DUPLO – contemporaneidade

Aurora Gedra Ruiz

A partir da segunda metade do século XX e início do século XXI surgem muitas obras que gravitam em torno da temática do duplo, como O visconde partido ao meio (1952) de Italo Calvino, O homem duplicado (2002) de José Saramago, Grande sertão: veredas (1956) de João Guimarães Rosa, Dois irmãos (2000) de Milton Hatoum, Budapeste (2003) de Chico Buarque etc. A questão da fragmentação do homem, acompanhada quase sempre pelo questionamento ontológico, comparece como motriz para o desdobramento do ser.

Dentre os romances listados se escolheu O visconde partido ao meio, Grande sertão: veredas e O homem duplicado para se restringir apenas a uma obra fora da expressão de Língua Portuguesa, a uma de autor brasileiro e a outra de um lusitano, dentro desse espectro de produções da contemporaneidade.

O visconde partido ao meio (1952) faz parte da trilogia Os nossos antepassados, que inclui O barão nas árvores (1957) e O cavaleiro inexistente (1959). Essas narrativas, de enredo aparentemente simples, resgatam contextos do passado da nobreza italiana, tratados com distanciada ironia, vazados em moldura alegórica. Nesse modelo se constitui a fábula do protagonista de O visconde partido ao meio, Medardo di Terralba, que, movido pelo desejo de conquistar as atenções de alguns duques, sem qualquer destreza para combates, decide participar da guerra dos cristãos contra os turcos. Seu desconhecimento de estratégias e a carência de habilidades bélicas expõem-no ao perigo que o surpreende no primeiro combate, quando, atingido por uma bala de canhão, divide-se ao meio, como os linguados do mito do androgynos de Platão (circa 380 a.C./1972, p. 191 d-e). O insólito desvela-se nessa circunstância em que, cindido, as partes continuam vivas, mas com personalidades distintas: assim O mesquinho representa a parte má, a dos defeitos, e o bom representa a parte amigável, a das virtudes. O insólito dá corpo a essa alegoria que discute que o excesso de maldade, ou de generosidade torna difícil a convivência social. Recupera-se a ideia presente na fala de Aristófanes (em O banquete de Platão) de que uma parte necessita da outra “téssera complementar” para compor o equilíbrio do indivíduo. Registre-se, porém, que essa carência, que move a busca pela complementaridade em Platão, comparece como necessidade que precisa ser satisfeita sem que haja um conflito no(s) ser(es) em demanda, ocorrência que não se realiza na narrativa de Calvino, porque Medardo, como o autor comenta na apresentação da obra, tem paridade também com o homem contemporâneo: “todos nos sentimos de algum modo incompletos, todos realizamos uma parte de nós mesmos e não a outra.” (CALVINO, 1996, p. 5).

Clément Rosset (1976, 2008) reflete longamente sobre o quanto o ser humano não se conhece e se afasta do verdadeiro eu – que habita o mundo das sombras – e atribui prevalência ao eu das representações sociais. Nesse romance de Calvino, o desequilíbrio de cada parte não mergulha em profundos dramas existenciais, mas se resolve quando se reintegra a entidade por meio de um processo de autoconsciência, conduzido com ironia e fino humor. O desfecho afina-se com o pensamento de Hans-Georg Gadamer acerca da formação do ser, em “um mundo formado humanamente” (1999, p. 54). A constituição da individualidade se dá no movimento de dentro para fora e de fora para dentro. Considera o filósofo: “Reconhecer no estranho o que é próprio, familiarizar-se com ele, eis o movimento fundamental do espírito, cujo ser é apenas o retorno a si mesmo a partir do ser diferente.” (1999, p. 54). É o que ocorre nessa obra de Calvino. Estabelecendo breve ilação entre o conto de Poe (1839, 2017) e o romance do escritor italiano, observa-se que neste a convivência pacífica se realiza mediante a consciência da duplicidade do ser. No conto de Poe, no entanto, o confronto final é decisivo para firmar no protagonista a impossibilidade de conviver com o outro lado de si.

Grande sertão: veredas (1956, 2006) configura-se em uma modalidade distinta de duplo assim como uma inscrição diferente do insólito, em relação ao conjunto de obras em exame. Em Guimarães Rosa, a personagem Diadorim, uma jovem que se traveste de jagunço, tem Riobaldo como companheiro de lutas. Ambos vivem uma relação afetiva, em que cada personagem faz a sua leitura desse sentimento. A primeira, uma mulher, representa socialmente o papel masculino e por essa razão rejeita qualquer tipo de aproximação afetiva do amigo com o intento de ela mascarar a sua pressuposta virilidade. Riobaldo, por sua vez, sente-se atraído por Reinaldo/Diadorim, porém reprime o homoerotismo em consonância às leis do cangaço. Esses desejos conduzem ao trânsito entre o familiar e o insólito cujo ápice culmina com a cena em que o narrador, Riobaldo, diante do cadáver do seu amigo Reinaldo/Diadorim, descobre a identidade de um corpo feminino (que teria causado seu homoerotismo?). Em Riobaldo permanece a tensão diante do evento insólito: a quem ele ama, a Reinaldo ou a Diadorim? Entre a evidência do agora – “Diadorim era uma mulher” (2006, p. 599) – e as vivências experimentadas até a revelação – “Meu corpo gostava do corpo dele […]” (2006, p. 198) –, reside o insólito diante da impossibilidade de uma redenção da heterossexualidade.

