absolutamente potente e marcante. De forma semelhante, também suas fotografias são atravessadas pelo insólito ficcional construindo narrativas que se entrecruzam com sua literatura.A produção literária do autor abarca principalmente os livros de Alice – Alice in Wonderland (1865) e Alice Through the loonking glass (1872) –, as Aventuras de Silvia e Bruno (Sylvie and Bruno, 1895) e A caça ao Snark (The Hunting of the Snark, 1876). Sobre essa produção, é consenso que seus mecanismos de funcionamento perpassem de diferentes maneiras a tradição do insólito ficcional em diferentes perspectivas, desde, por exemplo, o maravilhoso infantil até a linguagem nonsense, que é profundamente investigada no Brasil por meio do estudo de Myriam Ávila em sua obra Rima e solução: a poesia nonsense de Lewis Carroll e Edward Lear (1995).

Já a sua produção fotográfica, muito vasta, está contida em um terreno espinhoso que se perdeu, por muito tempo, nas polêmicas sobre os seus nus infantis. Contudo, há um conjunto de fotografias elaboradas e manipuladas por Carroll no qual a força ficcional é absolutamente potente e cujo efeito insólito é seu mecanismo revolucionário. O prefixo “in-“ significa também adentrar, por isso o in-sólito também é “a quebra da banalidade na dupla regência do prefixo ‘in-’ em negar e adentrar intensivamente o que é sólito: permanência e mudança que se refluem, transitando no que não foi delimitado” (PESSANHA, 2009, p.30). O insólito é o que de dentro do sólito nasce para enfrentá-lo e, ao mesmo tempo, fortalecê-lo, revoluciona, portanto, os paradigmas dicotômicos de real e comum. O efeito insólito de suas fotografias é construído por meio do atravessamento de narrativas populares, lendas e outras construções mais autorais juntamente com a manipulação fotográfica, como a dupla exposição, e montagens de cenários em estúdio.

Em fotografias como The Dream (1863), Annie Rogers and Mary Jackson (1863), The Elopement (1862), Reginald Southey e esqueletos (1857), Fair Rosamund (1863), Saint Georges and the Dragon (1875), Henrietta e Margaret Lutwidge (1859), por exemplo, é notável a potência do insólito ficcional. Carroll foi intensamente inventivo tanto em sua literatura quanto em sua fotografia, a começar por esta última. Morton Cohen comenta sobre um aspecto muito importante em relação a sua inventividade fotográfica, diz que ele foi “o primeiro a fotografar cenas do cotidiano” e que “outras fotos retratam personagens da literatura ou da cultura popular: a Pequena Mendiga, Chapeuzinho Vermelho, um grupo posando de São Jorge e o Dragão” (1998, p.202). Esta característica evidencia o aspecto ficcional de suas composições; além disso, ainda, ele “tentou também produzir efeitos especiais com a máquina fotográfica”, e Cohen cita dois deles: “Colocou sua irmã Margaret diante de um espelho e obteve duas imagens de seu rosto numa fotografia chamada ‘Reflexos’” e “expôs duas vezes uma foto dos filhos dos Barrey para que o menino parecesse um fantasma, e chamou o resultado de ‘The Dream’” (1998, p. 202). Estas passagens apontam tanto para o caráter precursor de Carroll em relação à manipulação de imagens, quanto para a presença de elementos como o espelho e o sonho que são tão presentes nas histórias de Alice. Além disso, se torna evidente, com a citação de Cohen, que além de ficcionalizar, tentar fazer com que o menino da foto pareça um fantasma aponta para uma construção ficcional com elementos insólitos.

Nessa mesma fotografia, The dream, também é possível observar outras linhas construtivas que perpassam muitas outras fotografias do autor. O universo do Let’s pretend, no qual crianças se vestem de personagens adultos e brincam de faz de conta encenando um mundo também adulto é observável inclusive em sua obra literária. Contudo, esse universo desafia qualquer interpretação que se pretenda capturar seus efeitos e categorizá-los em apenas uma ou outra vertente do insólito ficcional, ponto que constrói mais um traço de suma importância na obra de Carroll como um todo no que diz respeito ao insólito.

É perceptível em suas fotografias a revolução da aparente inércia da fotografia, quando tomada como a captura imóvel de uma cena, ao colocar o insólito em cena, que traz, por sua vez, movimento às fotografias por meio da narrativa ficcional.

As fotografias de Carroll vão além dos estatutos de sua época. Manipula elementos insólitos e constrói uma narrativa que deixa suspensa a escolha dicotômica, mantém aberta as inúmeras possibilidades de interpretação exatamente por meio dos mecanismos que constroem o insólito ficcional.

As personagens em diversas fotografias, por exemplo, voltam solitariamente o olhar para a câmera. Esta característica faz também o observador como personagem de sua obra, o inclui enquanto potência ficcional, constrói e revela o devir-personagem do leitor/espectador. O faz potência explícita de sua obra ao coloca-lo quase que literalmente como parte dela.

