HISTÓRIAS DE FANTASMAS, literatura – Henry James

Marisa Martins Gama-Khalil

Um verbete sobre os fantasmas na obra de Henry James se justifica, porque essas criaturas possuem um lugar especial no conjunto de narrativas desse escritor (JAMES, 1984a; 1984b), delineando-se como imagens pregnantes. A pesquisadora Walnice Nogueira Galvão (2018) assevera que essas imagens se apresentam como recursos/temas constantes, reverberando-se no conjunto da obra de um escritor. A imagem pregnante pode ser entendida como um concentrado ou condensado de sentido que, dada a sua importância na obra do autor, reverbera-se como uma regularidade estética. Em se tratando da obra de Henry James, pode-se afirmar que as aparições fantasmais se configuram como uma das imagens pregnantes mais centrais, prova disso são coletâneas que enfeixam a obra contística do autor por meio da figuração dos fantasmas; e, ainda, nas coletâneas em que são reunidos vários contos de fantasmas de variados escritores, um conto ao menos de Henry James sempre se faz presente. Enfim, as coletâneas são muitas porque são diversas narrativas de Henry James nas quais o fantasma, se não protagoniza a história, tem uma relação próxima com a personagem protagonista. Os sentimentos suscitados por essa relação podem ser do campo do terror, do medo, ou mesmo da amizade e da paixão. Tzvetan Todorov reconhece a constância da imagem pregnante fantasmal na obra de Henry James, chegando a dedicar um estudo sobre o assunto, intitulado “Os fantasmas de Henry James”, no livro As estruturas narrativas (1979). O interesse de Henry James por fantasmas, demonstrado na regularidade da projeção destes na sua ficção, pode ser validado igualmente no ensaio escrito em 1910, intitulado: “Há uma vida após a morte?”, conforme relata José Paulo Paes no posfácio da coletânea Até o último fantasma (JAMES, 1994).

Como podemos entender o fantasma, essa personagem tão presente nas narrativas de Henry James? Consideremos, em linhas gerais, que esse ser que se situa em uma zona de fronteira – entre o mundo dos mortos e o dos vivos–, portanto, habita duas espacialidades e temporalidades distintas. Remo Ceserani (2006) explica que a personagem que habita a fronteira e se insere nesse efeito limite encontra-se dentro de duas dimensões diversas e até opostas, como é o caso de vida e morte. Posicionado entre duas dimensões, o fantasma oscila entre o que é codificado e o que não é, entre a presença da identidade e a ausência da identidade; tem uma identidade no passado, mas ela se torna sombra assim como sua forma material de espectro. Como explica Yi-fu Tuan (2005, p. 179), “[o]s fantasmas são pessoas mortas que, em algum sentido, ainda estão vivas” e por isso as histórias de fantasmas, desde as populares às mais eruditas, inquietam, na medida em que despertam a possibilidade de algum tipo de existência – boa ou ruim – após a morte; nesse sentido, a presença do fantasma entre o mundo dos vivos é sintoma da complexidade do homem e das coisas que o rodeiam. De acordo com Jean Delumeau (2009, p. 123-4), existiam no passado duas maneiras de compreender a aparição de fantasmas: uma concepção horizontal e naturalista, que acreditava na sobrevivência do duplo e, nesse caso, o defunto, em corpo e alma, que poderia voltar aos espaços por onde andou em vida; e uma concepção vertical e transcendental, a qual defendia a existência dos fantasmas pelo jogo das forças espirituais e imaginárias. Rosalba Campra (2008) analisa os fantasmas a partir das categorias predicativas em concreto x não concreto e animado x não animado. Por situar-se na fronteira entre o concreto e o não concreto, os fantasmas podem atravessar paredes, aparecer de repente ou também desaparecer repentina e sub-repticiamente. O eixo da animação x não animação explica-se porque o fantasma é um morto, ou melhor, provém de um corpo morto, a alma separa-se do corpo e insiste em ser animada apesar de o corpo jazer inerte, apodrecer e depois sumir. Pela forma espectral, eu pontuo mais um eixo opositivo, que é decorrente dos dois anteriores: visível x invisível. A forma fantasmal constitui-se de diferenças em relação a um corpo vivo, ela é etérea, a um só tempo transparência e contorno, vida e morte.

Uma das mais famosas histórias de fantasmas de Henry James é a novela A outra volta do parafuso [The turn of the screw] (JAMES, 2011; 2001), na qual uma mulher, a narradora, é designada como governanta para cuidar de duas crianças em uma mansão isolada e lá, paulatinamente, percebe acontecimentos estranhos, fantásticos e fantasmáticos que a assustam, mas não assustam as crianças; elas parecem desejar a convivência com fenômenos insólitos, como a presença dos fantasmas.

