ALIENÍGENA

Alexander Meireles

“A função simbólica chave do novum da FC é precisamente a representação do encontro com a diferença, a outridade, a alteridade” (ROBERTS, 2000, p.25). A afirmação de Adam Roberts sobre a principal função da Ficção Científica tomando como referência o conceito de novum, o elemento que promove a descontinuação da realidade, estabelecido por Darko Suvin em Metamorphoses of Science Fiction (1979), permite compreender o lugar de destaque que o Alienígena, assim como também o Robô, ocupam como ícone desta vertente do modo Fantástico. Todavia, no caso específico do alienígena, e guardando semelhanças com o Fantasma, a crença por parte de muitas pessoas e mesmo pesquisadores em sua existência promove uma subversão das fronteiras entre o real e o ficcional. Se não há registro do contato das pessoas com o Vampiro e o Lobisomem nos dias de hoje, os milhares de relatos sobre avistamentos e abduções registrados a partir da segunda metade do século XX são suficientes para evidenciar a força simbólica do ser extraterrestre sobre a psique humana e sua expressão na Literatura, Cinema, Televisão, História em Quadrinhos e outras formas artísticas (BURLESON, 2007). Este potencial narrativo decorre da capacidade do alienígena em corporificar as ansiedades e medos da época onde está inserido.

A estreia do alienígena na cultura ocorre no século II da era cristã, no texto satírico História Verdadeira (120 A.D.), do sírio Luciano de Samosata, uma proto-ficção científica onde um navio é carregado por uma tromba d’água até a Lua, onde os tripulantes entram em contato com alienígenas de forma humana que se locomovem sobre criaturas bípedes com cabeça de abutre (FIKER, 1985, p. 25-28). Após esse momento inicial na Antiguidade outra obra chave nas primeiras representações do alienígena se encontra no Século das Luzes em Micromegas (1752), de Voltaire, onde um explorador espacial da Estrela de Sírius com aparência humana, mas de estatura gigantesca embarca em sua nave e se dirige a Terra. No caminho ele pega outro alienígena de forma humana em uma das luas de Saturno e exploram o nosso planeta em uma excursão de dezoito horas enquanto tecem considerações filosóficas sobre a humanidade, como sua pequenez diante do universo e sua tendência para a destruição (ROBERTS, 2018, p. 155). Destaque no período também para a série de reportagens do jornal The New York Sun, publicada na última semana de agosto de 1835, onde se debatia sobre a existência de vida na Lua na forma de unicórnios, humanos peludos com asas de morcego e até bisões. A descoberta de vida extraterrestre foi atribuída ao astrônomo britânico Sir John Herschel e apresentada ao longo de diferentes edições do jornal, causando repercussão na América e na Europa entre o grande público e o mundo científico.

Posteriormente descobriu-se que as reportagens eram uma farsa criada pelo jornalista Richard Adams Locke. O próprio John Herschel descobriu que seu nome havia sido atribuído como autor da descoberta apenas depois que o caso já havia capturado a imaginação do período. Além de promover um debate sobre a responsabilidade dos veículos de informação “A Grande Farsa da Lua” (The Great Moon Hoax) como o episódio ficou conhecido, evidenciou a crença do ser humano da primeira metade do século XIX na existência de alienígenas. Este episódio também demonstrou como a visão relativa à vida extraterrestre tomava como parâmetro o imaginário herdado da Antiguidade e da Idade Média sobre povos e bestas fantásticas, sendo especificamente o alienígena um ser semelhante ao ser humano com pequenas alterações como asas de anjo, asas de morcego ou pelos no corpo. Foi na segunda metade do mesmo século que a representação do alienígena viria a sofrer uma transformação radical a partir da publicação A origem das espécies (1859), de Charles Darwin a suas considerações sobre a evolução das espécies (CLUTE, 1995, p. 90). A mudança já pode ser observada pelos trabalhos não ficcionais do francês Camille Flammarion, como Real and Imaginary Worlds (1864) e Lumen (1887), onde o alienígena assume a forma de plantas sencientes em que a alimentação e a respiração são aspectos do mesmo processo (CLUTE; NICHOLLS, 1995, p. 15).

Ainda na França, o escritor J. H. Rosny, um dos precursores da Ficção Científica moderna, apresentou em “The Shapes” (1889) seres extraterrestres minerais. Esta nova abordagem darwinista do alienígena vai encontrar na Inglaterra da virada do século XIX para o XX sua primeira forma na obra A guerra dos mundos (1898), do inglês H. G. Wells. Ainda que a estreia da ideia da invasão alienígena na literatura ocorra em Auf zwei Planeten (1897), de Kurd Lasswitz (CLUTE; LAGFORD & NICHOLLS, 2019), foi com a obra de Wells que o potencial simbólico do alienígena começaria de fato a ser explorado ao descrever a chegada hostil de marcianos ao planeta Terra. Inseridos na perspectiva evolucionista, os marcianos de A guerra dos mundos possuem grandes cérebros desproporcionais aos seus corpos tentaculoides, indicando inteligência superior à humana, mas falta de compaixão. Neste sentido, o romance se alinha com os debates de fim de século sobre os rumos do Imperialismo inglês imaginando o que aconteceria se a Inglaterra experimentasse, em pleno solo britânico, o mesmo tratamento que o Império Britânico reserva aos povos das colônias dominados por ela (BRANTLINGER, 1988, p. 234-235). Chama atenção aqui a mudança de leitura dos marcianos de Wells ao longo do século XX e XXI.