Já em O homem duplicado, lançado em 2002, o insólito surge em vários momentos, contudo, dois deles são cruciais. O primeiro diz respeito ao reconhecimento de Tertuliano Máximo, professor de História, de seu sósia na imagem do ator António Claro em um filme a que assiste. Perplexo diante do que vê, o protagonista traça estratégias para conhecê-lo. O segundo sucede quando ambos se encontram e, despidos, comparam-se: “Olharam-se em silêncio, conscientes da total inutilidade de qualquer palavra que proferissem, […] como se a chocante conformidade de um tivesse roubado alguma coisa à identidade própria do outro” (SARAMAGO, 2002, p. 213-217).

A confrontação com o duplo exógeno (CUNHA, 2009, 2021) alimenta ainda mais a tensão identitária de ambos, particularmente de Tertuliano que não consegue retornar à rotina. Persiste o desejo cada vez mais intenso de conhecer o outro, a sua vida e até mesmo, o anseio de viver a vida dele. Essa tensão distende até o desfecho trágico.

Da análise desse constelado de obras que se ocupam com o duplo e as inter-relações na cultura de cada sociedade pode-se concluir que o desdobramento do indivíduo complexifica a sua atuação nas relações sociais, em especial na contemporaneidade, pois implica o jogo de um sujeito de múltiplas identidades, que cada vez mais se afasta do conceito de unidade do ser defendida por Descartes, até anulá-lo por completo. A fragmentação do sujeito torna-se uma realidade muito presente a partir do final do século XIX e vivifica as tensões do eu social com a sua sombra nos séculos seguintes.


REFERÊNCIAS

BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
CALVINO, Italo. O visconde partido ao meio (1952). Tradução de Wilma de Carvalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
CUNHA, Carla. Duplo (verbete). In: CEIA, Carlos (Org.). Dicionário de termos literários. Dez. 30, 2009. Disponível em: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/duplo/. Acesso em 20 mar. 2021.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. 3. ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer, revisão Ênio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 1999.
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
PLATÃO. O banquete (circa 380 a.C.). In: Diálogos. Tradução de José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
POE, Edgar Allan. William Wilson (1839) In: POE, Edgar Allan. Contos de terror, de mistério e de morte. Tradução de Oscar Mendes. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 92-111, 2017.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas (1956). São Paulo: Nova Fronteira, 2006.
ROSSET, Clément. O real e seu duplo: ensaio sobre a ilusão (1976). Tradução de José Thomaz Brum. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. (Sabor Literário).
SARAMAGO, José. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

DEBORD, Guy. Simulacros e simulação. Tradução de Maria João de Costa Pereira. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.
KALINA, Eduardo; KOVADLOFF, Santiago. O dualismo. Tradução de Oswaldo Amaral. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
LAING, R. D. O eu dividido: estudo existencial da sanidade e da loucura. 5. ed. Tradução de Áurea Brito Weissenberg. Petrópolis: Vozes, 1987.
LOPONDO, Lílian. Um relato espe(ta)cular. In: LOPONDO, Lílian; ALVAREZ, Aurora Gedra Ruiz (Org.). Leituras do duplo. São Paulo: Editora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, p. 121-148, 2011.
MUCCI, Latuf Isaias. O jogo especular do duplo. Recorte: Revista de Linguagem, Cultura e Discurso. Três Corações: UNINCOR, v. 3, n. 4, p. 1-7, 2006.
RANK, Otto, Don Juan et le double. Essais psychanalytiques. Traduit par S. Lautman. Paris: Éditions Payot, 1973.
STOCKER, Arnold. Le double. L’homme à la recontre de soi-même. Préface de Gonzague de Reynold. Genève: Éditions du Rhône, 1946.
TIRET, Isabelle. Le réel et l’imaginaire ou la traversée du miroir. Sociétés. Revue des Sciences Humaines et Sociales. Paris, Dunod Revues, n. 49, p. 249-253, 1995.
ZSOZE, Mikhail. O autor do livro (não) sou eu. Teresa: revista de literatura brasileira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, n. 4-5, p. 394-397, 2003.