No conto “Sir Edmund Orme” (JAMES, 1994; 2001), um editor resolve publicar uma história contida em papéis velhos trancafiados em uma gaveta, história sobre uma mulher acuada pelo fantasma do homem, Sir Edmund Orme, que ela rejeitara para se casar com outro homem. Ele se suicida e passa a assediar fantasmagoricamente a ingrata amada. Ela consegue ver o fantasma do antigo pretendente rondando os espaços em que ela e especialmente sua filha, Charlotte, em idade casadoira, fazem-se presentes. Um dos pretendentes de sua filha, o narrador, passa a ver também a figura espectral e ambos se aliam por guardarem esse segredo funesto de todos. O pretendente da filha aceitou a situação de modo natural e considerava inclusive que os fantasmas eram menos aterradores do que se divulgava sobre eles. No momento em que Charlotte aceita casar-se com seu pretendente, ela vê o fantasma de Orme, e a Sra. Marden, horrorizada, falece. Dois gritos se ouvem nesse instante: um foi o de Charlotte, porém o outro o narrador não define sua origem, porque poderia ter sido o último grito da Sra. Marden ou o derradeiro grito fantasmal de Orme.

No enredo de “Os amigos dos amigos” [The friends of the friends] (JAMES, 1994; 2001), dois dos amigos da narradora tiveram experiências com aparições de fantasmas, ela viu o fantasma do pai e ele viu o fantasma da mãe. Nas narrativas tradicionais de fantasmas, em geral, as aparições desses seres provocam sentimentos como o medo e o horror, mas, no caso dessa narrativa de Henry James, os sentimentos acionados são positivos, afetivos: da amizade, do amor. Em função da experiência insólita e fantasmal dos amigos, a narradora decide uni-los, porque, no seu entendimento, eles estariam conectados pela alma. Todos os encontros marcados não se realizam. Os desencontros são narrados insolitamente, talvez até mais do que as próprias aparições dos fantasmas. Seriam ambos fantasmas um para o outro? O tempo passa e a narradora fica noiva do seu amigo (ele). E um dia resolve marcar um encontro entre a sua amiga – ela – e agora o seu noivo – ele. Quando o encontro finalmente parecia que daria certo, a narradora, com ciúme, faz com que advenha mais uma vez o desencontro. No final da narrativa, ela morre e aparece fantasmagoricamente para ele. Novamente, em mais essa aparição, o afeto, e não o medo, será a marca desse encontro insólito, sobrenatural.

O conto “A coisa realmente certa” [The real right thing] (JAMES, 1994; 2001) é protagonizado pelo fantasma do escritor Ashton Doyne, que tenta interferir na escrita de sua biografia por um jovem escritor, George Withermore. Este sente a presença do fantasma, no ambiente do escritório, espaço onde realiza a escrita biográfica, mas é quase sempre uma presença sugerida, sub-reptícia. A Sra. Doyne divide com Withermore a sensação da presença fantasmática de seu esposo; ambos acreditam que devem esforçar-se para manter ali, entre eles, aquela presença fantasmagórica. Withermore chegava a considerar a presença fantasmal como consagração do seu trabalho. E assim foi decifrando segredos e enigmas da vida pessoal de Doyne. Havia momentos em que o morto parecia interferir diretamente, colocando, por exemplo, sobre a mesa da escrivaninha uma carta perdida. Contudo, de um determinado período em diante, a fantasmagórica companhia esvaiu-se e Withermore passa a suspeitar que havia alguma reprovação do fantasma em relação ao seu trabalho biográfico. Começa a ter medo não do fantasma e sim de fazer um trabalho errado, desrespeitoso, de estar “despindo” Doyne sem permissão. E, depois de ver uma sombra indistinta perto de si, desiste de acabar a biografia.

Na trama de “O grande e bom lugar” [The great good place] (JAMES, 1994; 2010), o fantasma é igualmente o de um escritor, George Dane, e a trama parece ofertar ao leitor cenas em que é revelado um universo paralelo. Dane sente-se entediado com seus compromissos cotidianos; recebe um jovem escritor desconhecido para o café da manhã e, num momento, manifesta a vontade de trocar de lugar com ele. Para sua surpresa, nesse exato instante, vê-se acolhido em um espaço paradisíaco. Ele migrara para outro corpo e morrera, transformando-se em fantasma? Ou aquele outro corpo já era fantasmático? Fato é que passa a viver naquele espaço, bom e grande, uma existência (fantasmal) completamente outra. Ou tudo aquilo teria sido um simples sonho?