Nos anos 50, a adaptação do romance em produção cinematográfica de 1953 se alinhou com a atmosfera anti-comunista macarthista que tornou o alienígena o símbolo da ameaça ao american-way-of-life, ao passo que na produção de 2005 os marcianos se tornaram uma metáfora do medo norte-americano pós-onze de setembro em que os Estados Unidos são atacados dentro de suas fronteiras por invasores escondidos no seio do país. De fato, foi na América das primeiras décadas do século XX em revistas pulp como Amazing Stories, Weird Tales, Science Wonder Stories e Astounding Science Fiction que o lugar do alienígena como o Outro foi consolidado refletindo o xenofobismo da primeira metade do século decorrente da tensão do período entre guerras e da ansiedade em relação aos efeitos do progresso e da industrialização acelerada do país (SILVA, 2003, p. 8). Estas publicações encorajavam uma visão na qual a Ficção Cientifica iria levar seus leitores a aprender e conquistar o caminho para o futuro. Visando alcançar esse objetivo, editores como Hugo Gernsback publicavam space operas onde os heróis eram os defensores da ordem. Buck Rogers – o primeiro herói espacial – debutou em janeiro de 1929 na Amazing Stories, influenciando nos anos seguintes a criação de muitos outros defensores do status quo tais como Brick Bradford (1930) e Flash Gordon (1934). A frequente representação desses heróis como übermänner refletia as características básicas do leitor de FC durante esse período: homem, branco, heterossexual, classe média e de bom nível educacional. Da mesma forma, com base nesses parâmetros, esses elementos ajudaram a estabelecer outros grupos sociais e étnicos como matéria para a representação do inimigo. Assim, refletindo o preconceito norte-americano contra o Oriente característico do país no período do entre guerras, ao acordar no século XXV, após séculos de hibernação, Buck Rogers descobre que a América foi invadida por bárbaros amarelos cruéis. Da mesma forma, em sua primeira aventura, Flash Gordon precisa salvar a Terra dos planos do Imperador Ming, regente do planeta Mongo.

Já dentro do universo da ficção weird, o escritor H. P. Lovecraft refletiu em seus contos e novelas o incômodo de parte da sociedade americana de raiz puritana e anglo-saxônica causado pela leva de imigrantes de diferentes nacionalidades, etnias e culturas que desembarcavam nos Estados Unidos como parte do profundo processo de industrialização do país. Assim, criaturas como Cthulhu, Shoggoths e Yog-Sothoth são alienígenas de linguagem incompreensível, oriundos de lugares além da compreensão humana. Seres que trarão o caos de volta a humanidade (SILVA, 2017). A mudança simbólica do alienígena começa a se tornar relevante a partir de fins dos anos cinquenta com as mudanças no ambiente cultural em decorrência da luta por espaços sociais de grupos diversos na Inglaterra e nos Estados Unidos. Os romances Floresta é o nome do mundo (1972) e A mão esquerda da escuridão (1979), ambos da norte-americana Ursula K. Le Guin, exemplificam a face desse alienígena pós-moderno. Na primeira obra, alinhada com a crescente consciência ecológica dos anos setenta e a crise do Petróleo da época, os athsheanos, a raça nativa pacífica de um planeta colonizado pelos umenos (humanos), estabelecem uma resistência contra seus invasores. Considerada inferior pelos umenos, a sociedade athsheana possui ligação estreita com a floresta do planeta a ponto de juntos constituírem uma mente coletiva. Diante do desmatamento provocado pelos invasores, os athsheanos decidem lutar contra os umenos. Já A Mão Esquerda da Escuridão discute a arbitrariedade do conceito de gênero e seu lugar como regulador de lugares sociais ao focar nas lembranças de Genly Ai, emissário humano de uma cooperativa interplanetária, sobre sua visita ao planeta Gethen (‘Inverno’ na língua local) e de seu convívio com o Getheniano Estraven. Enviado a esse planeta para buscar a adesão das duas nações que compõem sua civilização, Genly Ai descobre que os Gethenianos possuem uma particularidade que os distinguem dos humanos: sua androginia. Adaptando-se às condições climáticas do planeta, os Gethenianos alternam ciclos onde um dos dois sexos predomina sobre o outro. Tal característica molda a sociedade Getheniana em todos os seus níveis, sejam esses biológicos, sociais, psicológicos, linguísticos ou culturais. A partir dessa nova representação do ser alienígena e até as primeiras décadas do século XXI, diferentes escritores e escritoras vêm explorando e debatendo questões ligadas ao hibridismo cultural, a transgressão de gênero e ao lugar da linguagem dentre outros temas. Esse é o caso, dentre tantos, dos romances Despertar (1987), primeiro da trilogia Xenogenesis, da escritora afro-americana Octavia E. Butler e História da sua vida (1998), de Ted Chiang. No Cinema a estreia do alienígena ocorre no primeiro filme de Ficção Científica – Viagem à Lua (1902), dirigido por George Mélliès, baseado nos romances Da Terra à Lua (1865), de Júlio Verne (1865) e Os primeiros homens na Lua (1901) de H. G. Wells. Ao chegarem ao satélite natural da terra os astronautas se deparam com a raça dos Selenitas, assim batizados em homenagem a Selene, deusa da Lua. Quanto à aparência, os alienígenas de Mélliès tinham a forma de demônios, fato este que evidencia a reminiscência da crença no sobrenatural de base religiosa na representação dos seres que vinham ou moravam no céu.