Em suas obras literárias, a exemplo dos próprios livros de Alice, a reinvenção da linguagem, em relação ao uso não ordinário dos sentidos das palavras, é radical até mesmo em termos literários. Há uma radicalização linguística que constrói um efeito insólito no âmago da linguagem, e que por si só torna absolutamente improvável a captura total dos seus efeitos. Este mesmo efeito do insólito incapturável compõe muitas de suas fotografias e causa uma potencialização infinita de sentidos de todo o conjunto de sua obra ficcional. Derivando daí, provavelmente, o eterno retorno à sua obra.

Ao desafiar os paradigmas da realidade habitual, o insólito desestabiliza a ordem do sistema e provoca um movimento de contra-corrente. O insólito, pelo fato apenas de existir, então, já revoluciona o real, ele opera pela transgressão (COVIZZI, 1970), é a ruptura da obediência às normas (BESSIÈRE, 1974). Alice naquele país das maravilhas se vê em um espaço totalmente transgressor das normas que ela conhece, de forma semelhante ao que ocorre no outro lado do espelho. Um lugar onde as coisas apenas deveriam se apresentar contrárias, rompe com a lógica e se mantém em constante movimento, sem se fixar.

Em Wonderland, caminhos se bifurcam, coisas se transformam em outras de repente, vive-se, sob outra razão, outra lógica, e é o discurso insólito que constrói o funcionamento deste mundo. Não constrói apenas os efeitos de sentido, mas a própria configuração da identidade/alteridade da personagem quando relaciona-se as insólitas alterações de tamanho aos seus próprios processos de pertencimento e não-pertencimento àquele país.

Em Através do espelho, assim como no País das maravilhas, também é por meio dos mecanismos do insólito que se constroem as espacialidades e temporalidades. Essa construção, por sua vez, faz com que os mundos visitados por Alice sejam habitados por personagens como o Chapeleiro, no qual a questão temporal é imanente; e pela própria Rainha no mundo dos espelhos que precisa correr muito para ficar no mesmo lugar, evidenciando velocidades diversas daquele espaço.

Versátil e múltipla, a literatura de Carroll recebe destaque também no universo infantil e infantojuvenil em razão principalmente dos seus efeitos relacionados ao insólito ficcional. Ana Maria Machado se refere a Carroll como o “fundador da literatura infantil de verdade, aquela que não fica querendo ensinar nada, nem dar aulinha, mas faz questão de ser uma exploração da linguagem, matéria-prima de toda obra literária de qualidade” (2001, p.199), afirmação que acentua também o seu virtuosismo no cenário infantojuvenil.

A exploração de linguagem é tanta em sua obra literária que são inumeráveis as releituras que se fazem dela em todos os formatos possíveis. Contudo, uma característica é possível apontar em todas elas, se constroem por meio do insólito ficcional porque é parte intrínseca e fundamental de sua obra.


REFERÊNCIAS

BESSIÈRE, Irène. Le récit fantastique: forme mixte du cas et de la devinette. In: BESSIÈRE, Irène. Le récit fantastique. La poétique de l’incertaine. Paris: Larousse, p. 9-29, 1974.
CARROLL, Lewis. Alice: edição comentada. Introdução e notas, Martin Gardner. Rio de Janeiro: Jorge, 2002.
CARROLL, Lewis. Alice’s adventures in wonderland and through the looking glass. Londres: Penguin, 2009.
COHEN, N. Morton. Lewis Carroll: uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 1998.
COVIZZI, Lenira Marques. O insólito em Guimarães Rosa e Borges. São Paulo: Ática, 1978.
MACHADO, Ana Maria. Texturas: sobre leituras e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
PESSANHA, Fábio Santana. O rio como insólito na terceira margem do homem. In: GARCÍA, Flavio; PINTO, Marcello de Oliveira; MICHELLI, Regina (Org). Anais do V Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional. O insólito em questão. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2009.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

ÁVILA, Myriam. Rima e solução: a poesia nonsense de Lewis Carroll e Edward Lear. São Paulo: Annablume, 1995.
BELLON, Ana Carla Vieira. O insólito revolucionário na literatura e na fotografia de Lewis Carroll. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras, 2019. Disponível em: https://www.bdtd.uerj.br:8443/bitstream/1/5984/1/Ana%20Carla%20Vieira%20Bellon_tese.pdf. Acesso em 26 Out. 2021.
CARROLL, Lewis. Alice’s Adventures in Wonderland. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pp000004.pdf. Acesso em: 26 out. 2021.
CARROLL, Lewis. Alice Through the looking-glass and what alice found there. Disponível em: http://birrell.org/andrew/alice/lGlass.pdf. Acesso em 26 Out. 2021.
HISTORY OF SCIENCE MUSEUM. Photographing Wonderland. Disponível em: https://www.hsm.ox.ac.uk/lewis-carroll-and-alice. Acesso em 26 Out. 2021.
METROPOLITAN Museum of Art. Acervo Lewis Carroll de fotografia. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/283093.#!?q=LEWIS%20CARROLL&perPage=20&searchField=All&sortBy=Relevance&offset=0&pageSize=0. Acesso em 26 out. 2021.
PELIANO, Adriana Medeiros. Através do surrealismo e o que Alice encontrou lá. Dissertação (mestrado) – Universidade de São Paulo, 2012. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/93/93131/tde-22062012-170422/publico/MESTRADOADRIANAPELIANO.pdf. Acesso em 26 Out. 2021.