Em “A terceira pessoa” [The third person] (JAMES, 2001), duas primas herdam uma casa de sua família, onde passam a morar. Logo descobrem que a moradia tinha seus mistérios. Num dos quartos aparece o fantasma de um tio, Cuthbert Frush; procuram ajuda do vigário, Sr. Pattern, e descobrem que esse antepassado havia sido contrabandista e morrera enforcado. O fantasma só as deixa em paz depois que uma delas realiza um contrabando.

Na história de “Maud-Evelyn” (JAMES, 2013), uma personagem morta é o centro da trama. Seus pais, O Sr. e a Sra. Dedrick, dedicam suas vidas a manter viva a existência da filha morta. Marmaduke, um solteirão convicto os conhece e passa a cultivar o mito da existência viva de Maud-Evelyn. É como se ele a tivesse conhecido e compartilhado com ela experiências e acontecimentos, até que ele fica noivo de Maud-Evelyn. Tempos depois anuncia que ficara viúvo, Maud-Evelyn havia falecido.

 “Owen Wingrave” (JAMES, 2001) é a história do jovem Owen, que resolve desistir de sua carreira militar, ainda que pressionado pela namorada Kate, pela família e pelo seu tutor no exército. Todos querem demovê-lo da ideia, mas ele quer uma vida de paz e não de guerra. Todos seus antepassados haviam aderido à vida militar. Resolve ser submetido a uma última prova: passar a noite no quarto fantasmagórico daquela casa mal-assombrada da família Wingrave, com o fantasma do tataravô à espreita. Para Owen, o quadro desse antepassado, com todas as tragédias sanguinárias que portava, mexia-se da parede. Owen, após o teste sombrio, é encontrado morto como um soldado em um campo de batalha.

No conto Romance de certos velhos vestidos [The romance of certain old clothes, a short story] (JAMES, 1962; 2001), um de seus primeiros escritos em que o fantástico presentifica, duas irmãs, Viola e Perdita, apaixonam-se pelo mesmo rapaz, Arthur Lloyd. Perdita casa-se com ele, recebendo da mãe um variado e riquíssimo vestuário para iniciar sua vida de dama da sociedade. Perdita é acometida por uma doença logo após o parto de sua filha e falece tempos depois. Antes de falecer faz seu marido jurar que o baú com suas roupas só poderá ser aberto por sua filha, que o herdará. Viola, por algumas circunstâncias, passa a cuidar da sobrinha; nessa convivência diária e íntima, acaba casando com Lloyd. E, logo depois, passa a desejar ter para si as ricas roupas da irmã. Lloyd encontra-a, ao final, morta à frente do baú, ajoelhada, com uma das mãos apoiada no chão e a outra no coração, num gesto aterrador; suas faces ostentavam as marcas de dez feridas horrendas feitas pelas mãos fantasmagóricas de sua irmã.

Um conto de fantasma de James bastante conhecido é A bela esquina [The jolly corner] (JAMES, 1994; 2001), no qual os temas do duplo e do fantasma se encontram. Um homem, que ficara ausente de Nova York por trinta e três anos, retorna para voltar a morar em sua bela casa de esquina e, nela, ele vê o fantasma dele mesmo, ou seja, vê o fantasma daquele sujeito que ele teria sido caso optasse por não sair de Nova York. O trabalho com a imagem fantasmal aqui é complexo, na medida em que o fantasma se instalara nas cavidades do ser do próprio sujeito, ele era uma imagem de si. Na história de “A vida privada” [The private life] (JAMES, 2001) a imagem fantasmal também se delineia por meio do recurso do duplo, uma vez que o narrador relata que, em uma ocasião, é testemunha de que o dramaturgo Clarence Vawdrey estava presente ao mesmo tempo tanto no espaço da festa como em seu quarto, debruçado, como se estivesse a escrever algo. Qual das imagens seria a fantasmal?

Em “A fera na selva” [The beast in the jungle] (JAMES, 1985; 2001), a imagem fantasmal também ocorre de modo complexo, como algo que persegue o protagonista John Marcher; ele pressente algo que o ronda, algum acontecimento “raro e estranho, talvez prodigioso e terrível, que mais cedo ou mais tarde acabaria acontecendo” (JAMES, 1985, p. 24). Marcher acredita que seria um “ataque da fera”, a qual o acossa como uma visão fantasmagórica. Passa a vida à espera desse ataque, compartilhando essa expectativa com sua amiga May Bartram. Essa, depois de um tempo, antes de morrer, adverte seu amigo que a vida dele se esvaíra à espera de algo impalpável, espectral, e que o ataque da fera já acontecera há muito tempo. Marcher faz uma viagem ao Oriente e, andando em um cemitério, encontra um homem que o deixa impressionado. Na verdade, foi a face desse homem que o deixara impressionado, uma face contorcida pela dor, situação que o faz perceber o quanto sua vida passara intocada pela dor, pelas paixões, pelos sentimentos, em função de sua obsessão pela espera da “fera”, uma sombra, um fantasma que o obsidiara e tira-lhe a chance de viver e, inclusive, de amar May.

