SHIRLEY JACKSON – ficcionista

Claudio Zanini

Shirley Hardie Jackson (1916 – 1965) foi uma escritora estadunidense, autora de seis romances, dois livros de memórias e centenas de contos. Sua escrita é marcada pela presença de elementos como o horror, o mistério, o macabro, o suspense e o inquietante, o que permite sua inscrição no cânone da literatura gótica dos EUA ao lado de Nathaniel Hawthorne, Edgar Allan Poe, Charlotte Perkins Gilman, William Faulkner e Flannery O’Connor, entre outros. Sua influência também é percebida e creditada por autores contemporâneos exponenciais tais como Stephen King, que em Dança Macabra afirma que The Haunting of Hill House (A assombração da casa da colina, de 1959) é um dos dois maiores romances do sobrenatural desde a década de 1880, ao lado de a A Volta do Parafuso, de Henry James (KING, 2003, p. 181). Já Chuck Palahniuk admitiu reiteradas vezes a influência de Jackson em sua escrita, frequentemente comparando a recepção de seu conto Guts (Tripas, de 2005) à de The Lottery, conto mais famoso de Jackson publicado em 1948. A admiração de Palahniuk é notória a ponto de a filha de Jackson tê-lo transformado em depositário das cinzas da autora (2005).

A vida e a obra de Shirley Jackson foram pautadas pelo paradoxo: dedicada esposa de um conceituado professor universitário, construiu uma prolífica carreira como escritora em uma época em que isso era particularmente difícil para uma mulher; mãe de quatro filhos, recusou-se a idealizar a maternidade e a vida doméstica, haja vista os títulos de seus dois livros de memórias, Life Among the Savages (A Vida entre os Selvagens) e Raising Demons (Criando Demônios); mulher respeitável e de família, era afeita a leituras sobre bruxaria, antecipando a tendência do interesse pelo oculto que se consolidaria na sociedade dos EUA a partir do final dos anos 60.

The Lottery exemplifica bem tal caráter paradoxal. Publicado originalmente em 1948 pela revista New Yorker (e com tradução no Brasil para a antologia Contos Clássicos de Terror de 2018), o conto descreve a tradição anual de uma pequena comunidade no interior dos Estados Unidos de sacrificar um de seus membros em prol de uma colheita farta. A loteria que intitula o conto na verdade alude ao processo de escolha da pessoa a ser sacrificada, o que só fica evidente ao final, quando a Sra. Hutchinson, a “vencedora” da loteria, demonstra medo e angústia. A cena final mostra todos os membros da comunidade – inclusive o filho bebê da Sra. Hutchinson – participando do apedrejamento coletivo que levará a vencedora da loteria à morte. O paradoxo de The Lottery reside em sua recepção: quando de seu lançamento, causou problemas à revista que o publicou, que teve número expressivo de assinaturas canceladas devido à publicação do conto; por outro lado, é quase impossível conceber uma antologia do conto estadunidense sem a presença de The Lottery, “um ícone na história do conto dos EUA (…) que migrou do cânone na ficção dos EUA do século XX diretamente para a psiquê americana, nosso inconsciente coletivo” (HOMES, 2005, p. x, tradução minha).

Alguns dos tropos góticos mais marcantes na obra de Jackson são o inquietante freudiano, os ambientes afastados e inóspitos, as manifestações do estranho e do sobrenatural, além de atmosferas permeadas por misticismo. A sensação de isolamento e a fragmentação do sujeito ocorrem através de caracterizações essencialmente góticas nas quais a descentralização e a perda da agência das personagens têm papel fundamental (HATTENHAUER, 2003, p. 5). O romance We Have Always Lived in the Castle (Nós Sempre Vivemos no Castelo, 1962) talvez seja o mais imageticamente gótico dentro da obra de Jackson. A trama é centrada nas irmãs Constance e Merricat Blackwood, párias em sua pequena comunidade devido a rumores de que teriam envenenado sua família – aqui o retorno do passado é articulado com o abandono libertador oriundo da morte, numa dinâmica em que dois tropos góticos potencializam mutuamente seus efeitos. Simultaneamente vítimas e perpetradoras, as irmãs Blackwood vivem em uma casa antiga com passado nefasto, um tio doente e bizarro, um sedutor primo distante que desempenha o papel de vilão gótico invasor, além de um animal de estimação que não poderia ser nada além de um gato preto.