Nos anos das décadas de trinta a quarenta, o cinema se alimentou da visão do alienígena nas revistas pulp, gerando alienígenas de aparências diversas que antagonizavam com os heróis espaciais. Neste ponto, no universo dos quadrinhos, foi com um alienígena oriundo do planeta Kripton que a indústria dos super-heróis encontrou o seu início na primeira edição da revista Action Comics, de julho de 1938 com o surgimento do Superman. Conforme mencionado anteriormente, o alienígena viria a tomar a forma da ameaça comunista na década de cinquenta, quando obras literárias com a temática da invasão extraterrestre foram adaptadas para o cinema em filmes como A guerra dos mundos (1953) e Invasores de corpos (1956). No primeiro, os marcianos ameaçam destruir toda a América (e consequentemente o american way of life) com seu poder de fogo superior ao dos americanos. No segundo, a invasão ocorre de forma dissimulada, com os alienígenas substituindo os corpos das pessoas por cópias artificiais das mesmas. Na década seguinte, a esperança de novos rumos para o mundo além das tensões da Guerra Fria ganhou corpo na série televisiva Star Trek, com a tripulação multiétnica da nave Enterprise estabelecendo contato pacífico com diferentes raças alienígenas. A partir daí, as últimas décadas do século XX no cinema trouxeram duas visões distintas sobre o alienígena: Contatos imediatos do terceiro grau (1978) e E.T. (1982) apontavam para a necessidade de evolução espiritual do ser humano e o resgate de sua humanidade como parte dos desafios no novo milênio que se aproximava. Já em Alien: o oitavo passageiro (1979) o crítico Adam Roberts enxerga a representação do xenomorfo que espreita as suas vítimas nos corredores apertados e mal iluminados da nave Nostromo como uma metáfora do medo sentido pelos habitantes dos grandes centros urbanos em relação ao negro. Já na virada do século XX e XXI o alienígena se tornou um instrumento de debate do lugar do Outro dentro da sociedade, sendo usado para tratar de questões de grupos minoritários e marginais, como em Homens de preto (1997), Avatar (2009) e Distrito 9 (2009). A busca do diálogo como forma de se buscar soluções para um mundo de relações fragmentadas também abre espaço para alienígenas pacíficos no cinema, como em A chegada (2016).

REFERÊNCIAS

BRANTLINGER, Patrick. Rule of Darkness: British Literature ans Imperialism, 1830-1914. New York: Cornell University Press, 1988.
­BURLESON, Donald. R. Alien. In: JOSHI, S. T (Ed.). Icons of Horror and the Supernatural: An Encyclopedia of Our Worst Nightmares. Connecticut: Greenwood Press, p. 1-31, 2007.
CLUTE, John. They Come from Outer Space. In: CLUTE, John. Science fiction: the illustrated encyclopedia. London: Dorling Kindersley. p. 90-91, 1995.
CLUTE, John & NICHOLLS, Peter. Aliens. In: CLUTE, John & NICHOLLS, Peter (Eds.). The Encyclopedia of Science Fiction. New York: St. Martin’s Griffin, p. 15-19, 1995.
CLUTE, John; NICHOLLS, Peter; LAGFORD, David (Eds.). The Encyclopedia of Science Fiction. Disponível em: http://www.sf-encyclopedia.com/. Acesso em 11 maio. 2019.
FILKER, Raul. Ficção Científica: Ficção, Ciência ou Épica da Época? Porto Alegre: Lp&M Editores, 1985.
ROBERTS, Adam. Science fiction. London: Routledge. (The New Critical Idiom), 2000.
ROBERTS, Adam. A verdadeira história da ficção científica: Do preconceito à conquista das massas. Tradução de Mário Molina. São Paulo: Seoman, 2018.
SILVA, Alexander Meireles da. O admirável mundo novo da República Velha: O nascimento da ficção científica brasileira no começo do século XX. 2008. Tese (Doutorado em Literatura Comparada). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível em: https://goo.gl/Au75GN.  Acesso em 02 mar. 2019.
SILVA, Alexander Meireles da. Homus Lovecraftus contra a modernidade. Revista Abusões, v. 4, n. 4, 2017. Disponível em:  http://bit.ly/2WVfIi0. Acesso em 16 maio. 2019.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

SUVIN, Darko. Metamorphoses of Science Fiction: On the Poetics and History of a Literary Genre. Connecticut: Yale University Press, 1979.