Em De Grey, um romance [De Grey: a romance] (2022), igualmente não temos um fantasma propriamente dito, mas uma maldição fantasmagórica, misto amor e morte, uma vez que os membros masculinos do clã dos Grey, quando intensamente apaixonados, ou morrem ou atraem para suas esposas a morte. E é o que acontece com Paul, que, no primeiro casamento, perde sua mulher e, no segundo, ele é o alvo da morte. Uma sombra fantasmagórica alinha o enredo do início ao fim e, nesse caso, o fantasma incorpora seres vivos, os quais vivem uma existência fantasmal, com a morte à sua espreita.

Fazendo uso da teoria de Todorov em Introdução à literatura fantástica (2004), podemos ler “O aluguel fantasmagórico” [The ghostly rental] (JAMES, 2001) como uma história em que ocorre o fantástico estranho, já que acontecimentos sobrenaturais recebem, ao fim da narrativa, uma explicação natural. A trama apresenta um estranho ritual do Capitão Diamond, a depositar, de três em três meses, numa casa abandonada, uma certa quantia em dinheiro para arrefecer o fantasma de sua filha, que ele amaldiçoara e expulsara de casa. O leitor vai descobrir, no decorrer do enredo, que naquele lugar não há fantasma de moça, mas a própria moça viva, em carne e osso, a extorquir seu pai.

Em A arte da ficção, Henry James afirma que “[c]apturar o verdadeiro tom e truque, o ritmo estranho e irregular da vida, essa é a tentativa cujo vigor mantém a Ficção em pé” (JAMES, 1995, p. 38). Nesse “ritmo estranho e irregular da vida” talvez, para James, resida suas fronteiras movediças com a morte e por isso sua arte invista nos fantasmas como uma importante imagem pregnante. Podemos perceber com a incidência desse trabalho do encontro de sujeitos com suas mortes ou com as mortes de outrem, a constatação dos deslocamentos do homem, a consciência de que não têm o total poder sobre as coisas que o rodeiam, nem sobre si. A consciência de que muitas vezes suas vidas constituem-se como existências fantasmais: passam pela vida sem experiências efetivas “de carne”, sem experiências concretas que os satisfaçam, vivem, portanto, experiências de sombras, fantasmais.

REFERÊNCIAS

CAMPRA, Rosalba. Territorios de la ficción: lo fantástico. Sevilla: Editorial Renacimiento, 2008.
CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Tripadalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente – 1300-1800: Uma cidade sitiada. Tradução de Lúcia Machado; Heloísa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
GALVÃO, Walnice Nogueira. Posfácio. In: TELLES, Lygia Fagundes. Os contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 729-745.
JAMES, Henry. A arte da ficção. Tradução Daniel Piza. São Paulo: Imaginário, 1995.
JAMES, Henry. A fera na selva. Tradução de Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Rocco, 1985, p. 23-94.
JAMES, Henry. A outra volta do parafuso. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Penguin, 2011.
JAMES, Henry. Até o último fantasma. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
JAMES, Henry. Complete stories: 1864 – 1874. Nova York: The Library of America; Literary Classics of the United States, 1984a.
JAMES, Henry. Complete stories: 1874 – 1884. Nova York: The Library of America; Literary Classics of the United States, 1984b.
JAMES, Henry. De Grey: a romance. Glasgow: Good Press, 2022.
JAMES, Henry. Ghost stories of Henry James. London: Wordsworth Editions, 2001.
JAMES, Henry. Maud-Evelyn. Redditch: Read Books Ltd., 2013.
JAMES, Henry. O romance de uns velhos vestidos. In: JACOB, Penteado (Org.). Obras primas do conto de terror. Tradução não informada. São Paulo: Livraria Martins, 1962. p. 109-130.
JAMES, Henry. The great good place. Montana: Kessinger’s Publishing, 2010.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004.
TODOROV, Tzvetan. Os fantasmas de Henry James. In: _____. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979.
TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. Tradução de Lívia Oliveira. São paulo: Ed. UNESP, 2005.