O misticismo é aspecto recorrente na obra de Jackson, seja através do assassinato ritualístico em The Lottery, da bruxaria que permeia a caracterização das irmãs Blackwood em We Have Always Lived in the Castle, ou da evidente atmosfera sobrenatural na caça a fantasmas na trama de The Haunting of Hill House. Entretanto, tal elemento é também perceptível em alguns contos de Jackson unidos pela presença – às vezes sutil – de um personagem chamado James Harris. A presença de James é fundamental no conto The Daemon Lover (O Demônio Amante), presente em The Lottery and Other Stories, coletânea que em versões originais levava o subtítulo As Aventuras de James Harris (COHEN, 2012, p. 92). O nome James Harris vem de uma balada anglo-escocesa que Jackson conheceu quando criança (Ballad N. 243, de Francis James Child, publicada entre 1882 e 1898), que conta a história de um marinheiro irlandês que, ao retornar de viagem, encontrou sua amada casada com outro homem. O marinheiro convence a mulher a abandonar o marido e acompanhá-lo em viagem, apenas para afundar o barco em alto-mar, o que resulta em dupla morte. O diabo é descrito na Bíblia como tentador, manipulador e mentiroso, tal qual o James Harris da balada anglo-escocesa. Na obra de Shirley Jackson, “a mera presença de Harris é sinal de atos infelizes e circunstâncias perniciosas. Sua mera presença é sinônimo de dano, no sentido mais amplo e abrangente do termo (ainda que sua ausência – quando anunciada – possa também significar tal infortúnio)” (COHEN, 2012, p. 92, tradução minha)

Em 2007 foram instituídos os The Shirley Jackson Awards, competição anual específica para literatura de horror, suspense psicológico e dark fantasy. Tal premiação atesta a inegável importância da obra de Shirley Jackson para os gêneros que contempla, e seu logotipo remete a uma das marcas registradas da autora, os óculos com hastes pontudas popularmente conhecidos como ‘gatinhos’.

REFERÊNCIAS

COHEN, Gustavo Vargas. Shirley Jackson’s Legacy: A Critical Commentary on the Literary Reception. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 171p, 2012. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/56464/000860015.pdf?s equence=1&is Allowed=y. Acesso em 03 jul. 2020.
HATTENHAUER, Daryl. Shirley Jackson’s American Gothic. Albany: State University of New York Press, 2003.
HOMES, A.M. Introduction. In: JACKSON, Shirley. The Lottery and Other Stories. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2005.
KING, Stephen. Dança Macabra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

CARPENTER, Lynette. The establishment and preservation of female power in Shirley Jackson’s We Have Always Lived in the Castle. Frontiers: A Journal of Women’s Studies. v. 8, n. 1, p. 32-38, 1984.
COHEN, Gustavo Vargas. Casting Out Demons: Homage to Shirley Jackson. Cadernos do Instituto de Letras. n. 43, p. 201-210, 2011. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/cadernosdoil/article/view/25306. Acesso em 05 jul. 2020.
FRANKLIN, Ruth. Shirley Jackson: A Rather Haunted Life. New York: Liveright, 2016.
JEHA, Julio (org). Contos Clássicos de Terror. São Paulo: Cia das Letras, 2018.
KOSENKO, Peter. A Marxist-Feminist Reading of Shirley Jackson’s ‘The LotteryNew Orleans Review, n. 12, p. 26-32, 1985.
PALAHNIUK, Chuck. 5 questions with Chuck Palahniuk. Entrevista, 2015. Disponível em: https://www.hudsonbooksellers.com/5q-chuck-palahniuk. Acesso em 04 jul. 2020.
SHIRLEY JACKSON PAPERS. Library of Congress. Disponível em: https://www.loc.gov/item/mm78052522/. Acesso em 05 jul. 2020.
SHIRLEY JACKSON PAPERS. Encyclopaedia Britannica. Disponível em: https://www.britannica.com/biography/Shirley-Jackson. Acesso em 05 jul. 2020.